terça-feira, outubro 16, 2007

TROPA DE ELITE

Artigo:
Reinaldo Azevedo
Capitão Nascimento bateno Bonde do Foucault
Nunca antes neste país um produto cultural foi objeto de cerco tão covarde como Tropa de Elite, o filme do diretor José Padilha. Os donos dos morros dos cadernos de cultura dos jornais, investidos do papel de aiatolás das utopias permitidas, resolveram incinerá-lo antes que fosse lançado e emitiram a sua fatwa, a sua sentença: "Ele é reacionário e precisa ser destruído". Num programa de TV, um careca, com barba e óculos inteligentes, índices que denunciam um "inteliquitual", sotaque inequívoco de amigo do povo, advertia: "A mensagem é perigosa". Outro, olhar esgazeado, sintaxe trêmula, sonhava: a solução é "descriminar as drogas". E houve quem não resistisse, cravando a palavra mágica: "É de direita". Nem chegaram a dizer se o filme – que é entretenimento, não tratado de sociologia – é bom ou não.Seqüestrado pelo Bonde do Foucault (já explico o que é isso), Padilha foi libertado pelo povo. A pirataria transformou seu filme num fenômeno. A esquerda intelectual, organizada em bando para assaltar a reputação alheia (como de hábito), já não podia fazer mais nada. Pouco importava o que dissesse ou escrevesse, o filme era um sucesso. Derrotada, restou-lhe arrancar, como veremos, do indivíduo Padilha o que o cineasta Padilha não confessou. Por que tanta fúria? A resposta é simples: Tropa de Elite comete a ousadia de propor um dilema moral e de oferecer uma resposta. Em tempos de triunfo do analfabetismo também moral, é uma ofensa grave.Qual dilema? Não há como ressuscitar o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), mas podemos consultar a sua obra e então indagar ao consumidor de droga: "Você só pratica ações que possam ser generalizadas?". Ou por outra: "Se todos, na sociedade, seguirem o seu exemplo, o Brasil será um bom lugar para viver?". O que o pensamento politicamente correto não suporta no Capitão Nascimento, o anti-herói com muito caráter, não é a sua truculência, mas a sua clareza; não é o seu defeito, mas a sua qualidade. Ele não padece de psicose dialética, uma brotoeja teórica que nasce na esquerda e que faz o bem brotar do mal, e o mal, do bem. Nascimento cultua é o bom paradoxo. Segue a máxima de Lúcio Flávio, um marginal lendário no Brasil, de tempos quase românticos: "Bandido é bandido, polícia é polícia".A cena do filme já é famosa: numa incursão à favela, o Bope mata um traficante. No grupo de marginais, há um "estudante". Aos safanões, Nascimento lhe pergunta, depois de enfiar a sua cara no abdômen estuporado do cadáver: "Quem matou esse cara?". Com medo, o rapaz engrola uns "não sei, não sei".

Alguns tapas na cara depois, acaba respondendo: "Foram vocês". E ouve do capitão a resposta que mais irritou o Bonde do Foucault: "Não! Foi você, seu maconheiro". Nascimento, quem diria?, é um discípulo de Kant. Um pouco desastrado, mas é. A narrativa é sempre pontuada por sua voz em off. Num dado momento, ele faz uma indagação: "Quantas crianças nós vamos perder para o tráfico para que o playboy possa enrolar o seu baseado?".

O Bope que aparece no filme de Padilha é incorruptível, mas violento. O principal parceiro de Nascimento chega a desistir de uma ação porque não quer compactuar com seus métodos, que, fica claro, são ilegais. Trata-se de uma mentira torpe a acusação de que o filme faz a apologia da tortura. Ocorre que o ódio que a patrulha ideológica passou a devotar à obra não deriva daí.

Isso é pretexto. O que os "playboys" do relativismo rejeitam é a evocação da responsabilidade dos consumidores de droga na tragédia social brasileira. Nascimento invadiu a praia do Posto 9, em Ipanema.Já empreguei duas vezes a expressão "Bonde do Foucault" para me referir à quadrilha ideológica que tentou pôr um saco da verdade na cabeça de Padilha: "Confesse que você é um reacionário". "Bonde", talvez vocês saibam, é como se chama, no Rio de Janeiro, a ação de bandidos quando decidem agir em conjunto para aterrorizar os cidadãos.Quem já viu Tropa de Elite sabe: faço alusão também a uma passagem em que universitários – alguns deles militantes de uma ONG e, de fato, aliados do tráfico – participam de uma aula-seminário sobre o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984). Falam sobre o livro Vigiar e Punir, em que o autor discorre sobre a evolução da legislação penal ao longo da história e caracteriza, de modo muito crítico, os métodos coercitivos e punitivos do estado.

No Brasil, os traficantes de idéias mortas são quase tão perigosos quanto os donos dos morros, como evidenciam nossos livros didáticos.

Foucault sempre foi um incompreendido. Por que digo isso? Porque ele era ainda mais picareta do que seus críticos apontaram. No filme, aluna e professor fazem um pastiche de seu pensamento, e isso serve de pretexto para um severo ataque à polícia, abominada pelos bacanas como força de repressão a serviço do estado e suas injustiças. Sim, isso pode ser Foucault, mas Foucault era pior do que isso. Em Vigiar e Punir, ele fica a um passo de sugerir que o castigo físico é preferível às formas que entende veladas de repressão postas em prática pelo estado moderno. Lixo.
O personagem Matias, um policial que faz o curso de direito, é o elo entre o Capitão Nascimento, o kantiano rústico, e esse núcleo universitário. A seqüência em que essas duas éticas se confrontam desmoraliza o discurso progressista sobre as drogas e revela não a convivência entre as diferenças, mas a conivência com o crime de uma franja da sociedade que pretende, a um só tempo, ser beneficiária de todas as vantagens do estado de direito e de todas as transgressões da delinqüência. Por isso o "Bonde do Foucault" da imprensa tentou fazer um arrastão ideológico contra Tropa de Elite. Quem consome droga ilícita põe uma arma na mão de uma criança. É simples. É fato. É objetivo. Cheirar ou não cheirar é uma questão individual, moral, mas é também uma questão ética, voltada para o coletivo: em qual sociedade o consumidor de drogas escolheu viver? Posso assegurar: não há livro de Foucault que nos ajude a responder.

Derrotada, a elite da tropa esquerdopata não desistiu. José Padilha e o ator Wagner Moura foram convocados a ir além de suas sandálias. Assim como um juiz só fala nos autos, a voz que importa de um artista é a que está em seu trabalho. Ocorre que era preciso uma reparação. A opinião de ambos – ligeira e mal pensada – favorável à descriminação das drogas ameaçou, num dado momento, sobrepor-se ao próprio filme. Observem: Tropa de Elite trata é da falência de um sistema de segurança em que, segundo Nascimento, um policial "ou se corrompe, ou se omite, ou vai para a guerra".

A falha desse sistema independe do crime que ele é chamado a reprimir. Se as drogas forem liberadas e aquela falha permanecer, os maus policiais encontrarão outras formas de extorsão e associação com o crime. E esse me parece um aspecto importante do filme, que tem sido negligenciado. Um dos lemas da tropa é "No Bope tem guerreiros que acreditam no Brasil". Esse patriotismo ingênuo e retórico tem fôlego curto: um dos soldados da equipe morre, e seu caixão está coberto com a bandeira brasileira. Solene e desafiador, Nascimento chega ao velório e joga sobre o "auriverde pendão da esperança" a assustadora bandeira do Bope: um crânio fincado por uma espada, atrás do qual se cruzam duas pistolas. Outro dos refrões do grupo pergunta e responde: "Homem de preto, qual é sua missão? / Entrar na favela e deixar corpo no chão / Homem de preto, o que é que você faz? / Eu faço coisas que assustam satanás". Resta evidente que o filme não propõe este Bope como modelo de polícia.Pouco me importa o que pensam Padilha e Moura. O que interessa é o filme. E o filme submete a um justo ridículo a sociologia vagabunda que tenta ver a polícia e o bandido como lados opostos (às vezes unidos), mas de idêntica legitimidade, de um conflito inerente ao estado burguês. O kantiano rústico "pegou geral" o Bonde do Foucault.

sexta-feira, setembro 14, 2007

CAIRU Instituições jurídicas, propriedade fundiária e desenvolvimento econômico no pensamento de José da Silva Lisboa (1829)

História (São Paulo)
Print ISSN 0101-9074
História vol.25 no.2 Franca 2006

ARTIGOS

Instituições jurídicas, propriedade fundiária e desenvolvimento econômico no pensamento de José da Silva Lisboa (1829)

Juridical institutes, agrarian property and economic development in José da Silva Lisboa's thought (1829)


José Flávio Pereira; Lupércio Antônio Pereira*


RESUMO
Esse artigo analisa a posição política de José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, no debate acontecido no parlamento brasileiro em 1829 acerca da abolição de duas instituições jurídicas feudais relacionadas à estrutura fundiária que haviam sido herdadas de Portugal: o Direito de Primogenitura e o Morgadio. Segundo Cairu, tais instituições, que obrigavam a transmissão da propriedade da terra para o filho primogênito masculino e impediam sua posterior subdivisão e alienação, existiam de forma muito enfraquecida no Brasil, não comprometendo, portanto, o desenvolvimento da agricultura nem a democratização da propriedade fundiária. Porém, quando a questão foi apreciada no Senado, Cairu articulou a votação vitoriosa contra a abolição dessas instituições, aparentemente contradizendo suas idéias de economista político liberal. Julgamos que a explicação para tal paradoxo estaria no pragmatismo e na prudência política de Cairu, que foi sempre avesso ao radicalismo quando enfrentou a questão da reforma da sociedade. Sua oposição, aparentemente antiliberal, à abolição de tais instituições deve-se ao fato de considerá-las importantes instrumentos simbólicos de preservação da monarquia ilustrada no Brasil. Este regime estaria mais próximo do modelo político inglês, que propunha ser imitado, e mais distante do republicanismo radical francês, que ele julgava que deveria ser evitado.
Palavras-chave: Cairu, propriedade fundiária, primogenitura, Brasil.
ABSTRACT
The aim of this article is to analyze the political position of José da Silva Lisboa, the Viscount of Cairu, on the debate that took place in the Brazilian Parliament in 1829 concerning to the abolition of two feudal juridical institutes that were inherited from Portugal: the law of primogeniture and the entail. According to Cairu, such institutes, which have made compulsory the transmission of the land property to the first-born male child keeping him from breaking the property into small parcels by alienation, have a very weak existence in Brazil, which has not endangered, therefore, neither the agriculture development nor the property democratization. However, when this matter was discussed by the Senate, Cairu has articulated the victorious election against the extinction of them, apparently denying his liberal ideas. We think that the reason for such paradox would be in Cairu's pragmatism and political prudence, who had always been against radicalism when he faced the social reform. This apparently antiliberal position is due to the fact that he considered those institutes important symbols for the maintenance of the enlightened monarchy in Brazil, which was a regime closer to the English political system, that Cairu thought should be followed, than to the radical French republican regime, that he believed should be avoided.
Keywords: Cairu, agrarian property, primogeniture right, Brazil.


José da Silva Lisboa, mais conhecido como Visconde de Cairu (1756-1835), é considerado um dos pensadores mais influentes do mundo luso-brasileiro entre o final do século XVIII e as três primeiras décadas do século XIX. É reconhecido pela historiografia econômica como o introdutor formal da Economia Política no Brasil. Também é reconhecido como conselheiro influente junto à corte portuguesa, após a sua transmigração para o Brasil. Na qualidade de conselheiro prestigiado, Cairu teria sido um incentivador e o grande teórico do decreto de abertura dos portos do Brasil ao comércio mundial, assinado em 1808 por Dom João, Príncipe Regente do então Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves.
Em sintonia fina com os princípios daquela escola econômica, Cairu apoiou também, com todos os seus recursos teóricos de grande conhecedor da Economia Clássica, o decreto do Príncipe Regente revogando a Carta Régia que proibia a atividade manufatureira no Brasil.
O nome de Cairu está indissoluvelmente associado, portanto, à luta teórica travada no Brasil no início do século XIX, com vistas à remoção de todos os obstáculos que se interpunham ao livre-comércio, no plano internacional, e à livre iniciativa para os agentes econômicos, no plano interno.
Além de conselheiro real e escritor influente, Cairu foi, também, um atuante senador do Império, aspecto menos conhecido de sua rica biografia. Uma vez que sua atividade se concentrou nas três primeiras décadas do século XIX, ele acabou participando ativamente do processo de formação do Estado Nacional brasileiro, seja no campo teórico seja no campo político-prático.
É exatamente nessa atuação parlamentar que flagramos Cairu na defesa de posições que aparentemente o distanciariam dos princípios da Economia Política, vale dizer, do liberalismo econômico, como é o caso do caráter da propriedade da terra. Refletir sobre sua posição a respeito dessa importante questão é o objetivo deste artigo.
Nas discussões travadas sobre a questão agrária no Senado do Império do Brasil, surpreendemos Cairu numa posição que, em princípio, poderíamos chamar de contraditória ou ambígua e, no limite, conservadora. Nota-se, naqueles debates, que Cairu parecia se preocupar mais com a criação de mecanismos legais para se evitar a divisão excessiva da terra do que com a remoção de instituições herdadas do Feudalismo e do Antigo Regime e que, em princípio, poderiam opor obstáculos à livre circulação e à democratização da propriedade da terra, como os chamados bens vinculados, especialmente o morgadio e a lei de primogenitura.
Cabe, aqui, uma pergunta: por que, em relação às normas então vigentes relativas à propriedade da terra, Cairu não demonstrou a mesma oposição que manifestou em relação a outras heranças do Feudalismo e do Antigo Regime? É o que tentaremos responder neste trabalho.
A análise da posição de Cairu na discussão da legislação agrária para o Brasil necessita de um embasamento. Por isso, é conveniente fazer um breve balanço historiográfico dos principais estudos da obra de Cairu, além de uma discussão sobre as origens históricas do direito de primogenitura e do morgadio e da posição assumida diante dessas instituições por aquele que é considerado um dos fundadores da Economia Política Clássica, o escocês Adam Smith, do qual Cairu se julgava um discípulo.
De início, é necessário assinalar que a obra de Cairu talvez esteja entre aquelas que mais controvérsias e polêmicas suscitam entre historiadores, economistas e comentaristas. Alguns historiadores, por exemplo, julgam a obra de Cairu como um sistema teórico-político conservador e passadista que estava mais comprometido com o nosso passado rural e colonial do que com as grandes transformações sociais em curso no século XIX. Os argumentos principais dos quais lançam mão para fundamentar tal tese são o monarquismo e a oposição tímida e tolerante de Cairu em relação à estrutura colonial de produção, especialmente a escravidão, a grande propriedade da terra e as instituições a ela ligadas. Perfilam, nessa linha interpretativa, com algumas diferenças entre si, Sérgio Buarque de Holanda, Déa Fenelon, Antônio Penalves Rocha, entre outros.
Segundo Buarque de Holanda, apesar das aparências, em 1819 Cairu "já era um homem do passado, comprometido na tarefa de, a qualquer custo, frustrar a liquidação das concepções e formas de vida relacionadas de algum modo ao nosso passado rural e colonial" (Holanda, 1976, p.53). O motivo desse julgamento é um escrito de Cairu, Ensaio econômico sobre o influxo da inteligência humana na riqueza e prosperidade das nações (Cairu, 1975), onde ele diz que a causa principal da riqueza e prosperidade das nações é o trabalho inteligente e não o trabalho mecânico, braçal e penoso. No seu entendimento, essa tese de Cairu expressaria simplesmente o conceito de talento vigente no meio rural colonial, escravocrata e latifundiário brasileiro, talento este mais relacionado ao simples exercício da inteligência abstrata e decorativa do que às atividades que requerem algum esforço físico. Cairu seria, assim, prisioneiro de um conceito de trabalho mental ou de inteligência que se identificava mais com ornamento e prenda do que instrumento de conhecimento e ação. Isso decorria de suas ilusões teóricas e de sua incapacidade para compreender que, numa sociedade de coloração aristocrática e personalista, como a brasileira, tal idéia de trabalho inteligente só pode servir politicamente para distinguir uma pequena parte dos indivíduos com base em "alguma virtude aparentemente congênita e intransferível, que é a nobreza de sangue" (Holanda, 1976, p.50-2).
Esta tese de Buarque de Holanda não é, entretanto, aceita por Déa Fenelon. Embora, como dissemos, ela veja traços políticos conservadores em Cairu, sua visão do pensamento deste autor é mais nuançada. Cairu personifica, segundo ela, um liberalismo oportunista e de ocasião temperado na luta contra o inimigo externo, a Metrópole portuguesa. Com base neste liberalismo, ele formula o seu projeto político de organização do estado nacional brasileiro. É aí que o passadismo e a timidez liberal deste economista se revelarão explicitamente, pois ao invés de se preocupar com a formulação de uma profunda reforma da estrutura colonial de produção, ele formulará uma ideologia destinada a encobrir as contradições de um sistema liberal obrigado a coexistir com o regime monárquico absolutista, com a escravidão, com a grande propriedade rural etc. Até aí observamos uma grande proximidade de pontos de vista de Déa Fenelon com Buarque de Holanda. Mas, quando se trata de julgar a tese de Cairu sobre o trabalho inteligente, esta proximidade interpretativa diminui. Esta historiadora interpreta a idéia de trabalho inteligente de Cairu não simplesmente como prova da postura antimoderna deste economista baiano, mas como um indício das situações contraditórias e paradoxais com as quais letrados de classe média tinham que conviver numa sociedade escravista como a brasileira. Ela reconhece em Cairu o tipo clássico de burocrata citadino pertencente a um grupo social definido, mas sem ideais ou valores próprios, que é obrigado a viver inteiramente na dependência do estado. O resultado político natural desta sua situação leva-o a assumir, claramente, a posição da classe dominante, que, no Brasil, é composta pelos senhores rurais, o elemento mais tradicional (Fenelon, 1973).
Tal situação, entretanto, não impede que Cairu tente destacar o único valor com que conta o seu grupo social, que é a inteligência, já que é um grupo social não diretamente enquadrado no sistema de produção. Mas a categoria inteligência não tem, aqui, o mesmo sentido atribuído por Sérgio Buarque de Holanda, qual seja, o de exercício do espírito para fins de ostentação erudita e decorativa. Segundo Déa Fenelon, inteligência para Cairu tem o sentido de conhecimento prático e positivo destinado ao desenvolvimento do trabalho produtivo, ou seja, destinado ao "desenvolvimento das Artes e Ciências da Geral Indústria do país" (Fenelon, 1973, p.158) 1.
Antônio Penalves Rocha, como mencionamos, é outro historiador que julga Cairu um autor conservador. Apesar disso, ele não absolutiza este conservadorismo de Cairu. Ao contrário, para Penalves Rocha, o economista baiano se moveria no interior de um quadro de contradições teórico-políticas, o que tornava o seu pensamento algo bastante nuançado. Cairu é identificado, inicialmente, com certo viés progressista, na medida em que propunha uma reformulação do papel do Estado, ou seja, propunha a substituição do Estado mercantilista por um Estado menos intervencionista e regulamentador. Este novo estado proposto por Cairu deveria unir o interesse do soberano ao interesse de seus súditos de uma maneira ampliada. Tal proposição demonstraria, segundo Penalves Rocha, um viés progressista de Cairu, pois ela tinha como objetivo fazer do Estado um aliado da ordem social, o que não tinha acontecido até então (Rocha, 1996).
Todavia, Penalves Rocha identifica uma contradição nas formulações de Cairu. Ao mesmo tempo em que ele propunha uma harmonia entre os interesses do soberano e os interesses dos súditos, defendia também a desigualdade natural, a propriedade e a liberdade econômica. Fazendo isso, Cairu estaria colocando sua teoria a favor do poder estatal e dos proprietários agrícolas, negando, portanto, a harmonia social e participando diretamente da luta de classes a favor da elite agrária. Isso teria sido possível com a adaptação que Cairu havia feito da economia política para aplicá-la ao estudo das questões brasileiras. Nesta adaptação, ele teria assumido um posicionamento liberal dúbio ou a meias, o que lhe permitia tratar da relação entre desenvolvimento industrial versus escravidão no Brasil de uma maneira inusitada. O inusitado, no caso, foi colocar a tese dos economistas políticos acerca da relação entre industrialização e escravidão de pernas para o ar. Na opinião de Rocha, enquanto os economistas diziam que a "escravidão devia ser extinta porque não despertava a motivação para o trabalho especializado, impedindo o desenvolvimento industrial", Cairu, por sua vez, se opunha a uma abolição imediata da escravidão ao mesmo tempo em que dizia que "as fábricas eram inexeqüíveis no Brasil em conseqüência da existência de escravos, o que vale dizer que a escravidão brasileira era inelutável"2. Deste modo, Cairu, "para combater a instalação de fábricas no Brasil, adaptava uma idéia antiescravista a uma sociedade escravista e, ao mesmo tempo, fornecia subsídios ideológicos para a preservação de uma estrutura agrário-exportadora escravista da economia brasileira" (Rocha, 1996, p.123).
Mas, como já mencionamos, em torno do pensamento de Cairu criaram-se muitas controvérsias, gerando-se uma polêmica historiográfica, não faltando historiadores, economistas e comentaristas que o identificam com uma postura teórica progressista, comprometida com o processo de modernização da sociedade brasileira. Alguns deles, convencidos desse progressismo de Cairu, colocam-no em outro extremo interpretativo: o de precursor e antecipador de questões e teorias sociais específicas do século XX. É o caso de Alceu Amoroso Lima (1956), de Luis Nogueira de Paula (1956) e de José Almeida (1975). Preocupados em demonstrar a atualidade e a ação teórica precursora de Cairu, esses autores passam a vê-lo como teórico do pleno emprego keynesiano, da justiça social e do intervencionismo estatal na produção e distribuição da riqueza nacional. Podemos observar que o pressuposto teórico-político adotado por estes autores atualizadores para analisar a obra liberal de Cairu é, no fundo, a própria teoria keynesiana e sua doutrina social. Eles introjetam as concepções de Keynes na obra de Cairu e passam a extrair conclusões keynesianas do seu próprio interior. Estes são os estudiosos que poderíamos chamar de atualizadores do pensamento de Cairu.
Existem, ainda, aqueles estudiosos que procuram ver as idéias de Cairu como algo fora do lugar, ou seja, fora do contexto brasileiro. Antônio Paim (1968) é um exemplo representativo deste padrão interpretativo. Apesar disso, Paim está longe de considerar Cairu um pensador conservador e passadista. Ao invés de julgar o economista baiano como um autor voltado para o nosso passado rural e colonial, julga-o como um pensador cujas idéias estão muito avançadas para as condições históricas brasileiras. Portanto, para Paim, o pensamento de Cairu está, em face do contexto brasileiro, mais para um projeto ousado e utópico de reforma da sociedade brasileira do que para um projeto político voltado para a perpetuação de nosso passado rural e colonial.
Fazem parte, finalmente, desse rol heterogêneo de estudiosos aqueles autores que procuram demonstrar o caráter econômico progressista e avançado da obra cairuniana sem, no entanto, deslocá-la do contexto histórico em que foi produzida, ou seja, sem procurar atualizá-la ou vê-la como algo utópico e fora do lugar. Comungam essa linha interpretativa, com algumas diferenças entre si, os seguintes autores: Darcy Carvalho (1985), José Flávio Pereira (1994), José Jobson de Andrade Arruda e Fernando Novais (1999).
Uma das razões que movem Darcy Carvalho a estudar a obra de Cairu é o debate contemporâneo sobre a questão do subdesenvolvimento versus desenvolvimento econômico. Ele demonstra, assim, que também está levemente influenciado pela concepção atualizadora. Tal influência revela-se quando afirma, numa curta passagem de seu livro, que na obra de Cairu já se encontra a "perfeita consciência do problema do emprego e desemprego equacionado em terminologia atualíssima" (Carvalho, 1985, p.277). Apesar disso, o que notamos de mais marcante em seu estudo é a preocupação de situar historicamente Cairu e, ao mesmo tempo, caracterizá-lo como um economista desenvolvimentista comprometido com a prosperidade e o bem-estar material geral. Na sua avaliação, portanto, a liberdade industrial e comercial proposta por Cairu não poderia, como assinalavam outros autores, ser considerada mero instrumento de atendimento dos interesses exclusivistas dos proprietários de terra escravistas brasileiros do século XIX (Carvalho, 1985).
No caso de José Flávio Pereira, seu estudo mostra que Cairu constrói o seu pensamento reformador em oposição a duas coisas. Por um lado, ele opõe-se à economia política inspirada em Rousseau, argumentando que se trata de um projeto romântico e excessivamente radical de reforma da sociedade, projeto este inspirado no padrão de homem primitivo, selvagem e pobre. Por outro, ele opõe-se a todas as instituições e sistemas teóricos considerados antinaturais que embaraçam e desestimulam o crescimento da riqueza, a saber: as instituições feudais, o sistema fisiocrático, o sistema mercantilista e a lei dos pobres. É, pois, a partir dessas considerações que Pereira chega à conclusão de que Cairu assumiu, em sua época, uma postura progressista, no sentido de lutar pela consolidação das relações sociais burguesas no momento em que estas se constituíam em oposição às instituições semifeudais e mercantilistas do Antigo Regime. Assinala Pereira que essa postura progressista inspirava-se no modelo inglês de reforma, menos radical e violento, e se contrapunha ao republicanismo radical francês inspirado no pensamento político de Rousseau. Segundo Pereira, tal singularidade do pensamento de Cairu permitiria ao historiador romper com o preconceito teórico e político que classifica a obra de Cairu como conservadora, reacionária, passadista, etc. (Pereira, 1994).
Finalmente, para encerrarmos esse balanço historiográfico, temos o estudo recente de José Jobson de Andrade Arruda e Fernando Novais (2003). Segundo eles, não há como negar o caráter revolucionário do pensamento de Cairu se o considerarmos como expressão do contexto histórico em que foi produzido. Este posicionamento progressista de Cairu se evidenciaria em vários momentos, como, por exemplo, no período de 1810 e 1815, quando ele mobiliza suas energias teóricas para defender determinadas reformas no Brasil e em Portugal como caminho para a constituição do Império Luso-Brasileiro. No evento da abertura dos portos, em 1808, também se manifestaria essa natureza progressista de Cairu. Ao escrever obras e discursar em defesa da liberdade portuária e comercial, ele não apenas reproduzia dogmaticamente, em terras luso-brasileiras, princípios econômicos liberais produzidos na Europa, mas também expressava que sua reflexão se produzia com base na conjunção desses princípios econômicos liberais com a observação das circunstâncias históricas específicas da sociedade brasileira. Subentende-se, pelo que dizem estes autores, que a abertura dos portos e a liberdade comercial, defendidas por Cairu em 1808, eram uma premente necessidade histórica para se evitar o aniquilamento da economia luso-brasileira, estrangulada pelo decadente mercantilismo português e pelo bloqueio comercial colocado em prática por Napoleão Bonaparte no continente europeu. No campo da política propriamente dita, esses dois historiadores assinalam que definir Cairu simplesmente como "um ideólogo do senhoriato brasileiro é descurar da questão essencial: a de que foi exatamente este estrato social que, bem ou mal, empenhava-se em organizar a nação". Cairu foi, sim, "o ideólogo do senhoriato brasileiro", mas não apenas isto, pois também pensou as condições possíveis para a construção do Estado Nacional (Arruda & Novais, 2003).
Em face da polêmica historiográfica que se produziu em torno de Cairu e seu pensamento, acreditamos que o caminho para se aproximar de uma visão menos preconceituosa e menos subjetiva de suas concepções é voltarmos à própria obra de Cairu, à fonte documental, e tentar analisar essas concepções na relação direta com as condições sociais da época e com as questões concretas que Cairu e os contemporâneos tiveram de enfrentar e resolver. Sabemos nós que sua época foi uma época de rupturas históricas, rupturas estas que poderiam, no entanto, ser encaminhadas por meio de estratégias políticas diferentes.
Cairu expressou, como já mencionamos, a estratégia de mudanças sociais, econômicas e políticas adotada pelos ingleses e que encontramos tão bem expressada em obras de pensadores revolucionários como David Hume e Adam Smith. Esta estratégia era marcada pelo gradualismo político e pelo emprego moderado da força. Como bem mostrou Tocqueville, a chave explicativa do ritmo relativamente pacífico do processo histórico inglês é o caráter aberto da sociedade inglesa e o costume político de introduzir, com arte, as novas instituições no velho corpo social, sem correr o risco de dissolvê-lo, ou seja, "dando-lhe um novo vigor sem tirar-lhe as formas antigas" (Tocqueville, 1979). Cairu, frisamos, é a expressão dessa maneira de conceber as transformações sociais em terras brasileiras. Supomos, porém, que a oposição de Cairu ao radicalismo jacobino não pode ser classificada como reacionária, nostálgica e refratária às mudanças históricas que aconteciam em sua época. Nossa hipótese é de que Cairu militava política e intelectualmente a favor de mudanças substanciais na sociedade brasileira, mas fazia-o por um caminho próprio e seguindo uma trajetória não linear.
Esta postura cuidadosa e pragmática é evidente quando Cairu examina a questão da abolição do direito de primogenitura e do morgadio no Brasil. A análise desse posicionamento a partir de seus próprios escritos e dos dilemas do seu próprio tempo nos permitirá, portanto, irmos além das aparências e, assim, cotejar suas concepções com aquelas interpretações históricas que o classificam, sem nenhuma mediação, como um pensador conservador e passadista.
Feito este balanço historiográfico, é necessário, agora, examinarmos qual é a origem histórica do direito de primogenitura e do morgadio, bem como o posicionamento de Adam Smith, o inspirador teórico de Cairu, a respeito dessas duas instituições. Em seguida, trataremos do posicionamento de Cairu a respeito da questão e, ao final, estabeleceremos algumas breves relações entre este seu posicionamento e algumas interpretações históricas sobre seu pensamento.
Em A Riqueza das Nações, Smith fez severas críticas a essas instituições feudais. Entretanto, ressalve-se que essa crítica não foi absoluta nem incondicional, mas histórica. Tentemos traduzir o que isso significa.
Na concepção smithiana, a lei de primogenitura foi adotada na Europa medieval como resposta às desordens e à insegurança que se seguiram à queda do Império Romano. Segundo ele, com a queda do Império Romano sobreveio uma época de desordem generalizada na Europa e os únicos agentes capazes de oferecer alguma segurança aos habitantes do campo eram os grandes proprietários das terras. Assim, a terra deixou de ser considerada mero "meio de subsistência" e passou a ser concebida também como instrumento de poder e proteção. Naquela "época de desordem", todo grande proprietário de terras passou a ser "uma espécie de príncipe secundário" e "seus rendeiros eram seus súditos". Como cada grande senhor podia fazer "guerra a seu talante" contra seus vizinhos e até contra seu soberano, a insegurança era geral, de modo que "a proteção que seu proprietário tinha condições de oferecer aos que nela moravam, dependia da extensão da terra". Assim, a divisão da grande propriedade poderia colocar em risco a segurança dos seus moradores, que ficavam sujeitos às incursões de vizinhos belicosos. Por isso, continua o autor da Riqueza das Nações, "a lei de primogenitura veio a implantar-se gradualmente na sucessão das propriedades rurais, pela mesma razão pela qual geralmente se implantou na sucessão das monarquias", isto é, para que o poder do grande proprietário, e conseqüentemente a segurança que ele oferecia, não se enfraquecesse por divisões3. Para evitar essa divisão, adotou-se a norma de que a grande propriedade da nobreza fosse herdada apenas por um dos filhos, o mais velho, com precedência para o sexo masculino na linha de sucessão. Assim, impondo a sucessão linear ao invés da sucessão democrática, a primogenitura impedia que a grande propriedade fosse partilhada entre os herdeiros (Smith, 1983, v.I, p.325-6).
Ainda segundo Smith, o morgadio, instituição desconhecida entre os romanos, foi adotado para complementar a lei de primogenitura. Se esta impedia a partilha dos domínios por meio da herança, aquele bloqueava a partilha por meio da alienação, legado ou doação. Para Smith, o morgadio foi uma "conseqüência natural da lei da primogenitura" (idem, p.326) e combinava-se com ela para preservar a integridade da grande propriedade, julgada necessária para a preservação da segurança na época da "anarquia feudal".
Portanto, na formulação de Smith, era a "anarquia feudal" que dava o caráter historicamente necessário àquelas instituições, já que o grande domínio era o único capaz de oferecer alguma forma de segurança às pessoas e a seus bens. No entendimento de Smith, enquanto houvesse aquela circunstância, o morgadio e a primogenitura não poderiam ser considerados leis desarrazoadas. O problema foi a permanência delas em uma época posterior, "depois de cessarem as circunstâncias que lhes deram origem, circunstâncias essas que constituíam a única justificativa razoável de tais leis". Elas deixaram de ser razoáveis e, portanto, justificáveis, quando "as leis dos respectivos países passaram a oferecer segurança tanto às propriedades pequenas como às grandes" (idem, p.326).
Portanto, de acordo com seu raciocínio, tanto o morgadio quanto a lei de primogenitura não são, em si, instituições absurdas. O que as torna absurdas é a sua permanência em outra época histórica, a época burguesa. Depois que a unificação nacional e o fortalecimento do poder real criaram na Europa uma situação "em que as leis dos respectivos países oferecem segurança tanto às propriedades pequenas como às grandes", para que serviriam o morgadio e a primogenitura? Na formulação do economista escocês, apenas para a manutenção do "privilégio exclusivo que a nobreza tem no acesso aos grandes postos e honras de seu país" (idem, p.327).
Cessando, assim, as circunstâncias que lhes deram origem, aquelas instituições tornam-se apenas meios de manutenção de privilégios de uma classe, a nobreza, a qual, por sua vez, também perdera sua função social, a de proporcionar segurança num mundo caótico e conturbado pela ausência de um centro de poder estável.
Nessa nova situação de uma Europa em que as grandes monarquias unificadas haviam se consolidado, aquelas instituições medievais passaram a ser vistas por Smith como embaraços ao desenvolvimento da agricultura porque obrigavam, artificialmente, a transmissão da propriedade da terra unicamente para o filho primogênito do sexo masculino e impediam, nas gerações sucessivas, que tal propriedade fosse subdividida em propriedades menores por meio da partilha da herança entre todos os filhos. Se a primogenitura impedia a partilha da propriedade agrária por meio da herança, o morgadio impedia a mesma partilha por meio da alienação, doação ou legado, como já vimos linhas atrás.
Desta forma, aquela legislação agrária feudal não só contrariava o princípio da igualdade burguesa, segundo o qual todos os filhos têm igual direito à herança dos bens paternos, mas também perpetuava um tipo de propriedade menos rentável. No que se fundava essa opinião de Smith? Na idéia de que a pequena propriedade era mais rentável do que a grande, em razão da diferença de hábitos e de educação existente entre um pequeno proprietário plebeu e um nobre, senhor de um grande domínio. Vejamos, com as palavras do próprio Smith, como essa questão é colocada:
Em conseqüência do morgadio, não somente grandes áreas de terras incultas foram açambarcadas por determinadas famílias, como também excluiu-se .a possibilidade de dividi-la. Ora, é raro o caso de um grande proprietário de terras empenhar-se em melhorá-las. ... O melhoramento da terra com lucro, como todos os demais projetos comerciais, exige cuidado e atenção minuciosos a pequenas poupanças e pequenos ganhos, coisa de que muito raramente é capaz um homem nascido com grande fortuna, mesmo que por natureza ele seja frugal.
A situação de tal pessoa a dispõe naturalmente a voltar-se mais para objetos de adorno, que agradam à fantasia, do que para o lucro, do qual tem tão pouca necessidade. Desde sua infância, os objetos de suas maiores preocupações são a elegância no vestir, a beleza de seus pertences, de sua casa, da mobília doméstica. ... Ainda restam, na Inglaterra e na Escócia, algumas grandes propriedades que continuaram sem interrupção nas mãos da mesma família, desde os tempos da anarquia feudal. Compare-se a situação atual dessas propriedades com a das terras dos pequenos proprietários da região e não haverá necessidade de outro argumento para convencer-se até que ponto essa grande extensão de terras é desfavorável à introdução de melhorias. (Smith, 1983, I, p.317-8)
Ora, impedindo a subdivisão da terra, o morgadio tornava-se um obstáculo intransponível para a penetração do capital produtivo na agricultura e, em conseqüência, para a adoção de novas tecnologias e de novas práticas administrativas no meio agrário.
Esclarecida, assim, a posição da Economia Política Clássica a respeito dessas instituições feudais que regulavam a posse da terra e suas regras jurídicas de sucessão e alienação, voltemos a analisar a posição de Cairu.
Atento às singularidades da formação histórica brasileira, Cairu procurou mostrar que, embora existissem em Portugal, instituições com características marcadamente feudais eram praticamente inexistentes no Brasil. Segundo ele, no Brasil existiam instituições que apenas remotamente guardavam alguma semelhança com o direito de primogenitura e com o morgadio e, mesmo assim, a quantidade de bens regulados por elas era insignificante para exercer alguma influência no desenvolvimento da agricultura. Ele diz isso em um de seus discursos no Senado:
No Brasil há poucos morgados ou bens vinculados com autoridade do Governo. O maior número é dos de bens encapelados, por disposição testamentária, que são sujeitos a encargos pios. Não sou informado dos morgados de todo o Império, é notório que o Morgado de Marapicú, desta Província do Rio de janeiro, pertence à distinta família do Conde de Arganti, que foi reitor e reformador da Universidade de Coimbra. Também é notório que o morgado da Torre, na Província da Bahia, é de antigo estabelecimento... (Cairu, 1829, p.88)
Essa observação de Cairu é corroborada por outro registro contemporâneo. O inglês Henry Koster, ativista liberal e revolucionário que viveu no Brasil no começo do século XIX, registra a existência destas propriedades rurais vinculadas. Entretanto, pela maneira vaga e rápida de abordar a questão, ele deixa subentendido que os bens vinculados não representavam grandes embaraços ao desenvolvimento da agricultura brasileira, principalmente porque não constituíam a forma dominante de propriedade rural:
Existe em Pernambuco alguns morgados, terras vinculadas, e creio que em Paraíba também e ouvi dizer que na Bahia havia muito. Há também Capelados ou terras de Capelas. Esses bens não podem ser vendidos, e por esse motivo ficam algumas vezes abandonados, e trazem menor interesse ao Estado que outros bens sob outras circunstâncias. O Capelado é constituído da seguinte forma: o proprietário lega uma parte de seus domínios ou rendas de suas terras e uma igreja escolhida, com o propósito de ter missas para sua alma ou outras obras de natureza desinteressada. Nessa situação, de acordo com a lei, o bem não pode ser vendido, de sorte que, se o beneficiado não é bastante rico para fazer ele próprio mover o engenho, o aluga a alguém que possua um número razoável de negros e o possa movimentar. (Koster, 1942, p.435)
Um estudo mais recente sobre legislação agrária no Brasil também confirma a apreciação de Cairu sobre a pouca expressividade do morgadio no meio agrário do Brasil, até sua extinção definitiva em 1835:
A lei dos morgados definia que os bens passassem indivisos ao filho mais velho. A abolição dessa lei, na realidade, veio corroborar uma prática já existente, pois foram raros os casos de morgadio no Brasil colonial. As propriedades eram, em geral, divididas entre os filhos e até mesmo as filhas, como dote. Essa forma era muito mais compatível com o sistema imperante no campo brasileiro, isto é, um sistema caracterizado pela mobilidade, pelo crescimento em extensão e pela disponibilidade de terras. (Silva, 1996, p.85)
Mesmo assim, Cairu não deixou de incorporar e expressar, ainda que de forma diluída, a crítica de Adam Smith a estas instituições de origem feudal. Acreditamos que por dois motivos. Primeiro, por uma questão de coerência e fidelidade teórica em relação a Adam Smith. Segundo, porque sua obra se refere, também, a Portugal, o que exige, certamente, um posicionamento crítico, embora moderado e cuidadoso, em relação àquelas instituições feudais que ainda existiam na Metrópole.
Esta crítica da sociedade feudal não ocupa muito espaço na obra de Cairu, ao contrário do que ocorre na obra de Adam Smith, mas mesmo assim não deixa de ser profunda. O pressuposto dessa crítica é de que, no feudalismo, uma parte considerável da sociedade, o clero e a nobreza, vive na preguiça e não se submete àquela lei natural que obriga o homem a trabalhar para subsistir, multiplicar e prosperar como espécie. No feudalismo, ainda, a pouca eficiência produtiva faz que os homens dependam basicamente das potencialidades da terra e não do trabalho humano para se produzir a riqueza social. As passagens seguintes mostram isso claramente:
Muitas são as conseqüências morais, econômicas e políticas, que se derivam do princípio de ser – o trabalho e não a terra, o fundo ou fonte da riqueza social.
Ele extirpa a preguiça, como o maior flagelo das Nações; lança o fundamento da discreta divisão e franca circulação de quaisquer possessões e domínios, como o mais oportuno meio para o seu mais bem dirigido e produtivo trabalho possível, livrando-se o Estado de coutadas, vínculos e mãos mortas que estagnam em mãos avaras e pouco industriosas, os armazéns da subsistência e riqueza da sociedade e obstam que se experimente em todas as partes e tempos a exaltada energia e idôneo emprego de capitais dos indivíduos mais capazes de dar à agricultura a maior extensão e perfeição. Também convence o erro dos grandes proprietários e Nações, que tanto se empenham em abarcar, alargar e monopolizar territórios; sem atenderem que, não obstante essas vantagens, não pode haver grandes réditos sem pôr em movimento e boa direção muita quantidade de trabalhos, em virtude de proporcionados capitais, tanto os circulantes, para se pagarem os salários dos trabalhadores, avanços da cultura e os materiais das obras de qualquer gênero, como os fixos nas melhores benfeitorias rústicas e urbanas, instrumentos e vasos de terra e água e sobretudo o mais importante de todos os capitais, que são as acumuladas habilidades dos habitantes do país. (Cairu, 1956, p.165)
Percebemos, assim, que, na obra de Cairu, as instituições e costumes que se relacionam às propriedades feudais ou semifeudais são condenáveis em razão de vários aspectos: porque contribuem para perpetuar a avareza, a preguiça e a pouca indústria de seus proprietários, o que é um desrespeito flagrante ao que ele chama da lei natural que obriga todo homem ao trabalho; porque impedem a discreta divisão e livre circulação da propriedade da terra, eliminando, dessa maneira, a possibilidade de que outros homens mais capazes e produtivos empreguem seus capitais na agricultura; porque, enfim, estas instituições e costumes impedem que a agricultura tenha, por causa de todas as razões citadas, maior extensão, eficiência e perfeição.
É necessário observar, porém, que Cairu formula a crítica das instituições feudais dando destaque quase tão somente aos aspectos econômicos gravosos e irracionais destas, sem se preocupar muito em mostrar seus aspectos injustos e opressivos, como faz Adam Smith. Este, como já vimos, criticou tais instituições não somente pelo que elas representavam em termos de irracionalidade econômica, uma vez que impediam maior penetração do capital produtivo na agricultura, mas também pelo que elas representavam em termos de violação dos postulados da justiça burguesa, pois privilegiavam uma única classe ou um único membro da família como beneficiário da propriedade da terra, em detrimento dos interesses das demais classes e dos demais membros da mesma família em relação a esta propriedade.
Diante deste contexto, calcula-se que, pela lógica, diante de uma iniciativa concreta visando a eliminação destas instituições no Brasil, apenas duas atitudes poderiam ser esperadas de Cairu: que ele agisse, no mínimo, com indiferença ou, no máximo, que lançasse apenas um tímido apoio político a tal iniciativa.
Dizemos que estas seriam as mais prováveis atitudes políticas de Cairu porque levamos em conta justamente a sua crença de que o direito de primogenitura e o morgadio não representavam, de fato, qualquer sério embaraço ou desestímulo econômico-social ao desenvolvimento da agricultura brasileira. Abolir ou não tais instituições não seria, portanto, uma questão vital para a economia brasileira no entendimento de Cairu; daí a expectativa de que ele se comportasse com indiferença ou se posicionasse sem muita convicção íntima em relação ao assunto.
Não obstante, quando a questão foi apreciada no parlamento brasileiro, por iniciativa da minoria liberal radical, em 1829, Cairu não somente votou contra a abolição de tais instituições, contradizendo, aparentemente, suas crenças de economista político liberal, mas, além disso, articulou, com sua influência pessoal e com a eloqüência e erudição de seus discursos, a votação vitoriosa contra o projeto de abolição do direito de primogenitura e do morgadio (Armitage, 1981, p.189)4.
Como explicar tal paradoxo?
Para nós, a explicação mais plausível estaria no pragmatismo e na prudência política, traços marcantes na trajetória de Cairu, sempre avesso ao radicalismo quando se tratava de reformar a sociedade. Nossa interpretação é de que, para além da avaliação de Cairu de que o morgadio não era um grande óbice ao desenvolvimento da agricultura no Brasil, a posição tomada por ele na ocasião foi ditada mais por considerações políticas. No conjunto de sua obra, Cairu manifestou mais de uma vez grande preocupação com a estabilidade e permanência do regime monárquico ilustrado entre nós. Residiria aí, em nosso entendimento, a chave para A explicação da posição de Cairu na discussão e votação da questão do morgadio no parlamento.
Quanto aos liberais radicais, narra-nos João Armitage que eles argumentavam precisamente no sentido de mostrar a impropriedade e o caráter inteiramente exótico, irracional e antinatural do direito de primogenitura e do morgadio no Brasil, considerando que nenhuma organização social semelhante à feudal jamais existira no Brasil (Armitage, 1981).
Mas se, como vimos, o apoio de Cairu em relação à permanência da primogenitura e do morgadio baseava-se, fundamentalmente, em razões políticas, o mesmo acontecia com os liberais radicais quando propunham a abolição das mesmas instituições. Com efeito, esclarece ainda Armitage, os parlamentares liberais radicais objetivavam, com o combate à lei da primogenitura e do morgadio, antes se precaverem contra a futura e hipotética criação de uma aristocracia hereditária e de um Senado vitalício a ser composto pelos membros dessa aristocracia do que prevenir mal algum existente (ibidem).
Depreende-se disso que a posição ostensiva dos liberais radicais contra aquelas instituições não se originava de uma tomada de consciência acerca do caráter econômico pernicioso destas em relação ao desenvolvimento daquilo que Cairu chama de Ativa Indústria5 no Brasil. Muito pelo contrário, como aponta novamente João Armitage, eles repudiavam as instituições econômicas e sociais tidas como antiliberais mais por um espírito de oposição ao Governo do que por uma convicção íntima sobre a matéria (ibidem). Tanto para Cairu como para os liberais radicais, a questão era, portanto, de caráter político e não econômico. O caráter político desse posicionamento sobre o morgadio precisa ser nuançado, porém, já que em Cairu permanece uma consideração de fundo econômico.
E aqui emerge uma grande diferença entre ele e os liberais radicais, que tomam posicionamento a partir de posições doutrinárias puras. Cairu, ao contrário, é pragmático, isto é, procura adaptar os princípios gerais que defende às circunstâncias especiais do momento histórico e das condições peculiares do país.
Em face da traumática experiência da Revolução Francesa e, também, por convicção derivada de sua formação em Coimbra e por influência da monarquia britânica, que ele julgava o mais bem-sucedido sistema de governo, Cairu foi um convicto defensor do regime monárquico ilustrado por julgá-lo a forma de governo mais adequada para se promover, sem sobressaltos, a Ativa Indústria. Por essa razão, adotou, na discussão sobre o morgadio e em outras circunstâncias semelhantes, uma posição aparentemente conservadora. Nesses e em outros casos, seu pragmatismo falava mais alto que qualquer outra consideração de ordem doutrinária pura. Para ele, a ação política determinada pelo radicalismo doutrinário poderia representar uma ameaça maior do que a sobrevivência de uma instituição vista com antipatia pelo próprio liberalismo econômico, do qual ele se considerava um porta-voz em terras brasileiras.
Assim, seu posicionamento sobre a primogenitura e o morgadio poderia ser resumido da seguinte maneira. Por um lado, acreditava que a sociedade brasileira nada tinha a ganhar com a abolição destas instituições justamente pelo fato de elas não representarem nenhum sério embaraço aos melhoramentos econômicos e ao atendimento do bem comum. Por outro, considerava que o prejuízo político era quase certo, pois a abolição do direito de primogenitura e do morgadio significaria a destruição de um instrumento de elevado valor simbólico para a manutenção da monarquia ilustrada. Com base no exemplo da monarquia inglesa, a ser imitado, e no da República Revolucionária francesa, a ser evitado, Cairu considerava a permanência de um corpo de nobreza, ao estilo britânico, um elemento essencial para a estabilidade da instituição monárquica.
Para ele, o Soberano deve ser o principal proprietário do país para que ele possa ter os meios e o interesse de dar a maior segurança possível às pessoas e propriedades de seus vassalos. As vastas propriedades da nobreza deveriam, também, ser preservadas, com determinadas limitações, porque elas servem de baluartes de todas as propriedades inferiores (Cairu, 1975, p.365-6).
De acordo com esse raciocínio, a existência tanto da propriedade do monarca como das propriedades dos grandes senhores deve ser condicionada a duas exigências básicas.
A primeira, que as propriedades tenham uma natureza econômica e social próxima da natureza reformada das grandes propriedades rurais inglesas, que nada mais são do que propriedades burguesas, apesar dos títulos nobiliárquicos, honrarias e rituais aristocráticos que a acompanham. Isso aparece claramente nos Estudos do Bem Comum:
No Tempo do Governo Feudal da Europa, um Grande Senhor não tinha em que despender a renda de suas herdades (toda consistindo em vasta colheita de produtos rudes de trigo, vinho, azeite, gado, lã, etc.), senão em manter proporcional número de rendeiros, escravos, e apaniguados, moradores em terras, que por isso viviam em absoluta servilidade, ou dependência; e em conseqüência os tinham sob o seu poder e mando para invasão dos vizinhos, e rebelião aos Soberanos. Mas, desde que o comércio, e o progresso das artes superiores, especialmente pela introdução dos mais polidos países estrangeiros, entrou a multiplicar as obras de primor, dando esplêndida equipagem, vistosos móveis, casa magnífica, lauta mesa, e jóias preciosas; cada rico Proprietário, que, pelo seu orgulhoso egoísmo, deseja (quanto lhe é possível) gastar consigo todo o valor de sua renda; vendo que isso só era praticável indiretamente, por via do troco da sua anual colheita pela moeda da Praça, a fim de com ela ter a escolha da compra desses objetos, que entende serem os símbolos da Nobreza, Opulência, e Dignidade; logo despede as bocas inúteis dos criados e parasitos, e remete para o Mercado a quantidade do produto rude que excede as reais necessidades de sua pessoa e família. Assim os Nobres vieram a sustentar maior número de artistas e trabalhadores produtivos fora de suas terras; e a rústica suntuosidade dos campos cessou, e de converteu em elegante despesa nos artigos de indústria das cidades.
Por esta mudança de economia, deram mais certo, melhor e extenso emprego aos industriosos; mas perderam os braços dos serviçais, com que antes exerciam seus caprichos. Daí em diante, em vez de terem sob seu império gente servil, inerte, e desordenada, estenderam a classe da gente livre, habilidosa, e civil. Assim se fez a mais útil, e insensível revolução na polícia rural e municipal. (Cairu, 1975, p.404)
A segunda, que essas grandes propriedades da nobreza sejam reduzidas ao menor número possível, de modo que não impessa a existência das propriedades menores, acessíveis a todas as classes. Ele defende, portanto:
Divisão das terras, proporcionada, mas não excessiva, sem obstáculo à aquisição por todas as classes, com o menor possível número de que se dizem Bens Vinculados, Baldios, e de Mão-Morta, quanto seja compatível com a Constituição do Estado. (Cairu, 1975, p.363)
Não vendo problemas nestas grandes propriedades da nobreza, ele vai guardar a maior parte de suas energias para combater aquilo que ele denomina excessiva divisão das terras ou partilha de glebas. Ao leitor desavisado, poderia parecer que Cairu estava defendendo determinadas leis feudais e se opondo, de forma absoluta, ao que chamava de natural traspasso e às subdivisões das propriedades territoriais, pelos legítimos títulos de venda, doação, arrematação, herança, casamento e legado, o que não é verdade. Ao ver negativamente a excessiva divisão das terras, ele estava, na verdade, se opondo especificamente à experiência política da Revolução Francesa durante o período do Terror. Concretizou-se, nesse momento da ação dos revolucionários jacobinos, o projeto dos economistas e filósofos liberais radicais ao estilo de Rousseau, de parcelamento das terras entre milhares de camponeses e trabalhadores rurais.
Cairu apresenta duas justificativas para fundamentar sua oposição a esta partilha excessiva de glebas, por decisão política.
Uma delas, de natureza política, é que tal partilha introduz, inevitavelmente, um clima de insegurança e de comoção política na sociedade, o que pode vir a ser a precondição para a desorganização do sistema civil. Isso acontece porque esta artificial e forçada divisão de terras concretiza-se freqüentemente por meio da destruição daquelas propriedades que servem justamente de baluartes e antemurais a todas as propriedades inferiores: as vastas propriedades dos Grandes Senhores.
A outra justificativa, de natureza econômica, é que esta divisão excessiva das terras provoca o aumento da miséria no seio da população proletária e a extinção de várias indústrias úteis:
Mas, assim como a divisão do trabalho é perniciosa, sendo desmedida ... também não é menos prejudicial a excessiva divisão das terras, que degenere em partilha de glebas: porque se constituiria a população proletária, e por extremo miserável; e extinguiria inumeráveis sortes de indústrias úteis, que só se podem exercer nas Vilas e Cidades, em benefício não menos da gente do campo, em justas proporções, e para maior redito nacional, e progressiva indústria de todas as classes. (Cairu, 1975, p.366)
Segundo Cairu, portanto, se levada ao extremo, a partilha da terra atrairia a população urbana para o campo, provocando, conseqüentemente, o enfraquecimento das manufaturas citadinas. Esse enfraquecimento das manufaturas urbanas, por sua vez, se reverteria no enfraquecimento da própria agricultura, visto que as artes urbanas perderiam ou enfraqueceriam a capacidade de transformar os produtos primários da agricultura para atender às necessidades da população das cidades e, ao mesmo tempo, deixaria de contribuir para o aprimoramento das forças produtivas da agricultura por meio do fornecimento de insumos e máquinas. O que pareceria, assim, um conservadorismo de Cairu é, na verdade, uma defesa das condições mais favoráveis ao desenvolvimento integrado da produção burguesa, em todos os ramos da divisão social do trabalho, no início do século XIX.
Tais constatações nos levam a encarar com reservas a classificação de Cairu como um pensador passadista e conservador, como fizerem alguns estudiosos de sua obra. Classificando-o dessa maneira, sem nenhuma mediação, estes estudiosos ignoram, como mostraram Arruda e Novais (2003) e Pereira (1994), por exemplo, que Cairu foi, além de um crítico ferrenho do mercantilismo e do antigo regime, um dos artífices do estado nacional brasileiro no momento em que se esgotavam as possibilidades de o Brasil permanecer como Reino Unido de Portugal.
Classificando-o como passadista, esses estudiosos não conseguem perceber, também, que Cairu fazia não uma oposição absoluta e dogmática à reforma da sociedade colonial-escravista, mas sim uma oposição ao radicalismo jacobino como método e programa de transformação social. Não podemos nos esquecer de que Cairu justificava sua oposição política e teórica ao jacobinismo por duas razões básicas. Primeira, pelo excesso de violência e pela ação política destrutiva promovida por esta corrente revolucionária durante a Revolução Francesa. Segunda, porque a desorganização social provocada pelo radicalismo jacobino teria gerado as condições para a ascensão de Napoleão Bonaparte, o personagem histórico que encarnava o oposto da liberdade política e econômica proposta pelos filósofos e economistas liberais do século XVIII.

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Artigo recebido em 10/2006. Aprovado em 12/2206.


NOTAS
* Os autores são professores do Programa de Mestrado em História da Universidade Estadual de Maringá.
1 Wilson Martins (1978) apresenta um julgamento da categoria inteligência de Cairu de forma muito próxima à de Déa Fenelon. Diz ele que Cairu expressa a preocupação política que dominou a geração que vivenciou a época da luta pela Independência: a definição e a implementação de um projeto político capaz de consolidar a emancipação política e a unidade nacional e de viabilizar um novo pacto social baseado na liberdade de comércio e no desenvolvimento da ciência e do trabalho voltados para a expansão manufatureira.
2 A respeito da posição de Cairu sobre a escravidão e emancipação, ver o estudo de Lupercio Antonio Pereira sobre o pensamento abolicionista e sobre a estratégia gradualista adotada na abolição da escravidão no Brasil (Pereira, 1986).
3 Como mostra Norbert Elias, mesmo no início do século XIV, quando a região que hoje corresponde à França estava em processo avançado de constituição do estado centralizado, era presente, ainda, na principal casa reinante francesa, a dos capetos, a preocupação com o não desmembramento da terra para se evitar a perda de poder da família: "O perigo que acompanhava o desmembramento do território em benefício de filhos mais jovens já era, portanto, claramente percebido, o que se confirma por grande número de pronunciamentos" (Elias, 1993, p.122).
4 No Brasil, o morgadio só veio a ser extinto no período regencial, através de lei aprovada em 6 de outubro de 1835 (Silva, 1996).
5 Ativa Indústria, para Cairu, significa trabalho humano eficiente, inteligente e rentável em qualquer atividade produtiva. Os requisitos gerais para o desenvolvimento dessa Ativa Indústria são os seguintes: trabalho livre, educação geral, liberdade de comércio e indústria, capitais disponíveis, democratização da propriedade da terra, governo zeloso da ordem pública e dos contratos, condições naturais favoráveis, relações de amizade e comércio com nações adiantadas, mercado amplo, etc. (Cairu, 1975, p.362-3).

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terça-feira, julho 17, 2007

PINGA FOGO ABRAÇA O LULISMO

Nesta terça-feira(17/07/07), no seu program diário, o apresentador Pinga Fogo abraçou explicitamente o lullismo. Ao comentar as vaias que o presidente Lulla recebeu no Maracanã, na abertura dos Jogos Panamericanos(Rio 97) fez, como está acostumado, um comentário de explicita condenação do público carioca que não deixou o Lulla discursar.
Pinga Fogo, fingindo de sonso, tentou transformar as vaias numa questão de comportamento e não política. Caro comunicador, o público que estava na abertura do PAN fez simplesmente aquilo que os petistas gostam muito de fazer: protestou contra a estripulia administrativa que o presidente e os seus aliados e militantes estão fazendo.
Por falar neste comunicador, ainda falta explicar os motivos que levaram ele a renunciar o mandato de deputado federal. Vocês se lembram disto??
Pois é, Maringá também tem histórias estranhas pra contar....he he he

domingo, junho 10, 2007

GENEALOGIA DE CHÁVEZ

DIRETO DA FOLHA DE SÃO PAULO

São Paulo, domingo, 10 de junho de 2007 FOLHA +

GENEALOGIA DE CHÁVEZ

BORIS FAUSTOCOLUNISTA DA FOLHA

Hugo Chávez, presidente da Venezuela, converteu-se nos últimos anos numa figura central da cena política latino-americana.
Depois que Fidel Castro envelheceu e perdeu o brilho, depois que Lula -seu entusiástico admirador de outros tempos- guardou distâncias, em boa hora, Chávez se converteu no novo super-herói de uma certa esquerda, se é que a expressão se aplica a esse contingente. Exemplos do encanto chavista se revelam nos encontros do Fórum Social Mundial ou, para tomar um exemplo recente, no apoio que o presidente venezuelano recebeu, no Brasil, de organizações como o PT, o MST e o PSOL diante da medida de cassação [da concessão] da rede de TV RCTV, numa demonstração de nítido desprezo pela liberdade de expressão.

Neste texto, trato de me concentrar na biografia de Chávez e nos pontos mais relevantes de sua ideologia. A referência básica é o livro de dois jornalistas venezuelanos, Cristina Marcano e Alberto Barrera Tyszka, com o título "Hugo Chávez sem Uniforme - Uma História Pessoal" [ed. Gryphus]. Publicado em 2004, sem o conhecimento, portanto, das novas e mais profundas escaladas chavistas, a análise dos autores mantém, entretanto, a atualidade.Chávez nasceu num povoado, Sabaneta de Barinas, nos "llanos" venezuelanos [planícies do norte e noroeste do país], filho de um modesto professor, sendo o segundo entre seis irmãos.

A condição social e a proveniência geográfica lhe permitiram construir um imaginoso mito de origem, ao qual se refere com freqüência em suas falas, recordando a vida simples, as histórias de infância, as músicas da cidade natal. Consta que Sabaneta de Barinas, fundada antes de Caracas, foi um centro dramático das guerras da Independência, a ponto de sua população de 10 mil habitantes ter-se reduzido apenas a 600 pessoas no fim dos conflitos. A opção do presidente venezuelano pela carreira militar não representou necessariamente uma vocação, mas uma das poucas alternativas abertas para um jovem de sua origem.A socialização nesse âmbito, as amizades e lealdades que aí forjou são importantes para entender o personagem que emergiu da obscuridade com a tentativa do golpe de abril de 1992.

Animal políticoSeria, porém, insuficiente querer explicar a figura de Chávez apenas pela formação militar. No livro citado, Barrera e Marcano acentuam que, acima de tudo,Chávez é um "animal político", dotado de uma grande intuição, de um grande olfato. Nesse ponto, é preciso qualificar melhor.Sem dúvida, Chávez vive e respira política, mas seu olfato e sua intuição cedem muitas vezes lugar a uma agressividade sem limites, que só lhe cria problemas.

Os exemplos são muitos. O mais recente é o das ofensas dirigidas ao Senado brasileiro -que pode ser tudo, menos "papagaio de Washington"-, forçando o presidente Lula a demonstrar desagrado e um distanciamento mais nítido do companheiro de tempos atrás. Guardadas as diferenças, Chávez lembra os generais nacionalistas convictamente autoritários, inimigos da velha oligarquia, que vicejaram na América Latina. Não é ocasional sua admiração pelo general Velasco Alvarado, presidente do chamado "Governo Revolucionário das Forças Armadas do Peru" (1968-75), resultante de um golpe militar.

Revolta bolivarianaProveniente de uma família humilde, Velasco Alvarado esteve à frente de um governo reformista autoritário, que nacionalizou a indústria petrolífera peruana e promoveu uma reforma agrária. Chávez, a princípio, foi influenciado também por ex-guerrilheiros de proa, como Douglas Bravo e Teodoro Petkoff, antes de chegar ao poder. Entretanto, tanto Bravo quanto Petkoff romperam com ele por razões políticas, e este último está hoje no campo da oposição democrática esclarecida, como político e jornalista.

O presidente venezuelano, inegavelmente, tem o talento de recorrer ao passado ao construir sua imagem de líder incontrastável. Antes de chegar ao poder, escreveu um livro intitulado "El Libro Azul - El Árbol de Tres Raíces", em que define seu Movimento Revolucionário Bolivariano como "um modelo ideológico autóctone, enraizado no que há de mais profundo de nossa origem e no subconsciente do ser nacional".

As três raízes do título referem-se a Bolívar [1783-1830], em primeiríssimo lugar, depois a Ezequiel Zamora, líder em meados do século 19 de uma insurreição camponesa, e a Pedro Pérez Delgado, bisavô de Chávez, mais conhecido como "Maisanta", tido como um combatente guerrilheiro contra a ditadura de Juan Vicente Gómez nos primeiros anos do século 20.

Mas é Simón Bolívar o grande personagem do panteão de Chávez, que, como se sabe, mudou o nome do país para República Bolivariana da Venezuela.Com o culto a Bolívar, Chávez magnifica uma tradição patriótica, centrada na figura do "pai da pátria", herói das guerras da Independência latino-americana.A Venezuela não é um país que tenha uma enraizada cultura política democrática ou mesmo liberal. Entre 1830 e 1958, o país foi governado por civis durante nove anos apenas.Só a partir dessa data se abriu um período democrático, que resultou numa sucessão de presidentes regularmente eleitos, associados, porém, com algumas exceções, a uma calamitosa corrupção. Esse quadro, acrescido da crise econômica, acabou por desmoralizar a democracia e abrir caminho para o golpismo "purificador".

Esses antecedentes explicam o fato de que o golpe militar de abril de 1992, liderado por Chávez, tenha fracassado, mas não tenha sido derrotado. Desde os primeiros dias de uma prisão que duraria menos de dois anos, ele se tornou um personagem admirado por amplas camadas da população -e não apenas pelas classes populares. Seu acesso à televisão, já preso, pouco após o golpe, revelou ao grande público os traços de um personagem decidido, dotado de um imenso poder de comunicação.

Num cenário sociopolítico de massas, que caracteriza os pleitos eleitorais, que torna cada vez mais indispensável a capacidade de se comunicar com o grande público, Chávez utiliza seus dotes com maestria.
Em toda a América Latina, os mais pobres parecem estar cansados dos discursos bem articulados, mas que transpiram uma distância entre o governante e a massa popular.Apelo popularTal como o presidente Lula, Chávez sabe muito bem disso. Deixa de lado discursos escritos, opta por falar de improviso -embora seja possível que o "improviso" já venha decorado-, diz disparates ou lança ameaças que seus seguidores acolhem com entusiasmo.

O traço principal da fala de Chávez é a confrontação. Nessa linha, investe contra o "Grande Satã do Norte", no melhor estilo islamista, ofende o presidente [dos EUA, George W.] Bush com os epítetos mais grosseiros.A paciência de Bush -diga-se de passagem- não deriva da caridade cristã, mas principalmente do fato de que o presidente venezuelano vem cumprindo os contratos de fornecimento de petróleo aos EUA.No plano interno, Chávez refere-se com o maior desprezo aos privilegiados, entre os quais não se incluem, entretanto, os fíéis "boliburgueses" [adeptos abastados da "revolução bolivariana"] que vicejam à sua sombra, promovendo toda sorte de negócios.

Contando com um grande apoio ao alcançar o poder nas eleições de 98, alienou a classe média e boa parte das elites, por adotar a linha de confrontação e escalar no rumo da implantação de um regime autoritário.
É forçoso convir, ao mesmo tempo, que a oposição facilitou em muito seu caminho, com seus preconceitos arraigados e, mais ainda, com suas ações desastrosas. Para ficar num só exemplo, a fracassada tentativa de golpe antichavista de abril de 2002 manchou as supostas credenciais democráticas de certos opositores, provenientes de círculos empresariais e de setores militares.

A íntima relação entre a figura de Chávez e as grandes massas não é feita apenas de palavras, embora as palavras sejam muito mais do que simples fumaça que se esgota no ar.A rede assistencial constituída pelas chamadas "misiones" [programas de saúde, alfabetização etc.] nada tem de desprezível, combinando o auxílio, sob variadas formas, às camadas mais pobres da população, com a constituição de uma poderosa rede de fiéis seguidores.Como em outras partes, também aí a lógica dos benefícios materiais se combina com a lógica simbólica.Até que ponto o fenômeno Chávez vai perdurar? Embora tenha substituído Fidel Castro no panteão dos heróis vivos, Hugo Chávez não é Castro. Os tempos são outros, e a Guerra Fria, pelo menos tal como se definia no passado, se foi.Revolução exportadaNa política externa, ainda que algumas vezes chegue a falar em transformações de efeito planetário, Chávez busca construir uma hegemonia na América Latina pela via dos favores que o petróleo permite, pela construção de uma entidade exótica, a chamada Alba -Alternativa Bolivariana para as Américas-, por propostas que vão desde a formação de uma rede de TV continental, para opor-se à ideologia imperialista, até a construção de um grandioso gasoduto, cortando a América Latina de norte a sul.

Mas seu ímpeto político -a "exportação da revolução" de outrora, transformada na tentativa de intervir na política interna em países do continente- tem provocado mais resistências do que apoios, como se viu no caso do Peru, do México, do Brasil e do Chile, no governo socialista do presidente Ricardo Lagos.É claro que um fator desencadeante do declínio de Chávez seria uma queda vertiginosa dos preços do petróleo -hipótese, porém, bastante remota.

Melhor será apontar os pontos mais frágeis de seu governo, como a inflação, o elevado grau de corrupção -que ele mesmo admite e diz combater-, o estado de abandono da infra-estrutura material do país, a crise de gêneros alimentícios.Se todos esses fatores combinados têm influência, o mais importante me parece ser o baixo índice de coesão social.A Venezuela é hoje um país dividido ao meio, e uma nova oposição democrática parece desenhar-se, superando, na medida do possível, os erros do passado.Em poucas palavras, os propósitos de Chávez de se reeleger indefinidamente, quem sabe até 2021, devem frustrar-se bem antes do que alguns imaginam.

BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.

terça-feira, maio 29, 2007

CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL.

CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL.
A colonização como produção para o mercado externo[1]

Claudinei Magno Magre Mendes2


INTRODUÇÃO


Nos estudos históricos relativos à colonização do Brasil tem-se definido colônia a partir do que se considera o caráter fundamental da economia brasileira deste período, qual seja, o de ser uma produção voltada para o mercado externo. Esta maneira de caracterizar a colônia, se não se iniciou com Caio Prado Júnior, pelo menos tem, neste, seu representante mais expressivo e que lhe deu maior sistematicidade. É no livro Formação do Brasil Contemporâneo, publicado em 1942, que Caio Prado, ao afirmar que havíamos nos constituído com o objetivo de fornecer alguns gêneros para o comércio europeu, expôs pela primeira vez esta concepção de colônia.
Este modo de conceber nosso passado colonial exerceu uma influência tão decisiva sobre os estudos históricos que a obra de Caio Prado tornou-se referência obrigatória para todo aquele que deseja estudar a história do Brasil, em particular a do período colonial. Aliás, teve tamanha difusão e foi aceito com tanta naturalidade que, como bem observou Luiz Israel Febrot, tornou-se senso comum, a ponto de se ignorar seu mentor.
Ao estudioso que examina a historiografia brasileira, particularmente a relativa ao período colonial, ao considerar Caio Prado, tem sua atenção despertada por três questões. A primeira é o fato de que, a partir de Formação do Brasil Contemporâneo, muito pouco do que se publicou no Brasil acerca da colonização ficou fora das linhas mestras da sua interpretação. A influência de Caio Prado estendeu-se aos estudos que, embora tenham abordado épocas posteriores ao período colonial, nele foram buscar os fundamentos da análise.
A segunda questão diz respeito à longevidade desta interpretação. Com efeito, surpreende que esta caracterização de colônia tenha durado tanto tempo e seja considerada válida, em suas linhas gerais, ainda em nossos dias, apesar das transformações sofridas pelo Brasil desde os anos 40 e do grande desenvolvimento verificado nos estudos históricos, inclusive com a emergência de novos objetos, novas abordagens e novos problemas.
Por fim, a terceira questão que merece destaque é o fato desta interpretação não somente vigorar até o presente como manter-se hegemônica. Efetivamente, desde sua formulação, não surgiu outra que a ela se contrapusesse e ameaçasse seu predomínio.
É verdade que, ao longo destes anos, surgiram várias críticas à maneira de Caio Prado conceber nosso passado colonial. Todavia, apesar dos seus esforços, estes críticos não contestaram sua viga mestra, isto é, a caracterização da colônia como produção para o mercado externo. Em conseqüência, moveram-se no interior das formulações gerais de Caio Prado. Disto resultou que, na sua essência, sua interpretação manteve-se incólume.


A CRÍTICA DA HISTORIOGRAFIA

A crítica de maior peso e sistematicidade a Caio Prado surgiu na década de 70. Nesta ocasião despontou uma tendência historiográfica cujo ponto de partida era a crítica ao destaque dado por Caio Prado ao mercado externo no estudo da época colonial. De acordo com esta tendência, este destaque fazia com que as colônias fossem vistas em função da economia européia, a qual lhes conferia sentido, com visível prejuízo das análises das suas estruturas sociais.
O primeiro historiador a fazer esta crítica foi Ciro Flamarion S. Cardoso.[2] Outros autores, como Antônio Barros de Castro, José Roberto do Amaral Lapa, Jacob Gorender, Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, apenas para citar alguns, de uma forma ou de outra, ainda que tivessem guardado diferenças entre si, seguiram seus passos. Em linhas gerais, Cardoso criticou as análises da escravidão colonial que tinham Caio Prado como matriz pelo fato de reduzirem a sociedade colonial a uma lógica ditada pela sua ligação com o mercado mundial em formação e com as metrópoles européias. Chegou a afirmar que estes estudos reduziam as sociedades coloniais a um quintal da Europa. Em função disto, deixavam de lado as estruturas internas formadas com a colonização, subestimando sua capacidade de reação diante das injunções externas.
Em resposta à concepção de Caio Prado, que qualificou de “obcecada pela plantation monocultora e exportadora”, Cardoso ressaltou a consistência interna e a relativa autonomia estrutural das sociedades coloniais. Afirmando que Caio Prado minimizava, de forma decisiva, a presença e a importância de outras relações de produção que não a escravista, Cardoso chamou a atenção para a existência de uma atividade que escapava ao sistema escravista e mercantilista, a qual denominou brecha camponesa. A questão da brecha surgiu, portanto, no bojo da tentativa de uma revisão das análises que se fundamentavam em Caio Prado. É interessante observar, neste sentido, embora não seja esta a questão principal, que os críticos desta tese não tenham observado as circunstâncias em que ela foi defendida.
Ao definir, como brecha camponesa, as atividades econômicas autônomas dos escravos que escapavam do sistema de plantation, Cardoso pretendeu valorizar o que denominou variáveis internas. Sua intenção foi mostrar que, na colônia, existia um conjunto de atividades que, escapando das injunções externas, davam à sociedade colonial uma estrutura que não era explicada somente por sua ligação com o mercado mundial. Chegou a considerar a brecha uma atividade universal no escravismo americano, portanto, um fato estrutural da escravidão colonial.
Todavia, embora tivesse dado destaque à dinâmica interna da colônia, o próprio Cardoso esclareceu que, com a questão da brecha, não pretendia estabelecer uma nova unilateralidade. Não se tratava de negar os vínculos externos da produção colonial, mas apenas nuançar o que considerava uma visão excessivamente monolítica do sistema escravista. Pretendia somente mostrar “[...] as colônias afro-americanas como sedes de verdadeiras sociedades, ativas, dinâmicas e contraditórias [...]”. (1987, p. 89-90)
Assim, por mais incisivas que tivessem sido as críticas de Cardoso, o fato é que, em última instância, elas não constituem uma completa negação da interpretação de colônia de Caio Prado. Ao contrário, ele partiu de suas linhas gerais. Matizou-a, é verdade, mas não a excluiu nem a negou, ou seja, não formulou uma nova interpretação do sistema colonial que se contrapusesse radicalmente à de Caio Prado. Para comprovarmos isso, basta verificar duas de suas obras, O trabalho na América Latina Colonial e Escravo ou camponês?
Na primeira, após ter tratado da colonização da América como um processo que se deu no bojo da expansão marítima e comercial européia, inclusive citando Caio Prado, Cardoso define as economias coloniais fundamentalmente como zonas periféricas e dependentes, voltadas para o mercado mundial. (1985, p. 19, 22 e 52)
Na segunda, caracteriza as colônias como “[...] bem integradas ao mercado mundial como exportadoras de produtos primários.” (1987, p. 59) Nesta maneira de ver está mantido o fundamento da interpretação de Caio Prado, qual seja, a afirmação de que a colônia se definia como uma unidade cuja produção estava voltada para o mercado externo.
O ponto de partida de Caio Prado permaneceu, portanto, intocado, pois, sem desprezar a ligação de colônia com o mercado externo, Cardoso apenas entendeu que a análise de Caio Prado era insuficiente. Na verdade, a seu ver, a proposta de análise das estruturas internas completaria o quadro traçado por este autor: “Sem analisar as estruturas internas das colônias em si mesmas, na sua maneira de funcionar, o quadro fica incompleto, insatisfatório, por não poderem ser explicadas algumas das questões mais essenciais [...]”. (LAPA, 1980, p. 109-110) Limitou-se, assim, a chamar a atenção para o fato de estas estruturas possuírem uma complexidade maior do que teria percebido a visão que denominou obsessão plantacionista e a integrar à interpretação de Caio Prado novos elementos.
Desta maneira ainda que à primeira vista pudéssemos supor que Cardoso tivesse feito uma crítica radical à interpretação de Caio Prado, assentando sua análise sobre bases novas, o fato é que, apesar da atenção que dispensou às estruturas internas da colônia, Cardoso definiu as economias coloniais como zonas periféricas e dependentes, o que significa que o arcabouço da concepção de Caio Prado permaneceu intacto. Ou seja, Cardoso permaneceu fiel às linhas gerais da interpretação que ele criticava.
A novidade da sua análise está, pois, menos em ter formulado uma interpretação do processo colonial alternativa à de Caio Prado do que em lhe ter acrescentado aspectos que julgava decisivos para a plena compreensão da época colonial. Aceitando a formulação de que a colônia havia sido criada para produzir para o mercado externo, acrescentou que os colonos não ficaram passivos diante das injunções externas. Eles teriam reagido de diferentes maneiras, o que teria promovido a consolidação da produção colonial enquanto estrutura com interesses próprios. Conclui ressaltando que o estudo destas reações permitiria captar a diversidade existente entre os países americanos que se constituíram como colônias.
O fato de fazer uma crítica à Caio Prado, sem negar totalmente seu ponto de partida fez com que as formulações de Cardoso tivessem um caráter oscilante. Após ter-se distanciado de Caio Prado em uma direção que o afastava dos vínculos da colônia com o mercado externo, viu-se obrigado a retroceder, reconhecendo o peso desta interpretação na definição de colônia, pois o destaque por ele dado às estruturas internas não dava conta das relações mais amplas desta com o mercado mundial. Tentou, então, encontrar um ponto de equilíbrio entre a concepção que atribuiu a Caio Prado, de valorização do mercado externo, e as suas formulações, que valorizavam as estruturas internas.
Talvez o momento em que Cardoso deixou claro esta dificuldade foi quando, ao fazer um balanço da produção historiográfica dos últimos tempos, apontou para um perigo que vislumbrou nas análises que seguiam sua orientação. Nestas, para se contrapor à ênfase unilateral que Caio Prado teria concedido ao mercado externo, corria-se o risco de cair no extremo oposto, cometendo-se o mesmo equívoco deste autor, agora com sinal trocado. Por isso, Cardoso alertou para o fato de que se poderia esquecer exageradamente o que denominou dependência colonial e neocolonial. Neste caso, a ênfase exagerada recairia sobre os mecanismos internos da colônia. (Cardoso, 1988, p. 58)
Também nos comentários e notícias acerca do debate que foi travado em torno da análise da colonização a partir da crítica de Cardoso a Caio Prado fica evidente a dificuldade para se encontrar uma linha divisória entre as duas concepções. Neles sobressai também a preocupação em não adotar uma postura de exclusão. É o que ocorre com os comentários de Boris Fausto (1995) e Laura de Mello e Souza (1989). Ambos reconhecem a importância das observações críticas de Cardoso, mas procuram conciliá-las com as formulações de Caio Prado.
Não deixa de ser interessante notar que a crítica de Cardoso tenha incidido no vínculo entre a economia colonial e o mercado externo, justamente o aspecto fundamental da interpretação de Caio Prado e, contraditoriamente, que ele tenha aceitado a idéia de ser este vínculo o elemento decisivo para a caracterização da economia colonial.
Mantendo-se circunscrito às formulações de Caio Prado, Cardoso procurou antes corrigi-las do que apresentar uma perspectiva alternativa, ainda que acredite ter feito isso. Mas, a crítica à Caio Prado como, aliás, a crítica a qualquer historiador, não deve recair sobre o que poderíamos considerar suas deficiências e equívocos. A rigor, não existem deficiências ou equívocos na análise de um historiador, principalmente em se tratando de um que soube captar o espírito da sua época, como é o caso de Caio Prado. O privilégio que teria dado ao mercado externo não constitui uma deficiência sua, mas faz parte da sua interpretação.
A crítica deve compreender a interpretação na própria história, tomando-a como expressão de uma determinada posição política, como uma dada postura diante da história. Assim, se Caio Prado não deu a devida importância às estruturas e contradições internas das sociedades coloniais; se, em sua análise, estiveram ausentes conceitos como forças produtivas e luta de classes, isto não se deve a uma distorção ou deficiência da sua análise. Nas circunstâncias em que elaborou sua interpretação, ele não tinha porque as considerar. Para se efetuar uma análise de Caio Prado devemos antes vinculá-lo à história do seu tempo do que confrontá-lo com uma suposta realidade, exigindo-se dele uma formulação que pertence ao crítico. Da mesma forma, quando Cardoso formula o conceito de brecha camponesa, o faz segundo as necessidades de suas próprias posições.
Deste modo, se Caio Prado não tomou o mercado interno como objeto central da sua análise nem considerou os sistemas produtivos, isto deriva de que sua interpretação da história do Brasil tinha por objetivo precisamente apontar para o processo de formação deste mercado, cujo crescimento, a seu ver, estava sendo obstaculizado pelas características exportadoras - coloniais - da economia. Em sua opinião, os sistemas produtivos somente se fortaleceriam, o mercado interno se constituiria e a sociedade somente se organizaria com a liquidação deste caráter exportador.[3] Assim, não podemos exigir que Caio Prado trate de questões que não apenas não estavam no seu horizonte teórico, como se encontravam em contradição com sua interpretação.
Mas, para os nossos propósitos, o que importa assinalar é que Cardoso não contestou, em última análise, o entendimento de colônia como produção para o mercado externo, fundamento da interpretação de Caio Prado.
Jacob Gorender, que também questionou a interpretação de Caio Prado, vinculou-se, de certa forma, à corrente inaugurada por Cardoso, o que não significa existir absoluta concordância entre ambos. Em sua análise da historiografia brasileira relativa à colonização, Gorender reconheceu a contribuição de Caio Prado para o desenvolvimento dos estudos históricos, uma vez que superou a interpretação baseada na teoria dos ciclos. Caio Prado teria descoberto neles “[...] manifestações seqüenciais de algo mais profundo, de uma realidade permanente e imanente - a estrutura exportadora da economia colonial”. Deste modo, teria ultrapassado a história comercial, avançando em direção ao conhecimento do arcabouço econômico-social. Todavia, segundo este autor, este avanço encontrou logo seu limite, pois Caio Prado analisava a história da perspectiva do comércio exterior. Para Caio Prado, este comércio imporia “[...] à colonização e à evolução brasileira o fim, o ‘sentido’ [...]”, com o que não concorda Gorender.
Para romper com esta maneira de analisar a história do Brasil, que denominou circulacionista, por se prender à circulação, ao invés de à produção, Gorender tomou o escravo como categoria explicativa central. De acordo com Fragoso, este autor teria levado a formulação de Cardoso até às últimas conseqüências ao afirmar pela existência de um modo de produção colonial regido por leis próprias de funcionamento.
Não acompanharemos o empenho deste autor na formulação do modo de produção escravista colonial. Importa aqui ressaltar que, apesar de pretender ter rompido com a interpretação de Caio Prado, da mesma maneira que Cardoso, Gorender permaneceu no seu interior. Podemos comprovar isto através das características que atribuiu ao que denominou plantagem escravista. Em primeiro lugar, destacou o fato de a plantagem ser uma produção voltada para o mercado mundial, ser uma “[...] produção de gêneros comerciais destinados ao mercado mundial” (p. 89).
Ainda nesta obra, ao conceituar colonial do ponto de vista econômico, Gorender definiu-o como a característica de uma “[...] economia voltada principalmente para o mercado exterior, dependendo deste o estímulo originário ao crescimento das forças produtivas” (p. 170). Como podemos verificar, tal como Caio Prado, aquele autor também definiu a economia colonial como produção para o mercado externo. E, ainda que sua interpretação possa divergir, sob certos aspectos, da de Caio Prado, ele funda sua análise sobre a mesma base. Manteve-se, assim, na essência, no interior das formulações de Caio Prado.
Se estes dois historiadores, que consciente e deliberadamente buscaram superar Caio Prado, não conseguiram romper com a linha mestra da sua interpretação na medida em que aceitaram sua caracterização de economia colonial, o que podemos esperar de outros estudiosos que se colocaram como seguidores do autor de Formação do Brasil Contemporâneo e se limitaram a lhe fazer acréscimos à sua interpretação? Também estes não questionaram o ponto central dela. Desta maneira, apesar das críticas e dos acréscimos, o fato é que a historiografia manteve-se no interior da interpretação de Caio Prado, ficando circunscrita aos seus limites.
Mesmo que alguns historiadores tenham chamado a atenção para a circunstância de o vínculo da produção colonial com o mercado externo ser de importância crucial na interpretação de Caio Prado, por ser o eixo central da sua análise, nenhum deles compreendeu este vínculo enquanto caracterização da produção colonial própria da interpretação de Caio Prado. Antes, tomaram-no como um aspecto do processo real. Por conseguinte, nenhum deles conseguiu - ou pretendeu - fazer-lhe uma crítica de fundo.


A CONCEPÇÃO DE COLÔNIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

A caracterização de colônia e a interpretação da história do Brasil de Caio Prado estão não só vinculadas entre si como são inseparáveis, formam um todo. Na verdade, uma é conseqüência da outra. Em virtude disso, os historiadores que fizeram desta caracterização seu ponto de partida para criticar o peso excessivo dado ao mercado externo, acrescentando que a sociedade colonial reagiria aos impulsos externos, constituindo um mercado interno de dimensões capazes de formar interesses de outra natureza, enfim, mesmo que tenham dado ênfase às estruturas internas da colônia, o fato é que, em última instância, não conseguiram romper com a essência da formulação de Caio Prado. Portanto, antes a reafirmaram do que a questionaram. Não é surpreendente, pois, que a essência desta tenha permanecido inalterada durante todas estas décadas. Aliás, há que se ressaltar que a força da interpretação de Caio Prado e a sua influência sobre os historiadores podem ser avaliadas pelo fato de que colonial tornou-se, entre estes, sinônimo de produção para o mercado externo.
A conseqüência de a historiografia ter-se mantido no interior desta interpretação foi que os historiadores, quando tentaram definir suas relações com Caio Prado, colocaram-se de modo peculiar. Ao mesmo tempo em que pretendem se não ter rompido com sua interpretação, ao menos ter inovado alguns dos seus aspectos, consideraram-no como o historiador que havia promovido uma verdadeira revolução no campo da ciência da história no Brasil. Assim, independentemente se críticos ou seguidores definiram-se como seus herdeiros e continuadores.[4]
Mas, mais importante do que constatar que estas críticas ficaram circunscritas à formulação central de Caio Prado é observar que nelas tudo ocorre como se a questão fosse uma melhor compreensão das relações coloniais. Entretanto, não era isto que estava em jogo para este autor. O fundamental da sua interpretação de colônia é o papel que desempenhou no que poderíamos denominar de teoria da história do Brasil ou interpretação do Brasil, e, principalmente, verificar as conseqüências políticas que Caio Prado dela extraiu.
Deste modo, ainda que a interpretação de Caio Prado pareça condizente com o processo histórico e por isso mesmo tenha ganhado força, a ponto de vigorar até nossos dias, é preciso lembrar que ela é produto da história. Sua origem deita raízes nas questões colocadas nas décadas de 30 e 40 do nosso século. Faz parte, pois, das lutas políticas então travadas. Sob este aspecto, podemos afirmar, é no posicionamento de Caio Prado diante destes embates e na sua proposta política que devemos encontrar os fundamentos que o levaram a interpretar o passado desta maneira.
É verdade que o oposto parece ser o correto, isto é, que a proposta de formação da nação decorre da condição colonial da economia brasileira. O próprio autor reforça esta impressão ao afirmar que foi buscar no passado colonial os fundamentos que explicavam o Brasil contemporâneo. Temos, então, a impressão de que Caio Prado buscou no passado a chave para interpretar o presente e propor soluções para o futuro: “É por isso que para compreender o Brasil contemporâneo precisamos ir tão longe; e subindo até lá, o leitor não estará se ocupando apenas com devaneios históricos, mas colhendo dados, e dados indispensáveis para interpretar e compreender o meio que o cerca na atualidade” (Formação do Brasil Contemporâneo, p.10). Ficamos com a impressão de que a proposta política de Caio Prado constitui decorrência lógica de sermos uma economia dependente do comércio internacional.
Entretanto, não é sua interpretação do passado que o leva a esta conclusão. Ao contrário, a chave para entendermos a caracterização de colônia de Caio Prado reside na proposta política, que aparece expressa na convicção de que a solução para os problemas do Brasil estaria na sua constituição como nação. Em outras palavras, é o posicionamento diante do presente que o leva a interpretar o passado daquela maneira.
A rigor, a interpretação do passado e a proposta política para o presente e futuro formam uma unidade. O posicionamento de um autor diante da história faz com que sua interpretação do passado e a sua atitude política sejam uma única coisa. Fizemos esta distinção apenas porque o fim da nossa discussão é ressaltar que a interpretação histórica, no caso presente, a de Caio Prado, do nosso passado colonial, está estreitamente vinculada à idéia de existir no Brasil uma tendência para a constituição de uma economia nacional. A luta política a ser travada, então, seria entre os setores ligados à forma colonial e os partidários da formação de uma economia nacional.
Por conseguinte, a crítica a ser feita não pode incidir sobre a interpretação de Caio Prado da época colonial mediante a contraposição de uma outra interpretação dessa época, sob pena de sairmos da história. A questão não reside no fato deste autor ter priorizado os vínculos com o mercado externo para explicar a sociedade colonial. Esta prioridade já é conseqüência da alternativa que colocava para o Brasil no presente. O ponto central da crítica não deve residir na sua interpretação da nossa história colonial, mas nos motivos que o levaram a interpretá-la desta maneira, ou seja, compreendê-lo em sua historicidade.
Para fazer sua crítica, importa indicar a conexão entre sua afirmação de que a solução para os nossos problemas estava na nossa constituição como nação e sua interpretação da história do Brasil, em particular sua caracterização da economia colonial como produção para o mercado externo.
Não podemos, também, transformar Caio Prado em um historiador do nosso passado colonial, retendo o que julgamos válido da sua análise da colonização e acrescentando-lhe novos elementos, que a ampliariam. Este tem sido o procedimento dos historiadores que, aceitando sua interpretação em suas linhas gerais a consideram insuficiente. Ao procederem deste modo, não apenas desvincularam a interpretação do passado colonial de Caio Prado de suas propostas políticas, descaracterizando suas formulações, como acabaram por fazer com que estas últimas viessem a passar de contrabando, já que, neste caso, não existe uma explicitação das mesmas. Ao aceitarmos a caracterização de colônia como produção para o mercado externo, estamos aceitando igualmente as conseqüências desta interpretação, qual seja, a idéia de que a solução para os problemas do Brasil estaria na sua constituição como uma economia nacional, autônoma e independente.
Há, pois, uma íntima conexão entre a afirmação de que os problemas do Brasil seriam solucionados por meio da sua estruturação nacional e a concepção de colônia como formação social dependente, que se define em oposição à nação.
Esta maneira de apresentar o vínculo entre a concepção de colonização de Caio Prado e sua formulação de que caminhávamos para a constituição de uma economia nacional distingue-se, a nosso ver, das que até então foram feitas. Com efeito, é verdade que, em diversas oportunidades, alguns autores chamaram a atenção para este vínculo. No entanto, fizeram-no a partir da interpretação de Caio Prado, ou seja, antes como uma adesão a esta formulação do que como ponto de partida para uma análise desta interpretação. Em decorrência, entenderam que a constituição da economia nacional era conseqüência do fato de o Brasil ter sido uma colônia e não uma proposta política.
Poder-se-ia argumentar que Caio Prado era um autor marxista. Por conseguinte, sua interpretação decorreria da aplicação deste método. Esta é, com efeito, a maneira como os estudos sobre Caio Prado costumam considerá-lo. Todavia, ainda que seja comum proceder-se assim, o fato é que, para este autor, o futuro próximo do Brasil era o desenvolvimento da nação, a organização da economia nacional. Ele não era partidário nem do capitalismo ortodoxo, nem do socialismo. Em sua opinião, estávamos na época de constituição de uma economia independente do comércio internacional. Em obras como Esboço dos fundamentos da teoria econômica e História e desenvolvimento, encontramos afirmações tanto sobre a impossibilidade de um desenvolvimento capitalista nos moldes do século XIX como, embora com menos freqüência, afirmações de que o socialismo seria prematuro entre nós. No Esboço dos fundamentos da teoria econômica, Caio Prado afirma claramente que a etapa de desenvolvimento do Brasil era a da economia nacional e não a do socialismo: “A socialização dos meios de produção, premissa dessa transformação [a libertação do trabalho e a melhor repartição dos benefícios econômicos], é certamente prematura nos países subdesenvolvidos com seu baixo nível industrial e a larga fragmentação e dispersão das atividades econômicas” (p. 222)
Deste modo, não foi a adesão de Caio Prado a uma determinada corrente filosófica que o levou a interpretar nossa história da forma como o fez. Antes, foi o modo como analisou o Brasil contemporâneo que o levou não apenas a entender da maneira que entendeu nossa história, como ter do marxismo uma compreensão bastante particular. Como, para Caio Prado, o Brasil contemporâneo caracterizava-se por ser uma economia dependente do mercado externo, daí deriva sua afirmação de que o Brasil continuava, na sua essência, um país com estrutura econômica colonial. Portanto, a luta política girava em torno da formação de uma economia nacional.
Evidentemente que a produção que se estabeleceu no Brasil na época colonial, por estar fundada no comércio mundial, era uma produção que, podemos assim dizer, estava voltada para a exportação, para o mercado externo. Mas, disto não decorre que devamos fazer deste aspecto o eixo da interpretação da história do Brasil. Também não deriva daí que devamos caracterizar o Brasil contemporâneo (isto é, o Brasil entre os anos 1942 e 1972, período de publicação dos seus livros) como uma economia dependente. Foi por ter interpretado o Brasil contemporâneo como uma economia periférica, dependente, que Caio Prado considerou a produção para o mercado externo como a característica fundamental da economia colonial.
Esta formulação levou alguns historiadores a atribuírem equivocadamente a Caio Prado uma afirmação que este não fez, ou seja, caracterizar a economia colonial como capitalista. Este equívoco deu ensejo a uma crítica bastante superficial e que, paradoxalmente, atribuiu esta superficialidade aos autores que criticava. Referimo-nos à crítica que afirma que a interpretação da produção colonial como capitalista funda-se no fato desta ser uma produção destinada ao mercado mundial, capitalista.
Entretanto, ao caracterizar a colônia como produção para o mercado externo e afirmar que nossa evolução histórica definia-se pela constituição da economia nacional, Caio Prado passou ao largo da idéia de colônia como capitalista. Esta sequer pertence ao espírito da sua interpretação, ao menos no seu livro Formação do Brasil Contemporâneo. Os critérios adotados por Caio Prado encontram-se distantes de qualquer tentativa de classificar a colônia neste sentido.
A maior objeção que fazemos às formulações dos autores que, desde fins da década de 1970, criticaram Caio Prado pelo suposto privilégio que ele teria concedido ao mercado externo, entendendo que tudo o que existia na colônia era função deste mercado, é o fato de somente terem invertido sua proposição. Frente à afirmação de que o mercado externo ditava a vida da colônia, opuseram outra, a de que esta estrutura social reagiu diante dos impulsos externos. Assim, como mostramos, mantiveram a caracterização da produção colonial como produção para o mercado externo, embora, para eles, nem tudo se explicasse por esse vínculo.
Não levaram em conta que a mesma pertencia a um conjunto maior, à proposta política de Caio Prado. Não consideraram que o entendimento de colônia como produção para o mercado externo tinha o objetivo de alicerçar a afirmação de que o caminho a ser trilhado pelo Brasil, a fim de solucionar seus problemas e, portanto, desenvolver-se, era o da constituição da economia nacional. Assim, a pedra de toque da interpretação de Caio Prado da história do Brasil é sua concepção de colonização, o sentido da colonização. Tudo o mais deriva desta formulação inicial.
Aos historiadores que criticaram Caio Prado pelo privilégio que confere ao mercado externo, poderíamos indagar pela conseqüência política da interpretação que deram do passado colonial. Ou seja, poderíamos indagar pelo desdobramento político da sua compreensão da economia colonial não como função do mercado externo, mas como uma estrutura que tinha vida e interesses próprios.
Sob este aspecto, e na medida em que estava articulada com uma visão de conjunto da história do Brasil, consideramos a interpretação de Caio Prado superior à dos que o sucederam. Aliás, isto se deve ao fato de sua história do Brasil ser antes uma reflexão acerca desta história do que uma tentativa de sua reconstituição. Nele, o passado não é analisado em função do próprio passado, motivado pelo desejo de melhor conhecê-lo, mas em função das lutas do presente.
Foi por isso que procuramos mostrar que os historiadores que, pretendendo criticar Caio Prado, aceitaram sua caracterização de colônia, permaneceram no interior da sua interpretação. Além disso, não é produzindo outra interpretação da época colonial que se poderá romper com a de Caio Prado. Isto somente pode ser alcançado a partir da discussão do seu próprio ponto de partida, ou seja, a partir da consideração de que sua proposta para o Brasil e o modo como interpretou seu passado formam uma unidade.
Ao afirmar que a evolução histórica brasileira caracterizava-se pela transição da economia colonial para a nacional, Caio Prado não estava mostrando o processo histórico real, mas expressando sua postura política. É a formulação ou proposição política de que os problemas do Brasil encontrariam sua solução na sua constituição como nação - tal como ele entendia nação -, que o levou a afirmar que nossa evolução caminhava no sentido de a economia deixar de ser colonial para se tornar nacional. Esta formulação é, e isto deve ser frisado, uma proposta política, não uma descrição do processo real.
Assim, como podemos verificar a caracterização da produção que se estabelece no período colonial como produção voltada para o mercado externo, fruto do posicionamento do autor, possibilita desdobramentos políticos. Não podemos desvincular a análise que Caio Prado faz do passado colonial da afirmação de que o processo histórico do Brasil é o da constituição da nação. Desta maneira, o estudo do período colonial tem sua razão de ser e ganha sentido na obra de Caio Prado única e exclusivamente se considerarmos que concebeu a formação da nação como a resultante da evolução histórica.
Sob este aspecto, podemos afirmar que, a rigor, Caio Prado não é um historiador do nosso passado colonial. Se este autor analisa a época colonial, o é unicamente para nela buscar os elementos que lhe permitam fazer uma reflexão sobre o conjunto da nossa história e oferecer uma direção para o desenvolvimento do Brasil.
Foi por discordar das propostas existentes e dos caminhos que a história estava tomando que Caio Prado buscou alternativas. Caio Prado discordava dos que acreditavam que o Brasil poderia se desenvolver nos moldes clássicos do capitalismo e, em conseqüência, seguiam os princípios da Economia Política Clássica. Discordava também dos que propunham a luta direta pelo socialismo. Por conseguinte, transformá-lo em historiador da Colônia significa amputá-lo; implica retirar sua substância, qual seja, a de ser um autor preocupado com os destinos do país.
Como a interpretação da história do Brasil de Caio Prado é extremamente expressiva e exerce grande influência sobre os historiadores, seus estudiosos geralmente se esquecem que sua interpretação tem como ponto de partida o modo como se posicionou frente às questões de sua época. Militante político, autor que refletia acerca dos destinos do Brasil, interessado em encontrar soluções para seus problemas, concordemos ou não com ele, o fato é que Caio Prado fez da sua interpretação do passado colonial não apenas um instrumento de crítica, como também a diretriz que deveria nortear os caminhos da luta política.
Como salientamos, os estudos sobre a obra de Caio Prado ou não estabeleceram uma conexão entre sua interpretação da história e sua proposta política ou, quando o fizeram, fizeram-no do interior da sua formulação. Mas, de um modo geral, predomina nestes estudos a ligação entre sua análise e a concepção de história à qual aderira, o marxismo. Em decorrência, costuma-se explicar a compreensão de Caio Prado da nossa realidade colonial pelo fato deste ter utilizado o método marxista - apressando-se todos, é verdade, em ressaltar que o fez de maneira criadora, sem ceder a possíveis esquematismos e mecanicismos.[5]
Notamos anteriormente que Caio Prado caracteriza a produção colonial como produção para o mercado externo precisamente porque defende a idéia de que a solução para os problemas encontrava-se na formação da nação. Não é, pois, nosso passado colonial - com tudo o que Caio Prado lhe atribui - que impõe que nos constituamos como nação. Antes, é a proposta de constituição como nação que o leva a analisar a produção colonial desta maneira. Sua ênfase no vínculo da produção com o mercado externo faz, deste modo, sentido por ser o suporte da sua proposta política. A afirmação de que nossa evolução histórica expressava-se na constituição do Brasil como nação faz parte de sua proposta política. Com efeito, Caio Prado atribuiu à idéia de nação determinadas características que estão em consonância com sua interpretação de colônia que, por conseguinte, também está em conformidade com sua concepção de história. Assim, enquanto caracteriza colônia como produção que atendia necessidades que lhe eram estranhas, nação é definida como uma economia voltada para atender as necessidades da sua população. Em História e desenvolvimento, Caio Prado detém-se no novo sistema que se estabeleceria por meio da ruptura com o passado colonial e a conseqüente organização da economia nacional: “Novo sistema este que tem por base e natureza a produção para o mercado interno e precipuamente para a satisfação das necessidades econômicas do país e de sua população” (p. 81)
Ainda nesta obra, Caio Prado define a economia colonial em contraposição à nação, afirmando que, ao voltar-se para o mercado exterior, ela deixava sua população desatendida quanto às suas necessidades: “E assim o que deveria normalmente constituir o essencial de uma economia, que é prover ao sustento alimentar dos indivíduos nela engajados, isto sempre foi no Brasil não apenas subestimado, mas até mesmo, freqüentemente, quase por inteiro desatendido” (p. 45-46)
Observamos que Caio Prado, ao afirmar que a solução dos problemas do Brasil viria com a organização da sua economia em bases nacionais, opunha-se a duas propostas para o nosso futuro: a que entendia que a solução estava no desenvolvimento capitalista e a que pretendia que esta residia na revolução socialista. Isto fica claro no livro Esboço dos fundamentos da teoria econômica. Nele, Caio Prado procurou formular uma nova teoria econômica que deveria romper com a teoria econômica ortodoxa, própria dos países capitalistas desenvolvidos, e levar em conta as circunstâncias específicas das economias subdesenvolvidas. Julgava imprescindível uma teoria que considerasse a situação dos países dependentes, subdesenvolvidos. Em sua opinião, as condições históricas gerais - economia trustificada - eram distintas das que haviam possibilitado a países como a Inglaterra e os EUA desenvolverem-se. A seu ver, era necessário romper com a dependência do sistema mundial para que um país pudesse se desenvolver harmonicamente. Pretendeu então fazer um esboço dos fundamentos sobre os quais a análise econômica deveria se assentar a fim de articular melhor a teoria com a prática: “Isso é condição essencial para a elaboração da teoria econômica, particularmente em países como o Brasil onde se é obrigado a partir de modelos teóricos largamente distanciados, em muitos casos, da experiência real e da ação própria daqueles países.” (p. 9)
Esta crítica não se dirigia apenas à Economia Política Clássica (portanto, ao liberalismo), mas também às propostas fundadas no marxismo. No seu entender, a formação de uma economia nacional afastava-se tanto da primeira quanto do segundo. Vimos como divergia dos que pretendiam alcançar o desenvolvimento por meio de uma maior inserção do país no mercado mundial. Frente à proposta de socialismo, defendeu a idéia de um desenvolvimento nacional, autônomo.
Ao longo da sua trajetória, nos trabalhos que publicou, Caio Prado formulou e insistiu na idéia de que os problemas brasileiros provinham da sua origem colonial e que sua solução estava na superação deste caráter colonial da economia, com a conseqüente constituição do Brasil como nação. Ressalte-se sua coerência teórica: nunca abandonou este núcleo da sua interpretação, fazendo do mesmo o ponto de partida para suas considerações acerca de questões políticas e econômicas. Com efeito, como salientamos, desde a primeira exposição desta idéia, em Formação do Brasil Contemporâneo, até seus últimos escritos mais significativos, como A revolução brasileira, de 1966, e História e desenvolvimento, escrita em 1968 e publicada em 1972, esta formulação foi mantida, recebendo apenas algumas ampliações, ganhando contornos mais definidos.
Devemos ressalvar, todavia, que na Formação do Brasil Contemporâneo. este programa não se encontra explicitado nem formulado de modo sistemático como nas obras seguintes. Mas ainda que apareça apenas de forma difusa ao longo da obra, encontra-se aí presente. Constatamos isto de dois modos. Primeiro, de forma indireta: podemos inferir da sua leitura que a tarefa política consistia na luta pela transformação do Brasil em nação, com a conseqüente liquidação do passado colonial. Segundo, de forma direta, na medida em que Caio Prado insiste em afirmar, em várias oportunidades, que a evolução brasileira caracterizava-se pela constituição de uma economia nacional.
Mas, é em A revolução brasileira que esta idéia está expressa de modo explícito, articulado e detalhado. Nesta obra, Caio Prado critica os que caracterizavam a revolução brasileira valendo-se de esquemas teóricos preestabelecidos e importavam modelos para proporem as tarefas políticas no Brasil. Em sua opinião, dever-se-ia buscar na própria história do Brasil sua dinâmica para, então, encaminhar-se as propostas políticas. Esta dinâmica não é outra que a já descrita em Formação do Brasil Contemporâneo, ou seja, a passagem da economia colonial para a nacional. Sob certos aspectos, A revolução brasileira é uma espécie de desdobramento e atualização de Formação do Brasil Contemporâneo.
Devemos ressaltar, no entanto, que, se Caio Prado entendeu que a manutenção das estruturas coloniais era a fonte dos nossos problemas e, por conseguinte, concebia sua solução na liquidação deste caráter colonial através da constituição da nação, nem por isso encarou a colonização de uma perspectiva negativa. De fato, em Formação do Brasil Contemporâneo, considerou que a colonização desempenhou papel decisivo, já que através desta haviam se constituído os fundamentos da nacionalidade. Povoara-se um território semi-deserto, organizara-se uma vida humana que divergia tanto da que nele existia como, em escala menor, da dos portugueses. Enfim, havia-se criado algo de novo no plano das realizações humanas.
No seu entender, justamente por ser nos trópicos, a colonização não poderia ter assumido outra forma. Fruto de circunstâncias que se impuseram, não havia escolha. Daí sua crítica aos historiadores que não consideraram as circunstâncias em que ocorrera, a expansão marítima e comercial. Por isso, quando comparou a colonização dos trópicos com a da zona temperada, foi tanto para destacar o que considerava a distinção fundamental que existia entre uma e outra como para mostrar que a diversidade das condições naturais determinou a atração de colonos com interesses completamente distintos. Deste modo, as próprias condições naturais teriam feito a seleção.
Se, em Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado considerou a colonização de uma perspectiva positiva, na medida em que havia criado as condições para a constituição de uma nação; se entendeu que a colonização, pelas circunstâncias que a envolveram, tinha necessariamente que se constituir como produção para o mercado externo, nem por isto concluiu que esta circunstância justificava sua existência eternamente. Ao contrário, afirmou que o sistema colonial havia cumprido seu papel e as novas circunstâncias tornavam sua estrutura insuficiente para atender às exigências recém-criadas.
Esta interpretação sofreu uma mudança em História e desenvolvimento. Nesta, Caio Prado iniciou o capítulo IV, que trata da colonização do Brasil e, portanto, dos primórdios e fundamentos da nossa história, afirmando que o açúcar foi, no Brasil, uma mercadoria: “O açúcar é no Brasil, antes de tudo e mesmo com exclusividade, mercadoria, objeto de comércio.” (p. 38) E explicou o que entendia por mercadoria: “Produz-se não para consumo dos produtores, mas para vender (e mesmo vender para fora do país, para exportar), a fim de apurar na transação um lucro monetário.” (p. 38) Ao explicar uma coisa pelo que deveria ser, ao invés de defini-la pelo que é, Caio Prado colocou o existente sob uma luz negativa. Procedeu assim por entender que a produção brasileira deveria estar voltada para atender às necessidades da população. Sua definição é mais uma crítica moralista do existente do que uma tentativa de compreensão da produção colonial.
No seu modo de ver, o caráter mercantil da produção colonial foi prematuro. Por isso, condenou o fato de a colonização ter-se baseado em uma agricultura puramente comercial quando nos demais países ela era virtualmente desconhecida. (p. 38)
Duas questões merecem serem consideradas. A primeira é que Caio Prado percebeu que a colônia foi estabelecida através de uma forma de produção - a agricultura comercial - que praticamente inexistia na Europa. Era então um fato recente, moderno, conforme expressão sua. E, o que é mais importante, na Europa, ao contrário da colônia, a agricultura mercantil somente surgiu através da sua inserção em uma economia preexistente. Mas, ao invés de encarar este fato como a comprovação do avanço histórico representado pela colonização, que teria dado início a uma forma da existência humana vinculada diretamente à troca e à obtenção do proveito, considerou-o de uma perspectiva negativa, julgando-o prematuro.
A segunda questão é que a produção comercial, principalmente a que visava o mercado externo, é tratada como uma atividade externa aos homens por produzir para o comércio e não para a subsistência. (p. 38-39)
Com efeito, de tal maneira Caio Prado identificou o que denomina economia nacional como uma forma que, por atender aos verdadeiros interesses da população, corresponderia à natureza humana, que não considerou a produção mercantil, a produção voltada para o lucro, como uma forma de existência dos homens. Entendeu-a como contrária à existência humana. Não é casual que tenha afirmado que “[...] a colônia não teve nunca uma organização econômica que mereça este nome [...]”, constituindo um organismo meramente produtor. (Formação do Brasil Contemporâneo, p. 128-129) No seu modo de ver, a forma de existência dos homens era a fundada na produção direta da sua subsistência. E, ressalte-se, nos seus comentários sobre a experiência das nações européias que desenvolveram relações capitalistas durante o século XIX, afirmou que estas possuíam uma produção que, em última instância, atendia às necessidades da sua população. (História e desenvolvimento, p. 79)
Deste modo, na sua visão, as relações estabelecidas na colônia, por visarem o mercado externo, atendiam a necessidades alheias, não nacionais. Considerava-as como relações que nada tinham a ver com os indivíduos que habitavam o Brasil. Antes, seriam os interesses de classe, de uma minoria, que tinham imposto uma estrutura social que, nas suas palavras, não provia o sustento alimentar dos indivíduos engajados na produção. (p. 48-49)
A produção mercantil era, pois, uma atividade na qual estava interessada (porque se enriquecia) apenas uma parcela diminuta da sociedade, enquanto a grande maioria permanecia à margem. Não era uma forma social por meio da qual os homens produziam sua vida, mas um negócio: “E assim o que deveria normalmente constituir o essencial de uma economia, que é prover ao sustento alimentar dos indivíduos nela engajados, isto sempre foi no Brasil não apenas subestimado, mas até mesmo, freqüentemente, quase por inteiro desatendido.” (p. 45-46)
Na produção voltada para a venda (e venda para o exterior, o que, no seu entender, agravava o problema), estaria a origem das precárias bases que redundou na falta de organicidade econômica: “[...] falta de organicidade econômica a que as precárias bases da colonização condenaram a nascente sociedade brasileira.” (p. 39)
Esta prematura mercantilização das atividades econômicas fundamentais da colônia teria trazido consigo algumas conseqüências, quais sejam:

São elas em especial a organização e estrutura específicas da agricultura brasileira que trarão a marca iniludível do objetivo essencialmente comercial a que esta agricultura se destina. Isto desde a determinação da produção escolhida - que será de um gênero de grande expressão comercial na conjuntura internacional da época, como foi o caso do açúcar de cana, sem atenção a nenhuma outra consideração, - até o tipo e as dimensões das unidades produtoras, bem como as relações de produção e trabalho que nelas se estabelecem. Estas unidades serão a exploração em larga escala, de iniciativa do empresário que realiza um negócio e objetiva o lucro, nela invertendo os recursos financeiros (capital) de que dispõe; e na qual, sob a direção do mesmo empresário que comanda sem contraste e dispõe tudo em função única do seu objetivo comercial, conjugam-se grande propriedade fundiária monocultural e a numerosa força de trabalho servil. (p. 39)


Assim, se para alguns autores, o problema do Brasil estava no seu atraso, decorrente do seu capitalismo tardio, para Caio Prado, a raiz deste estava na precocidade da mercantilização das atividades produtivas.
A própria concepção de mercado externo de Caio Prado é bastante peculiar, integrada ao seu modo de interpretar a história do Brasil. Conceito largamente utilizado pelos economistas do século XVIII, quando possuía um conteúdo crítico, o mercado externo não diferia na essência do interno. De fato, quando os fisiocratas reivindicaram a liberdade de produção e comércio para a agricultura na França, isto é, reivindicaram liberdade para exportar os produtos agrícolas, não trataram o mercado exterior como algo distinto do interno. O intuito dos fisiocratas era retirar os obstáculos que se colocavam à expansão da agricultura capitalista. Ao reivindicar a liberdade de exportação, a intenção dos fisiocratas ia além do mero desejo de alargar o mercado interno. Reivindicaram a liberdade de comércio, sobretudo porque a proibição de exportação era parte inseparável de um conjunto de medidas que afastava do campo a aplicação de capital. As restrições e proibições à produção e ao comércio agrícolas impediam o pleno funcionamento das leis da produção burguesa: a oferta de produtos excedia à procura; por isso, havia superprodução e a conseqüente queda dos preços. Com isso, o valor não cobria os custos de produção. Abrir o mercado externo significava, deste modo, ampliar o comércio, condição vital para a agricultura. Assim, para os fisiocratas, mercado externo e mercado interno não se opunham. Ambos diziam respeito à vida dos homens.
Não é o que acontece com a interpretação de Caio Prado. Nesta, o mercado externo é entendido como sinônimo de estranho, alheio, como se fosse algo que não dizia respeito à vida dos indivíduos que habitavam a Colônia. Concebe a produção colonial como alienada, por produzir para atender a necessidades estranhas às da população que habitava e produzia na Colônia.
É somente no interior desta concepção que Caio Prado pode fazer a oposição produção colonial (mercado externo) - produção nacional (mercado interno) e afirmar que a produção colonial produzia para atender a necessidades estranhas à nossa, ao passo que, na economia nacional, a produção voltar-se-ia precipuamente para atender à população que vive no país.
A proposta para solução dos problemas do Brasil por meio da organização da economia nacional não surge com Caio Prado. Ela data, no Brasil, pelo menos dos fins do século XIX e início do XX. Ainda que possamos recuar mais, basta lembrar um autor da virada do século: Inocencio Serzedello Correa, um dos teóricos mais conseqüentes da formação da economia nacional. Partidário do protecionismo para a indústria nacional, autor de O problema econômico no Brasil, publicado em 1903, Serzedello interpretou nosso passado colonial de maneira a justificar a intervenção do Estado na economia como necessária para criar as condições para o desenvolvimento da indústria nacional. Para se ter uma idéia da ausência destas condições na situação de liberdade de produção e comércio, basta lembrar que, segundo este autor, importava-se até mesmo fósforos. A defasagem do Brasil diante das nações industrializadas tinha chegado a tal grau e as condições reinantes eram tão adversas à indústria nacional que somente uma decidida intervenção do Estado poderia garantir a existência de indústrias.
A interpretação da história do Brasil de Caio Prado está, a nosso ver, intimamente associada às tendências históricas que se desenhavam desde fins do século XIX e ganharam corpo no XX. Poderíamos englobar estas tendências sob uma única denominação: a luta pela indústria nacional ou, o que significa a mesma coisa, pelo protecionismo. Frente a estes autores, a novidade de Caio Prado parece residir no fato de ser um autor de esquerda, declaradamente marxista, que adotou uma formulação até então predominantemente burguesa.
Da mesma forma que podemos rastrear nos autores anteriores a Caio Prado formulações que nos permitem fazer algumas aproximações entre este e os críticos do sistema liberal, também podemos aproximá-lo dos partidários do protecionismo que lhe eram contemporâneos, como, por exemplo, Roberto C. Simonsen. A semelhança entre suas formulações e as de Caio Prado mostra-nos que isto não é destituído de propósito, em que pese terem se colocado em campos ideológicos distintos.
Tendo publicado grande parte dos seus escritos na década de 40, época em que Caio Prado formulou sua interpretação da história do Brasil, Simonsen viu, da mesma maneira que este, em nosso passado colonial não apenas a origem dos problemas brasileiros como sua perpetuação: “É fruto também desse sistema econômico, a adoção pelos grandes Estados, de definidas políticas coloniais, cuja interferência sofremos no passado e que ainda hoje atuam de modo inequívoco em nossa evolução, devido, principalmente, à natureza tropical da maioria de nossas produções.” (p. 31) Evidentemente, a conseqüência desta formulação é a afirmação da necessidade de se romper com esta situação herdada do passado.
A própria caracterização de economia colonial de Simonsen tem como ponto de partida o protecionismo e o nacionalismo. Segundo este, as principais atividades econômicas na Colônia estavam entregues aos elementos alienígenas. A produção, por sua vez, visava mais os interesses metropolitanos do que os nacionais.

São característicos da economia colonial: a direção das principais atividades econômicas nas mãos dos elementos alienígenas; a posse, por estes elementos, dos principais capitais aplicados na produção local; a orientação dessa produção, visando mais aos interesses da Metrópole do que ao bem estar dos colonos; subordinação, quanto à legislação, administração, transporte e distribuição, a elementos estranhos aos que se entregam diretamente ao trabalho produtivo local. (p. 390)


Como podemos observar, um dos aspectos mais importante da definição de economia colonial de Simonsen, o fato de a produção da colônia voltar-se mais para atender aos interesses da Metrópole do que o bem-estar dos colonos, aproxima-a bastante da caracterização de colônia de Caio Prado, que a definiu como produção voltada para atender necessidades alheias à sua população.
Podemos, então, afirmar mais uma vez que o estudioso do pensamento de Caio Prado deve antes buscar os vínculos de suas formulações com as dos partidários do protecionismo do que com o marxismo. Ressalte-se, todavia, que, apesar da proximidade entre as formulações de Caio Prado e as dos protecionistas, não estamos simplesmente traçando um sinal de igualdade entre elas. Evidentemente, um estudo aprofundado de Caio Prado implica compreender o que singulariza este autor no panorama historiográfico e político nacional. No entanto, para os nossos propósitos, o fundamental é apontar os possíveis nexos entre Caio Prado e os partidários do nacionalismo e do protecionismo no Brasil.
Por fim, uma observação a ser feita. Ainda que Caio Prado tenha assinalado os primórdios do século XIX como marco decisivo do início de transformações que deram origem ao processo de organização nacional da economia, não verificamos nesta época a existência de autores que defendiam a organização nacional da economia e o fortalecimento do mercado interno como condição do desenvolvimento. Antes, o que verificamos é a existência de autores que defendiam a integração completa da economia brasileira ao mercado mundial por meio da liberdade de produção e comércio como condição para o progresso e enriquecimento da nação. Consideravam esta integração, sem restrições de qualquer natureza, e não a ruptura dos laços comerciais com o exterior, o caminho para o desenvolvimento do país. Assim, combateram o sistema colonial e o sistema mercantil, mas não defenderam a constituição de uma economia nacional.
Na verdade, contrapunham ao sistema colonial, que tolhia a liberdade de produção e comércio, não um sistema baseado no intervencionismo, que colocava obstáculos ao comércio mundial, mas um sistema completamente oposto, fundado no livre comércio. Combateram, assim, as propostas de intervenção do Estado, no caso, da Coroa portuguesa, no sentido de proteger a indústria nacional, concedendo monopólios e privilégios aos que estabelecessem fábricas no Brasil. Dentre estes se destacam João Rodrigues de Brito e José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu.
Somente a partir dos anos 40 do século passado é que verificamos o surgimento de uma ideologia de caráter protecionista que estabeleceu uma relação necessária entre autonomia política e autonomia econômica, identificando esta última com a industrialização, conforme observou Wanderley Guilherme dos Santos. Foi somente mais tarde, entre os partidários do protecionismo, como Serzedello, que ganhou força a tese de que havíamos errado por não termos estabelecido medidas protecionistas por ocasião da ruptura dos laços que nos atavam a Portugal.


CONCLUSÃO

Centramos nosso estudo de Caio Prado na sua caracterização de economia colonial como produção para o mercado externo por entendermos ser esta a pedra de toque da sua interpretação da história do Brasil e, conseqüentemente, da sua proposta política.
Não tomamos, pois, esta caracterização como ponto central de forma arbitrária. Ela é fundamental em Caio Prado por causa da sua contrapartida: a formulação de que a ruptura da condição colonial do Brasil somente poderia ocorrer por meio do estabelecimento de uma economia com caráter nacional. Desta maneira, o modo como Caio Prado concebeu a colonização somente pode ser compreendido se associado à afirmação de que a solução para os problemas do Brasil residia na organização nacional da economia.
Assim, a seu ver, a evolução da história do Brasil tinha como fio condutor a transformação da economia colonial em economia nacional. Deste modo, o sentido da colonização somente ganha significado se complementado com a formulação de que a evolução do Brasil definia-se pelo processo de constituição da economia nacional.
A maneira como apresentamos o vínculo entre a concepção de colonização de Caio Prado e sua formulação de que caminhávamos para a constituição de uma economia nacional nunca tinha sido feita até então. É verdade que, em várias oportunidades, estudiosos chamaram a atenção para este vínculo. Todavia, fizeram-no no interior da concepção de Caio Prado, isto é, antes como adesão às linhas gerais de sua interpretação do que como ponto de enfoque para uma análise crítica. Em virtude disto, entenderam que a constituição da economia nacional era conseqüência lógica e natural do fato de o Brasil ter sido uma colônia. Desta maneira, antes reforçaram este vínculo do que tentaram compreender a interpretação de Caio Prado em sua dimensão histórica.
Assim, o sentido da colonização - formulação que somente pode ser compreendida se considerada a partir da proposta de Caio Prado de constituição da economia nacional - acabou assumindo foros de verdade. Com isso, uma interpretação da colonização motivada por uma proposta política acabou erigida em descrição do processo real.
Além disso, é importante salientar que na historiografia posterior a Caio Prado este nexo entre sentido da colonização e proposta política, sempre presente em sua obra, desaparece. Disso resulta que estes historiadores acabaram, implicitamente, partidários de uma formulação que tem suas raízes nas lutas políticas dos anos 30 e 40 do nosso século. Assim, julgando estarem tratando do passado, estes historiadores cuidavam, na verdade, do presente.


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_______ História e desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1972.
_______ Esboço dos fundamentos da teoria econômica. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1957.
_______ A Revolução Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966.
SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil. (1500-1820). 6ª edição. São Paulo: Nacional, 1969.
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
SOUZA, Laura de Mello e. O escravismo brasileiro nas redes do poder: comentário de quatro trabalhos recentes sobre a escravidão. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro: v. 2, n. 3, 1989.

[1] Este texto é, com modificações, parte do primeiro capítulo de nossa tese de doutorado, Construindo um mundo novo. Os escritos coloniais do Brasil nos séculos XVI e XVII.
[2] Nos comentários acerca da polêmica travada nos anos 70 e 80, a partir das críticas de Cardoso às análises da escravidão colonial, fica patente que este autor pretendia formular uma interpretação alternativa à de Caio Prado Júnior. Vejamos o que nos diz Linhares: “Nos anos 70, a discussão sobre os fundamentos desta sociedade foi enriquecida com novas contribuições: de Ciro F. S. Cardoso e Jacob Gorender, que desenvolveram o conceito de modo de produção escravista colonial em substituição ao dependentismo implícito no esquema de Caio Prado Júnior e seus seguidores; (...).” (Linhares, 1990, p. 9-10)
[3] A crítica a Caio Prado, por este ter afirmado que na colônia não existia uma sociedade propriamente dita, deriva de uma incompreensão das suas formulações e propostas políticas. Para Caio Prado, uma verdadeira sociedade somente poderia existir quando sua economia estivesse voltada para atender as necessidades da nação. Desta maneira, somente poderia existir uma sociedade a partir do momento que existisse uma nação.
[4] Vide o artigo, verdadeiro depoimento, de Novais sobre Caio Prado: “Suas obras marcaram profundamente nossa vida intelectual a partir de então, daí a dificuldade, e ao mesmo tempo a necessidade de iniciarmos a sua avaliação crítica. Pessoalmente, sinto um embaraço, quase diria emocional, mesmo para discutir Caio Prado Jr., de tal maneira ele marcou a minha formação, creio mesmo que a dos historiadores de minha geração”. NOVAIS, F. A. Caio Prado Jr na historiografia brasileira. In: História, Revista do Arquivo de São Paulo, v. 1, 1993, p. 17.
[5] Estudiosos da obra de Caio Prado costumam lembrar que o livro Formação do Brasil Contemporâneo era o primeiro de uma tríade que pretendia escrever sobre a história do Brasil. Escreveu apenas o volume dedicado à Colônia. Os demais livros seriam dedicados ao Império e à República. Costuma-se mesmo lamentar que Caio Prado não tivesse levado adiante seu projeto. Todavia, uma leitura atenta de Formação nos leva a concluir que Caio Prado não escreveu os outros dois livros por que, além dos motivos por ele arrolados, eram desnecessários do ponto de vista político. A questão fundamental que pretendia colocar já se encontrava exposta em Formação. Com efeito, apesar de tratar da Colônia, o livro tem como eixo o encaminhamento das questões políticas de sua época. Aliás, sob este aspecto o próprio título do livro é bastante expressivo. Tratando da formação do Brasil contemporâneo, Caio Prado mostra como este se formou por meio da colonização e que, à época da publicação de Formação, era o caráter colonial da economia brasileira que prevalecia, ainda que mudanças no sentido do estabelecimento de uma economia nacional já fizessem sentir. Assim, Caio Prado apresenta, em linhas gerais, a evolução da sociedade brasileira até os tempos contemporâneos e, por conseguinte, não restringe sua análise ao período colonial. Os livros que tratariam do Império e da República, ainda que fizessem uma análise desses momentos históricos, apenas seria uma confirmação da tese geral, ou seja, que a evolução da economia colonial para a economia nacional ainda não se completara.