terça-feira, maio 29, 2007

CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL.

CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL.
A colonização como produção para o mercado externo[1]

Claudinei Magno Magre Mendes2


INTRODUÇÃO


Nos estudos históricos relativos à colonização do Brasil tem-se definido colônia a partir do que se considera o caráter fundamental da economia brasileira deste período, qual seja, o de ser uma produção voltada para o mercado externo. Esta maneira de caracterizar a colônia, se não se iniciou com Caio Prado Júnior, pelo menos tem, neste, seu representante mais expressivo e que lhe deu maior sistematicidade. É no livro Formação do Brasil Contemporâneo, publicado em 1942, que Caio Prado, ao afirmar que havíamos nos constituído com o objetivo de fornecer alguns gêneros para o comércio europeu, expôs pela primeira vez esta concepção de colônia.
Este modo de conceber nosso passado colonial exerceu uma influência tão decisiva sobre os estudos históricos que a obra de Caio Prado tornou-se referência obrigatória para todo aquele que deseja estudar a história do Brasil, em particular a do período colonial. Aliás, teve tamanha difusão e foi aceito com tanta naturalidade que, como bem observou Luiz Israel Febrot, tornou-se senso comum, a ponto de se ignorar seu mentor.
Ao estudioso que examina a historiografia brasileira, particularmente a relativa ao período colonial, ao considerar Caio Prado, tem sua atenção despertada por três questões. A primeira é o fato de que, a partir de Formação do Brasil Contemporâneo, muito pouco do que se publicou no Brasil acerca da colonização ficou fora das linhas mestras da sua interpretação. A influência de Caio Prado estendeu-se aos estudos que, embora tenham abordado épocas posteriores ao período colonial, nele foram buscar os fundamentos da análise.
A segunda questão diz respeito à longevidade desta interpretação. Com efeito, surpreende que esta caracterização de colônia tenha durado tanto tempo e seja considerada válida, em suas linhas gerais, ainda em nossos dias, apesar das transformações sofridas pelo Brasil desde os anos 40 e do grande desenvolvimento verificado nos estudos históricos, inclusive com a emergência de novos objetos, novas abordagens e novos problemas.
Por fim, a terceira questão que merece destaque é o fato desta interpretação não somente vigorar até o presente como manter-se hegemônica. Efetivamente, desde sua formulação, não surgiu outra que a ela se contrapusesse e ameaçasse seu predomínio.
É verdade que, ao longo destes anos, surgiram várias críticas à maneira de Caio Prado conceber nosso passado colonial. Todavia, apesar dos seus esforços, estes críticos não contestaram sua viga mestra, isto é, a caracterização da colônia como produção para o mercado externo. Em conseqüência, moveram-se no interior das formulações gerais de Caio Prado. Disto resultou que, na sua essência, sua interpretação manteve-se incólume.


A CRÍTICA DA HISTORIOGRAFIA

A crítica de maior peso e sistematicidade a Caio Prado surgiu na década de 70. Nesta ocasião despontou uma tendência historiográfica cujo ponto de partida era a crítica ao destaque dado por Caio Prado ao mercado externo no estudo da época colonial. De acordo com esta tendência, este destaque fazia com que as colônias fossem vistas em função da economia européia, a qual lhes conferia sentido, com visível prejuízo das análises das suas estruturas sociais.
O primeiro historiador a fazer esta crítica foi Ciro Flamarion S. Cardoso.[2] Outros autores, como Antônio Barros de Castro, José Roberto do Amaral Lapa, Jacob Gorender, Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, apenas para citar alguns, de uma forma ou de outra, ainda que tivessem guardado diferenças entre si, seguiram seus passos. Em linhas gerais, Cardoso criticou as análises da escravidão colonial que tinham Caio Prado como matriz pelo fato de reduzirem a sociedade colonial a uma lógica ditada pela sua ligação com o mercado mundial em formação e com as metrópoles européias. Chegou a afirmar que estes estudos reduziam as sociedades coloniais a um quintal da Europa. Em função disto, deixavam de lado as estruturas internas formadas com a colonização, subestimando sua capacidade de reação diante das injunções externas.
Em resposta à concepção de Caio Prado, que qualificou de “obcecada pela plantation monocultora e exportadora”, Cardoso ressaltou a consistência interna e a relativa autonomia estrutural das sociedades coloniais. Afirmando que Caio Prado minimizava, de forma decisiva, a presença e a importância de outras relações de produção que não a escravista, Cardoso chamou a atenção para a existência de uma atividade que escapava ao sistema escravista e mercantilista, a qual denominou brecha camponesa. A questão da brecha surgiu, portanto, no bojo da tentativa de uma revisão das análises que se fundamentavam em Caio Prado. É interessante observar, neste sentido, embora não seja esta a questão principal, que os críticos desta tese não tenham observado as circunstâncias em que ela foi defendida.
Ao definir, como brecha camponesa, as atividades econômicas autônomas dos escravos que escapavam do sistema de plantation, Cardoso pretendeu valorizar o que denominou variáveis internas. Sua intenção foi mostrar que, na colônia, existia um conjunto de atividades que, escapando das injunções externas, davam à sociedade colonial uma estrutura que não era explicada somente por sua ligação com o mercado mundial. Chegou a considerar a brecha uma atividade universal no escravismo americano, portanto, um fato estrutural da escravidão colonial.
Todavia, embora tivesse dado destaque à dinâmica interna da colônia, o próprio Cardoso esclareceu que, com a questão da brecha, não pretendia estabelecer uma nova unilateralidade. Não se tratava de negar os vínculos externos da produção colonial, mas apenas nuançar o que considerava uma visão excessivamente monolítica do sistema escravista. Pretendia somente mostrar “[...] as colônias afro-americanas como sedes de verdadeiras sociedades, ativas, dinâmicas e contraditórias [...]”. (1987, p. 89-90)
Assim, por mais incisivas que tivessem sido as críticas de Cardoso, o fato é que, em última instância, elas não constituem uma completa negação da interpretação de colônia de Caio Prado. Ao contrário, ele partiu de suas linhas gerais. Matizou-a, é verdade, mas não a excluiu nem a negou, ou seja, não formulou uma nova interpretação do sistema colonial que se contrapusesse radicalmente à de Caio Prado. Para comprovarmos isso, basta verificar duas de suas obras, O trabalho na América Latina Colonial e Escravo ou camponês?
Na primeira, após ter tratado da colonização da América como um processo que se deu no bojo da expansão marítima e comercial européia, inclusive citando Caio Prado, Cardoso define as economias coloniais fundamentalmente como zonas periféricas e dependentes, voltadas para o mercado mundial. (1985, p. 19, 22 e 52)
Na segunda, caracteriza as colônias como “[...] bem integradas ao mercado mundial como exportadoras de produtos primários.” (1987, p. 59) Nesta maneira de ver está mantido o fundamento da interpretação de Caio Prado, qual seja, a afirmação de que a colônia se definia como uma unidade cuja produção estava voltada para o mercado externo.
O ponto de partida de Caio Prado permaneceu, portanto, intocado, pois, sem desprezar a ligação de colônia com o mercado externo, Cardoso apenas entendeu que a análise de Caio Prado era insuficiente. Na verdade, a seu ver, a proposta de análise das estruturas internas completaria o quadro traçado por este autor: “Sem analisar as estruturas internas das colônias em si mesmas, na sua maneira de funcionar, o quadro fica incompleto, insatisfatório, por não poderem ser explicadas algumas das questões mais essenciais [...]”. (LAPA, 1980, p. 109-110) Limitou-se, assim, a chamar a atenção para o fato de estas estruturas possuírem uma complexidade maior do que teria percebido a visão que denominou obsessão plantacionista e a integrar à interpretação de Caio Prado novos elementos.
Desta maneira ainda que à primeira vista pudéssemos supor que Cardoso tivesse feito uma crítica radical à interpretação de Caio Prado, assentando sua análise sobre bases novas, o fato é que, apesar da atenção que dispensou às estruturas internas da colônia, Cardoso definiu as economias coloniais como zonas periféricas e dependentes, o que significa que o arcabouço da concepção de Caio Prado permaneceu intacto. Ou seja, Cardoso permaneceu fiel às linhas gerais da interpretação que ele criticava.
A novidade da sua análise está, pois, menos em ter formulado uma interpretação do processo colonial alternativa à de Caio Prado do que em lhe ter acrescentado aspectos que julgava decisivos para a plena compreensão da época colonial. Aceitando a formulação de que a colônia havia sido criada para produzir para o mercado externo, acrescentou que os colonos não ficaram passivos diante das injunções externas. Eles teriam reagido de diferentes maneiras, o que teria promovido a consolidação da produção colonial enquanto estrutura com interesses próprios. Conclui ressaltando que o estudo destas reações permitiria captar a diversidade existente entre os países americanos que se constituíram como colônias.
O fato de fazer uma crítica à Caio Prado, sem negar totalmente seu ponto de partida fez com que as formulações de Cardoso tivessem um caráter oscilante. Após ter-se distanciado de Caio Prado em uma direção que o afastava dos vínculos da colônia com o mercado externo, viu-se obrigado a retroceder, reconhecendo o peso desta interpretação na definição de colônia, pois o destaque por ele dado às estruturas internas não dava conta das relações mais amplas desta com o mercado mundial. Tentou, então, encontrar um ponto de equilíbrio entre a concepção que atribuiu a Caio Prado, de valorização do mercado externo, e as suas formulações, que valorizavam as estruturas internas.
Talvez o momento em que Cardoso deixou claro esta dificuldade foi quando, ao fazer um balanço da produção historiográfica dos últimos tempos, apontou para um perigo que vislumbrou nas análises que seguiam sua orientação. Nestas, para se contrapor à ênfase unilateral que Caio Prado teria concedido ao mercado externo, corria-se o risco de cair no extremo oposto, cometendo-se o mesmo equívoco deste autor, agora com sinal trocado. Por isso, Cardoso alertou para o fato de que se poderia esquecer exageradamente o que denominou dependência colonial e neocolonial. Neste caso, a ênfase exagerada recairia sobre os mecanismos internos da colônia. (Cardoso, 1988, p. 58)
Também nos comentários e notícias acerca do debate que foi travado em torno da análise da colonização a partir da crítica de Cardoso a Caio Prado fica evidente a dificuldade para se encontrar uma linha divisória entre as duas concepções. Neles sobressai também a preocupação em não adotar uma postura de exclusão. É o que ocorre com os comentários de Boris Fausto (1995) e Laura de Mello e Souza (1989). Ambos reconhecem a importância das observações críticas de Cardoso, mas procuram conciliá-las com as formulações de Caio Prado.
Não deixa de ser interessante notar que a crítica de Cardoso tenha incidido no vínculo entre a economia colonial e o mercado externo, justamente o aspecto fundamental da interpretação de Caio Prado e, contraditoriamente, que ele tenha aceitado a idéia de ser este vínculo o elemento decisivo para a caracterização da economia colonial.
Mantendo-se circunscrito às formulações de Caio Prado, Cardoso procurou antes corrigi-las do que apresentar uma perspectiva alternativa, ainda que acredite ter feito isso. Mas, a crítica à Caio Prado como, aliás, a crítica a qualquer historiador, não deve recair sobre o que poderíamos considerar suas deficiências e equívocos. A rigor, não existem deficiências ou equívocos na análise de um historiador, principalmente em se tratando de um que soube captar o espírito da sua época, como é o caso de Caio Prado. O privilégio que teria dado ao mercado externo não constitui uma deficiência sua, mas faz parte da sua interpretação.
A crítica deve compreender a interpretação na própria história, tomando-a como expressão de uma determinada posição política, como uma dada postura diante da história. Assim, se Caio Prado não deu a devida importância às estruturas e contradições internas das sociedades coloniais; se, em sua análise, estiveram ausentes conceitos como forças produtivas e luta de classes, isto não se deve a uma distorção ou deficiência da sua análise. Nas circunstâncias em que elaborou sua interpretação, ele não tinha porque as considerar. Para se efetuar uma análise de Caio Prado devemos antes vinculá-lo à história do seu tempo do que confrontá-lo com uma suposta realidade, exigindo-se dele uma formulação que pertence ao crítico. Da mesma forma, quando Cardoso formula o conceito de brecha camponesa, o faz segundo as necessidades de suas próprias posições.
Deste modo, se Caio Prado não tomou o mercado interno como objeto central da sua análise nem considerou os sistemas produtivos, isto deriva de que sua interpretação da história do Brasil tinha por objetivo precisamente apontar para o processo de formação deste mercado, cujo crescimento, a seu ver, estava sendo obstaculizado pelas características exportadoras - coloniais - da economia. Em sua opinião, os sistemas produtivos somente se fortaleceriam, o mercado interno se constituiria e a sociedade somente se organizaria com a liquidação deste caráter exportador.[3] Assim, não podemos exigir que Caio Prado trate de questões que não apenas não estavam no seu horizonte teórico, como se encontravam em contradição com sua interpretação.
Mas, para os nossos propósitos, o que importa assinalar é que Cardoso não contestou, em última análise, o entendimento de colônia como produção para o mercado externo, fundamento da interpretação de Caio Prado.
Jacob Gorender, que também questionou a interpretação de Caio Prado, vinculou-se, de certa forma, à corrente inaugurada por Cardoso, o que não significa existir absoluta concordância entre ambos. Em sua análise da historiografia brasileira relativa à colonização, Gorender reconheceu a contribuição de Caio Prado para o desenvolvimento dos estudos históricos, uma vez que superou a interpretação baseada na teoria dos ciclos. Caio Prado teria descoberto neles “[...] manifestações seqüenciais de algo mais profundo, de uma realidade permanente e imanente - a estrutura exportadora da economia colonial”. Deste modo, teria ultrapassado a história comercial, avançando em direção ao conhecimento do arcabouço econômico-social. Todavia, segundo este autor, este avanço encontrou logo seu limite, pois Caio Prado analisava a história da perspectiva do comércio exterior. Para Caio Prado, este comércio imporia “[...] à colonização e à evolução brasileira o fim, o ‘sentido’ [...]”, com o que não concorda Gorender.
Para romper com esta maneira de analisar a história do Brasil, que denominou circulacionista, por se prender à circulação, ao invés de à produção, Gorender tomou o escravo como categoria explicativa central. De acordo com Fragoso, este autor teria levado a formulação de Cardoso até às últimas conseqüências ao afirmar pela existência de um modo de produção colonial regido por leis próprias de funcionamento.
Não acompanharemos o empenho deste autor na formulação do modo de produção escravista colonial. Importa aqui ressaltar que, apesar de pretender ter rompido com a interpretação de Caio Prado, da mesma maneira que Cardoso, Gorender permaneceu no seu interior. Podemos comprovar isto através das características que atribuiu ao que denominou plantagem escravista. Em primeiro lugar, destacou o fato de a plantagem ser uma produção voltada para o mercado mundial, ser uma “[...] produção de gêneros comerciais destinados ao mercado mundial” (p. 89).
Ainda nesta obra, ao conceituar colonial do ponto de vista econômico, Gorender definiu-o como a característica de uma “[...] economia voltada principalmente para o mercado exterior, dependendo deste o estímulo originário ao crescimento das forças produtivas” (p. 170). Como podemos verificar, tal como Caio Prado, aquele autor também definiu a economia colonial como produção para o mercado externo. E, ainda que sua interpretação possa divergir, sob certos aspectos, da de Caio Prado, ele funda sua análise sobre a mesma base. Manteve-se, assim, na essência, no interior das formulações de Caio Prado.
Se estes dois historiadores, que consciente e deliberadamente buscaram superar Caio Prado, não conseguiram romper com a linha mestra da sua interpretação na medida em que aceitaram sua caracterização de economia colonial, o que podemos esperar de outros estudiosos que se colocaram como seguidores do autor de Formação do Brasil Contemporâneo e se limitaram a lhe fazer acréscimos à sua interpretação? Também estes não questionaram o ponto central dela. Desta maneira, apesar das críticas e dos acréscimos, o fato é que a historiografia manteve-se no interior da interpretação de Caio Prado, ficando circunscrita aos seus limites.
Mesmo que alguns historiadores tenham chamado a atenção para a circunstância de o vínculo da produção colonial com o mercado externo ser de importância crucial na interpretação de Caio Prado, por ser o eixo central da sua análise, nenhum deles compreendeu este vínculo enquanto caracterização da produção colonial própria da interpretação de Caio Prado. Antes, tomaram-no como um aspecto do processo real. Por conseguinte, nenhum deles conseguiu - ou pretendeu - fazer-lhe uma crítica de fundo.


A CONCEPÇÃO DE COLÔNIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

A caracterização de colônia e a interpretação da história do Brasil de Caio Prado estão não só vinculadas entre si como são inseparáveis, formam um todo. Na verdade, uma é conseqüência da outra. Em virtude disso, os historiadores que fizeram desta caracterização seu ponto de partida para criticar o peso excessivo dado ao mercado externo, acrescentando que a sociedade colonial reagiria aos impulsos externos, constituindo um mercado interno de dimensões capazes de formar interesses de outra natureza, enfim, mesmo que tenham dado ênfase às estruturas internas da colônia, o fato é que, em última instância, não conseguiram romper com a essência da formulação de Caio Prado. Portanto, antes a reafirmaram do que a questionaram. Não é surpreendente, pois, que a essência desta tenha permanecido inalterada durante todas estas décadas. Aliás, há que se ressaltar que a força da interpretação de Caio Prado e a sua influência sobre os historiadores podem ser avaliadas pelo fato de que colonial tornou-se, entre estes, sinônimo de produção para o mercado externo.
A conseqüência de a historiografia ter-se mantido no interior desta interpretação foi que os historiadores, quando tentaram definir suas relações com Caio Prado, colocaram-se de modo peculiar. Ao mesmo tempo em que pretendem se não ter rompido com sua interpretação, ao menos ter inovado alguns dos seus aspectos, consideraram-no como o historiador que havia promovido uma verdadeira revolução no campo da ciência da história no Brasil. Assim, independentemente se críticos ou seguidores definiram-se como seus herdeiros e continuadores.[4]
Mas, mais importante do que constatar que estas críticas ficaram circunscritas à formulação central de Caio Prado é observar que nelas tudo ocorre como se a questão fosse uma melhor compreensão das relações coloniais. Entretanto, não era isto que estava em jogo para este autor. O fundamental da sua interpretação de colônia é o papel que desempenhou no que poderíamos denominar de teoria da história do Brasil ou interpretação do Brasil, e, principalmente, verificar as conseqüências políticas que Caio Prado dela extraiu.
Deste modo, ainda que a interpretação de Caio Prado pareça condizente com o processo histórico e por isso mesmo tenha ganhado força, a ponto de vigorar até nossos dias, é preciso lembrar que ela é produto da história. Sua origem deita raízes nas questões colocadas nas décadas de 30 e 40 do nosso século. Faz parte, pois, das lutas políticas então travadas. Sob este aspecto, podemos afirmar, é no posicionamento de Caio Prado diante destes embates e na sua proposta política que devemos encontrar os fundamentos que o levaram a interpretar o passado desta maneira.
É verdade que o oposto parece ser o correto, isto é, que a proposta de formação da nação decorre da condição colonial da economia brasileira. O próprio autor reforça esta impressão ao afirmar que foi buscar no passado colonial os fundamentos que explicavam o Brasil contemporâneo. Temos, então, a impressão de que Caio Prado buscou no passado a chave para interpretar o presente e propor soluções para o futuro: “É por isso que para compreender o Brasil contemporâneo precisamos ir tão longe; e subindo até lá, o leitor não estará se ocupando apenas com devaneios históricos, mas colhendo dados, e dados indispensáveis para interpretar e compreender o meio que o cerca na atualidade” (Formação do Brasil Contemporâneo, p.10). Ficamos com a impressão de que a proposta política de Caio Prado constitui decorrência lógica de sermos uma economia dependente do comércio internacional.
Entretanto, não é sua interpretação do passado que o leva a esta conclusão. Ao contrário, a chave para entendermos a caracterização de colônia de Caio Prado reside na proposta política, que aparece expressa na convicção de que a solução para os problemas do Brasil estaria na sua constituição como nação. Em outras palavras, é o posicionamento diante do presente que o leva a interpretar o passado daquela maneira.
A rigor, a interpretação do passado e a proposta política para o presente e futuro formam uma unidade. O posicionamento de um autor diante da história faz com que sua interpretação do passado e a sua atitude política sejam uma única coisa. Fizemos esta distinção apenas porque o fim da nossa discussão é ressaltar que a interpretação histórica, no caso presente, a de Caio Prado, do nosso passado colonial, está estreitamente vinculada à idéia de existir no Brasil uma tendência para a constituição de uma economia nacional. A luta política a ser travada, então, seria entre os setores ligados à forma colonial e os partidários da formação de uma economia nacional.
Por conseguinte, a crítica a ser feita não pode incidir sobre a interpretação de Caio Prado da época colonial mediante a contraposição de uma outra interpretação dessa época, sob pena de sairmos da história. A questão não reside no fato deste autor ter priorizado os vínculos com o mercado externo para explicar a sociedade colonial. Esta prioridade já é conseqüência da alternativa que colocava para o Brasil no presente. O ponto central da crítica não deve residir na sua interpretação da nossa história colonial, mas nos motivos que o levaram a interpretá-la desta maneira, ou seja, compreendê-lo em sua historicidade.
Para fazer sua crítica, importa indicar a conexão entre sua afirmação de que a solução para os nossos problemas estava na nossa constituição como nação e sua interpretação da história do Brasil, em particular sua caracterização da economia colonial como produção para o mercado externo.
Não podemos, também, transformar Caio Prado em um historiador do nosso passado colonial, retendo o que julgamos válido da sua análise da colonização e acrescentando-lhe novos elementos, que a ampliariam. Este tem sido o procedimento dos historiadores que, aceitando sua interpretação em suas linhas gerais a consideram insuficiente. Ao procederem deste modo, não apenas desvincularam a interpretação do passado colonial de Caio Prado de suas propostas políticas, descaracterizando suas formulações, como acabaram por fazer com que estas últimas viessem a passar de contrabando, já que, neste caso, não existe uma explicitação das mesmas. Ao aceitarmos a caracterização de colônia como produção para o mercado externo, estamos aceitando igualmente as conseqüências desta interpretação, qual seja, a idéia de que a solução para os problemas do Brasil estaria na sua constituição como uma economia nacional, autônoma e independente.
Há, pois, uma íntima conexão entre a afirmação de que os problemas do Brasil seriam solucionados por meio da sua estruturação nacional e a concepção de colônia como formação social dependente, que se define em oposição à nação.
Esta maneira de apresentar o vínculo entre a concepção de colonização de Caio Prado e sua formulação de que caminhávamos para a constituição de uma economia nacional distingue-se, a nosso ver, das que até então foram feitas. Com efeito, é verdade que, em diversas oportunidades, alguns autores chamaram a atenção para este vínculo. No entanto, fizeram-no a partir da interpretação de Caio Prado, ou seja, antes como uma adesão a esta formulação do que como ponto de partida para uma análise desta interpretação. Em decorrência, entenderam que a constituição da economia nacional era conseqüência do fato de o Brasil ter sido uma colônia e não uma proposta política.
Poder-se-ia argumentar que Caio Prado era um autor marxista. Por conseguinte, sua interpretação decorreria da aplicação deste método. Esta é, com efeito, a maneira como os estudos sobre Caio Prado costumam considerá-lo. Todavia, ainda que seja comum proceder-se assim, o fato é que, para este autor, o futuro próximo do Brasil era o desenvolvimento da nação, a organização da economia nacional. Ele não era partidário nem do capitalismo ortodoxo, nem do socialismo. Em sua opinião, estávamos na época de constituição de uma economia independente do comércio internacional. Em obras como Esboço dos fundamentos da teoria econômica e História e desenvolvimento, encontramos afirmações tanto sobre a impossibilidade de um desenvolvimento capitalista nos moldes do século XIX como, embora com menos freqüência, afirmações de que o socialismo seria prematuro entre nós. No Esboço dos fundamentos da teoria econômica, Caio Prado afirma claramente que a etapa de desenvolvimento do Brasil era a da economia nacional e não a do socialismo: “A socialização dos meios de produção, premissa dessa transformação [a libertação do trabalho e a melhor repartição dos benefícios econômicos], é certamente prematura nos países subdesenvolvidos com seu baixo nível industrial e a larga fragmentação e dispersão das atividades econômicas” (p. 222)
Deste modo, não foi a adesão de Caio Prado a uma determinada corrente filosófica que o levou a interpretar nossa história da forma como o fez. Antes, foi o modo como analisou o Brasil contemporâneo que o levou não apenas a entender da maneira que entendeu nossa história, como ter do marxismo uma compreensão bastante particular. Como, para Caio Prado, o Brasil contemporâneo caracterizava-se por ser uma economia dependente do mercado externo, daí deriva sua afirmação de que o Brasil continuava, na sua essência, um país com estrutura econômica colonial. Portanto, a luta política girava em torno da formação de uma economia nacional.
Evidentemente que a produção que se estabeleceu no Brasil na época colonial, por estar fundada no comércio mundial, era uma produção que, podemos assim dizer, estava voltada para a exportação, para o mercado externo. Mas, disto não decorre que devamos fazer deste aspecto o eixo da interpretação da história do Brasil. Também não deriva daí que devamos caracterizar o Brasil contemporâneo (isto é, o Brasil entre os anos 1942 e 1972, período de publicação dos seus livros) como uma economia dependente. Foi por ter interpretado o Brasil contemporâneo como uma economia periférica, dependente, que Caio Prado considerou a produção para o mercado externo como a característica fundamental da economia colonial.
Esta formulação levou alguns historiadores a atribuírem equivocadamente a Caio Prado uma afirmação que este não fez, ou seja, caracterizar a economia colonial como capitalista. Este equívoco deu ensejo a uma crítica bastante superficial e que, paradoxalmente, atribuiu esta superficialidade aos autores que criticava. Referimo-nos à crítica que afirma que a interpretação da produção colonial como capitalista funda-se no fato desta ser uma produção destinada ao mercado mundial, capitalista.
Entretanto, ao caracterizar a colônia como produção para o mercado externo e afirmar que nossa evolução histórica definia-se pela constituição da economia nacional, Caio Prado passou ao largo da idéia de colônia como capitalista. Esta sequer pertence ao espírito da sua interpretação, ao menos no seu livro Formação do Brasil Contemporâneo. Os critérios adotados por Caio Prado encontram-se distantes de qualquer tentativa de classificar a colônia neste sentido.
A maior objeção que fazemos às formulações dos autores que, desde fins da década de 1970, criticaram Caio Prado pelo suposto privilégio que ele teria concedido ao mercado externo, entendendo que tudo o que existia na colônia era função deste mercado, é o fato de somente terem invertido sua proposição. Frente à afirmação de que o mercado externo ditava a vida da colônia, opuseram outra, a de que esta estrutura social reagiu diante dos impulsos externos. Assim, como mostramos, mantiveram a caracterização da produção colonial como produção para o mercado externo, embora, para eles, nem tudo se explicasse por esse vínculo.
Não levaram em conta que a mesma pertencia a um conjunto maior, à proposta política de Caio Prado. Não consideraram que o entendimento de colônia como produção para o mercado externo tinha o objetivo de alicerçar a afirmação de que o caminho a ser trilhado pelo Brasil, a fim de solucionar seus problemas e, portanto, desenvolver-se, era o da constituição da economia nacional. Assim, a pedra de toque da interpretação de Caio Prado da história do Brasil é sua concepção de colonização, o sentido da colonização. Tudo o mais deriva desta formulação inicial.
Aos historiadores que criticaram Caio Prado pelo privilégio que confere ao mercado externo, poderíamos indagar pela conseqüência política da interpretação que deram do passado colonial. Ou seja, poderíamos indagar pelo desdobramento político da sua compreensão da economia colonial não como função do mercado externo, mas como uma estrutura que tinha vida e interesses próprios.
Sob este aspecto, e na medida em que estava articulada com uma visão de conjunto da história do Brasil, consideramos a interpretação de Caio Prado superior à dos que o sucederam. Aliás, isto se deve ao fato de sua história do Brasil ser antes uma reflexão acerca desta história do que uma tentativa de sua reconstituição. Nele, o passado não é analisado em função do próprio passado, motivado pelo desejo de melhor conhecê-lo, mas em função das lutas do presente.
Foi por isso que procuramos mostrar que os historiadores que, pretendendo criticar Caio Prado, aceitaram sua caracterização de colônia, permaneceram no interior da sua interpretação. Além disso, não é produzindo outra interpretação da época colonial que se poderá romper com a de Caio Prado. Isto somente pode ser alcançado a partir da discussão do seu próprio ponto de partida, ou seja, a partir da consideração de que sua proposta para o Brasil e o modo como interpretou seu passado formam uma unidade.
Ao afirmar que a evolução histórica brasileira caracterizava-se pela transição da economia colonial para a nacional, Caio Prado não estava mostrando o processo histórico real, mas expressando sua postura política. É a formulação ou proposição política de que os problemas do Brasil encontrariam sua solução na sua constituição como nação - tal como ele entendia nação -, que o levou a afirmar que nossa evolução caminhava no sentido de a economia deixar de ser colonial para se tornar nacional. Esta formulação é, e isto deve ser frisado, uma proposta política, não uma descrição do processo real.
Assim, como podemos verificar a caracterização da produção que se estabelece no período colonial como produção voltada para o mercado externo, fruto do posicionamento do autor, possibilita desdobramentos políticos. Não podemos desvincular a análise que Caio Prado faz do passado colonial da afirmação de que o processo histórico do Brasil é o da constituição da nação. Desta maneira, o estudo do período colonial tem sua razão de ser e ganha sentido na obra de Caio Prado única e exclusivamente se considerarmos que concebeu a formação da nação como a resultante da evolução histórica.
Sob este aspecto, podemos afirmar que, a rigor, Caio Prado não é um historiador do nosso passado colonial. Se este autor analisa a época colonial, o é unicamente para nela buscar os elementos que lhe permitam fazer uma reflexão sobre o conjunto da nossa história e oferecer uma direção para o desenvolvimento do Brasil.
Foi por discordar das propostas existentes e dos caminhos que a história estava tomando que Caio Prado buscou alternativas. Caio Prado discordava dos que acreditavam que o Brasil poderia se desenvolver nos moldes clássicos do capitalismo e, em conseqüência, seguiam os princípios da Economia Política Clássica. Discordava também dos que propunham a luta direta pelo socialismo. Por conseguinte, transformá-lo em historiador da Colônia significa amputá-lo; implica retirar sua substância, qual seja, a de ser um autor preocupado com os destinos do país.
Como a interpretação da história do Brasil de Caio Prado é extremamente expressiva e exerce grande influência sobre os historiadores, seus estudiosos geralmente se esquecem que sua interpretação tem como ponto de partida o modo como se posicionou frente às questões de sua época. Militante político, autor que refletia acerca dos destinos do Brasil, interessado em encontrar soluções para seus problemas, concordemos ou não com ele, o fato é que Caio Prado fez da sua interpretação do passado colonial não apenas um instrumento de crítica, como também a diretriz que deveria nortear os caminhos da luta política.
Como salientamos, os estudos sobre a obra de Caio Prado ou não estabeleceram uma conexão entre sua interpretação da história e sua proposta política ou, quando o fizeram, fizeram-no do interior da sua formulação. Mas, de um modo geral, predomina nestes estudos a ligação entre sua análise e a concepção de história à qual aderira, o marxismo. Em decorrência, costuma-se explicar a compreensão de Caio Prado da nossa realidade colonial pelo fato deste ter utilizado o método marxista - apressando-se todos, é verdade, em ressaltar que o fez de maneira criadora, sem ceder a possíveis esquematismos e mecanicismos.[5]
Notamos anteriormente que Caio Prado caracteriza a produção colonial como produção para o mercado externo precisamente porque defende a idéia de que a solução para os problemas encontrava-se na formação da nação. Não é, pois, nosso passado colonial - com tudo o que Caio Prado lhe atribui - que impõe que nos constituamos como nação. Antes, é a proposta de constituição como nação que o leva a analisar a produção colonial desta maneira. Sua ênfase no vínculo da produção com o mercado externo faz, deste modo, sentido por ser o suporte da sua proposta política. A afirmação de que nossa evolução histórica expressava-se na constituição do Brasil como nação faz parte de sua proposta política. Com efeito, Caio Prado atribuiu à idéia de nação determinadas características que estão em consonância com sua interpretação de colônia que, por conseguinte, também está em conformidade com sua concepção de história. Assim, enquanto caracteriza colônia como produção que atendia necessidades que lhe eram estranhas, nação é definida como uma economia voltada para atender as necessidades da sua população. Em História e desenvolvimento, Caio Prado detém-se no novo sistema que se estabeleceria por meio da ruptura com o passado colonial e a conseqüente organização da economia nacional: “Novo sistema este que tem por base e natureza a produção para o mercado interno e precipuamente para a satisfação das necessidades econômicas do país e de sua população” (p. 81)
Ainda nesta obra, Caio Prado define a economia colonial em contraposição à nação, afirmando que, ao voltar-se para o mercado exterior, ela deixava sua população desatendida quanto às suas necessidades: “E assim o que deveria normalmente constituir o essencial de uma economia, que é prover ao sustento alimentar dos indivíduos nela engajados, isto sempre foi no Brasil não apenas subestimado, mas até mesmo, freqüentemente, quase por inteiro desatendido” (p. 45-46)
Observamos que Caio Prado, ao afirmar que a solução dos problemas do Brasil viria com a organização da sua economia em bases nacionais, opunha-se a duas propostas para o nosso futuro: a que entendia que a solução estava no desenvolvimento capitalista e a que pretendia que esta residia na revolução socialista. Isto fica claro no livro Esboço dos fundamentos da teoria econômica. Nele, Caio Prado procurou formular uma nova teoria econômica que deveria romper com a teoria econômica ortodoxa, própria dos países capitalistas desenvolvidos, e levar em conta as circunstâncias específicas das economias subdesenvolvidas. Julgava imprescindível uma teoria que considerasse a situação dos países dependentes, subdesenvolvidos. Em sua opinião, as condições históricas gerais - economia trustificada - eram distintas das que haviam possibilitado a países como a Inglaterra e os EUA desenvolverem-se. A seu ver, era necessário romper com a dependência do sistema mundial para que um país pudesse se desenvolver harmonicamente. Pretendeu então fazer um esboço dos fundamentos sobre os quais a análise econômica deveria se assentar a fim de articular melhor a teoria com a prática: “Isso é condição essencial para a elaboração da teoria econômica, particularmente em países como o Brasil onde se é obrigado a partir de modelos teóricos largamente distanciados, em muitos casos, da experiência real e da ação própria daqueles países.” (p. 9)
Esta crítica não se dirigia apenas à Economia Política Clássica (portanto, ao liberalismo), mas também às propostas fundadas no marxismo. No seu entender, a formação de uma economia nacional afastava-se tanto da primeira quanto do segundo. Vimos como divergia dos que pretendiam alcançar o desenvolvimento por meio de uma maior inserção do país no mercado mundial. Frente à proposta de socialismo, defendeu a idéia de um desenvolvimento nacional, autônomo.
Ao longo da sua trajetória, nos trabalhos que publicou, Caio Prado formulou e insistiu na idéia de que os problemas brasileiros provinham da sua origem colonial e que sua solução estava na superação deste caráter colonial da economia, com a conseqüente constituição do Brasil como nação. Ressalte-se sua coerência teórica: nunca abandonou este núcleo da sua interpretação, fazendo do mesmo o ponto de partida para suas considerações acerca de questões políticas e econômicas. Com efeito, como salientamos, desde a primeira exposição desta idéia, em Formação do Brasil Contemporâneo, até seus últimos escritos mais significativos, como A revolução brasileira, de 1966, e História e desenvolvimento, escrita em 1968 e publicada em 1972, esta formulação foi mantida, recebendo apenas algumas ampliações, ganhando contornos mais definidos.
Devemos ressalvar, todavia, que na Formação do Brasil Contemporâneo. este programa não se encontra explicitado nem formulado de modo sistemático como nas obras seguintes. Mas ainda que apareça apenas de forma difusa ao longo da obra, encontra-se aí presente. Constatamos isto de dois modos. Primeiro, de forma indireta: podemos inferir da sua leitura que a tarefa política consistia na luta pela transformação do Brasil em nação, com a conseqüente liquidação do passado colonial. Segundo, de forma direta, na medida em que Caio Prado insiste em afirmar, em várias oportunidades, que a evolução brasileira caracterizava-se pela constituição de uma economia nacional.
Mas, é em A revolução brasileira que esta idéia está expressa de modo explícito, articulado e detalhado. Nesta obra, Caio Prado critica os que caracterizavam a revolução brasileira valendo-se de esquemas teóricos preestabelecidos e importavam modelos para proporem as tarefas políticas no Brasil. Em sua opinião, dever-se-ia buscar na própria história do Brasil sua dinâmica para, então, encaminhar-se as propostas políticas. Esta dinâmica não é outra que a já descrita em Formação do Brasil Contemporâneo, ou seja, a passagem da economia colonial para a nacional. Sob certos aspectos, A revolução brasileira é uma espécie de desdobramento e atualização de Formação do Brasil Contemporâneo.
Devemos ressaltar, no entanto, que, se Caio Prado entendeu que a manutenção das estruturas coloniais era a fonte dos nossos problemas e, por conseguinte, concebia sua solução na liquidação deste caráter colonial através da constituição da nação, nem por isso encarou a colonização de uma perspectiva negativa. De fato, em Formação do Brasil Contemporâneo, considerou que a colonização desempenhou papel decisivo, já que através desta haviam se constituído os fundamentos da nacionalidade. Povoara-se um território semi-deserto, organizara-se uma vida humana que divergia tanto da que nele existia como, em escala menor, da dos portugueses. Enfim, havia-se criado algo de novo no plano das realizações humanas.
No seu entender, justamente por ser nos trópicos, a colonização não poderia ter assumido outra forma. Fruto de circunstâncias que se impuseram, não havia escolha. Daí sua crítica aos historiadores que não consideraram as circunstâncias em que ocorrera, a expansão marítima e comercial. Por isso, quando comparou a colonização dos trópicos com a da zona temperada, foi tanto para destacar o que considerava a distinção fundamental que existia entre uma e outra como para mostrar que a diversidade das condições naturais determinou a atração de colonos com interesses completamente distintos. Deste modo, as próprias condições naturais teriam feito a seleção.
Se, em Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado considerou a colonização de uma perspectiva positiva, na medida em que havia criado as condições para a constituição de uma nação; se entendeu que a colonização, pelas circunstâncias que a envolveram, tinha necessariamente que se constituir como produção para o mercado externo, nem por isto concluiu que esta circunstância justificava sua existência eternamente. Ao contrário, afirmou que o sistema colonial havia cumprido seu papel e as novas circunstâncias tornavam sua estrutura insuficiente para atender às exigências recém-criadas.
Esta interpretação sofreu uma mudança em História e desenvolvimento. Nesta, Caio Prado iniciou o capítulo IV, que trata da colonização do Brasil e, portanto, dos primórdios e fundamentos da nossa história, afirmando que o açúcar foi, no Brasil, uma mercadoria: “O açúcar é no Brasil, antes de tudo e mesmo com exclusividade, mercadoria, objeto de comércio.” (p. 38) E explicou o que entendia por mercadoria: “Produz-se não para consumo dos produtores, mas para vender (e mesmo vender para fora do país, para exportar), a fim de apurar na transação um lucro monetário.” (p. 38) Ao explicar uma coisa pelo que deveria ser, ao invés de defini-la pelo que é, Caio Prado colocou o existente sob uma luz negativa. Procedeu assim por entender que a produção brasileira deveria estar voltada para atender às necessidades da população. Sua definição é mais uma crítica moralista do existente do que uma tentativa de compreensão da produção colonial.
No seu modo de ver, o caráter mercantil da produção colonial foi prematuro. Por isso, condenou o fato de a colonização ter-se baseado em uma agricultura puramente comercial quando nos demais países ela era virtualmente desconhecida. (p. 38)
Duas questões merecem serem consideradas. A primeira é que Caio Prado percebeu que a colônia foi estabelecida através de uma forma de produção - a agricultura comercial - que praticamente inexistia na Europa. Era então um fato recente, moderno, conforme expressão sua. E, o que é mais importante, na Europa, ao contrário da colônia, a agricultura mercantil somente surgiu através da sua inserção em uma economia preexistente. Mas, ao invés de encarar este fato como a comprovação do avanço histórico representado pela colonização, que teria dado início a uma forma da existência humana vinculada diretamente à troca e à obtenção do proveito, considerou-o de uma perspectiva negativa, julgando-o prematuro.
A segunda questão é que a produção comercial, principalmente a que visava o mercado externo, é tratada como uma atividade externa aos homens por produzir para o comércio e não para a subsistência. (p. 38-39)
Com efeito, de tal maneira Caio Prado identificou o que denomina economia nacional como uma forma que, por atender aos verdadeiros interesses da população, corresponderia à natureza humana, que não considerou a produção mercantil, a produção voltada para o lucro, como uma forma de existência dos homens. Entendeu-a como contrária à existência humana. Não é casual que tenha afirmado que “[...] a colônia não teve nunca uma organização econômica que mereça este nome [...]”, constituindo um organismo meramente produtor. (Formação do Brasil Contemporâneo, p. 128-129) No seu modo de ver, a forma de existência dos homens era a fundada na produção direta da sua subsistência. E, ressalte-se, nos seus comentários sobre a experiência das nações européias que desenvolveram relações capitalistas durante o século XIX, afirmou que estas possuíam uma produção que, em última instância, atendia às necessidades da sua população. (História e desenvolvimento, p. 79)
Deste modo, na sua visão, as relações estabelecidas na colônia, por visarem o mercado externo, atendiam a necessidades alheias, não nacionais. Considerava-as como relações que nada tinham a ver com os indivíduos que habitavam o Brasil. Antes, seriam os interesses de classe, de uma minoria, que tinham imposto uma estrutura social que, nas suas palavras, não provia o sustento alimentar dos indivíduos engajados na produção. (p. 48-49)
A produção mercantil era, pois, uma atividade na qual estava interessada (porque se enriquecia) apenas uma parcela diminuta da sociedade, enquanto a grande maioria permanecia à margem. Não era uma forma social por meio da qual os homens produziam sua vida, mas um negócio: “E assim o que deveria normalmente constituir o essencial de uma economia, que é prover ao sustento alimentar dos indivíduos nela engajados, isto sempre foi no Brasil não apenas subestimado, mas até mesmo, freqüentemente, quase por inteiro desatendido.” (p. 45-46)
Na produção voltada para a venda (e venda para o exterior, o que, no seu entender, agravava o problema), estaria a origem das precárias bases que redundou na falta de organicidade econômica: “[...] falta de organicidade econômica a que as precárias bases da colonização condenaram a nascente sociedade brasileira.” (p. 39)
Esta prematura mercantilização das atividades econômicas fundamentais da colônia teria trazido consigo algumas conseqüências, quais sejam:

São elas em especial a organização e estrutura específicas da agricultura brasileira que trarão a marca iniludível do objetivo essencialmente comercial a que esta agricultura se destina. Isto desde a determinação da produção escolhida - que será de um gênero de grande expressão comercial na conjuntura internacional da época, como foi o caso do açúcar de cana, sem atenção a nenhuma outra consideração, - até o tipo e as dimensões das unidades produtoras, bem como as relações de produção e trabalho que nelas se estabelecem. Estas unidades serão a exploração em larga escala, de iniciativa do empresário que realiza um negócio e objetiva o lucro, nela invertendo os recursos financeiros (capital) de que dispõe; e na qual, sob a direção do mesmo empresário que comanda sem contraste e dispõe tudo em função única do seu objetivo comercial, conjugam-se grande propriedade fundiária monocultural e a numerosa força de trabalho servil. (p. 39)


Assim, se para alguns autores, o problema do Brasil estava no seu atraso, decorrente do seu capitalismo tardio, para Caio Prado, a raiz deste estava na precocidade da mercantilização das atividades produtivas.
A própria concepção de mercado externo de Caio Prado é bastante peculiar, integrada ao seu modo de interpretar a história do Brasil. Conceito largamente utilizado pelos economistas do século XVIII, quando possuía um conteúdo crítico, o mercado externo não diferia na essência do interno. De fato, quando os fisiocratas reivindicaram a liberdade de produção e comércio para a agricultura na França, isto é, reivindicaram liberdade para exportar os produtos agrícolas, não trataram o mercado exterior como algo distinto do interno. O intuito dos fisiocratas era retirar os obstáculos que se colocavam à expansão da agricultura capitalista. Ao reivindicar a liberdade de exportação, a intenção dos fisiocratas ia além do mero desejo de alargar o mercado interno. Reivindicaram a liberdade de comércio, sobretudo porque a proibição de exportação era parte inseparável de um conjunto de medidas que afastava do campo a aplicação de capital. As restrições e proibições à produção e ao comércio agrícolas impediam o pleno funcionamento das leis da produção burguesa: a oferta de produtos excedia à procura; por isso, havia superprodução e a conseqüente queda dos preços. Com isso, o valor não cobria os custos de produção. Abrir o mercado externo significava, deste modo, ampliar o comércio, condição vital para a agricultura. Assim, para os fisiocratas, mercado externo e mercado interno não se opunham. Ambos diziam respeito à vida dos homens.
Não é o que acontece com a interpretação de Caio Prado. Nesta, o mercado externo é entendido como sinônimo de estranho, alheio, como se fosse algo que não dizia respeito à vida dos indivíduos que habitavam a Colônia. Concebe a produção colonial como alienada, por produzir para atender a necessidades estranhas às da população que habitava e produzia na Colônia.
É somente no interior desta concepção que Caio Prado pode fazer a oposição produção colonial (mercado externo) - produção nacional (mercado interno) e afirmar que a produção colonial produzia para atender a necessidades estranhas à nossa, ao passo que, na economia nacional, a produção voltar-se-ia precipuamente para atender à população que vive no país.
A proposta para solução dos problemas do Brasil por meio da organização da economia nacional não surge com Caio Prado. Ela data, no Brasil, pelo menos dos fins do século XIX e início do XX. Ainda que possamos recuar mais, basta lembrar um autor da virada do século: Inocencio Serzedello Correa, um dos teóricos mais conseqüentes da formação da economia nacional. Partidário do protecionismo para a indústria nacional, autor de O problema econômico no Brasil, publicado em 1903, Serzedello interpretou nosso passado colonial de maneira a justificar a intervenção do Estado na economia como necessária para criar as condições para o desenvolvimento da indústria nacional. Para se ter uma idéia da ausência destas condições na situação de liberdade de produção e comércio, basta lembrar que, segundo este autor, importava-se até mesmo fósforos. A defasagem do Brasil diante das nações industrializadas tinha chegado a tal grau e as condições reinantes eram tão adversas à indústria nacional que somente uma decidida intervenção do Estado poderia garantir a existência de indústrias.
A interpretação da história do Brasil de Caio Prado está, a nosso ver, intimamente associada às tendências históricas que se desenhavam desde fins do século XIX e ganharam corpo no XX. Poderíamos englobar estas tendências sob uma única denominação: a luta pela indústria nacional ou, o que significa a mesma coisa, pelo protecionismo. Frente a estes autores, a novidade de Caio Prado parece residir no fato de ser um autor de esquerda, declaradamente marxista, que adotou uma formulação até então predominantemente burguesa.
Da mesma forma que podemos rastrear nos autores anteriores a Caio Prado formulações que nos permitem fazer algumas aproximações entre este e os críticos do sistema liberal, também podemos aproximá-lo dos partidários do protecionismo que lhe eram contemporâneos, como, por exemplo, Roberto C. Simonsen. A semelhança entre suas formulações e as de Caio Prado mostra-nos que isto não é destituído de propósito, em que pese terem se colocado em campos ideológicos distintos.
Tendo publicado grande parte dos seus escritos na década de 40, época em que Caio Prado formulou sua interpretação da história do Brasil, Simonsen viu, da mesma maneira que este, em nosso passado colonial não apenas a origem dos problemas brasileiros como sua perpetuação: “É fruto também desse sistema econômico, a adoção pelos grandes Estados, de definidas políticas coloniais, cuja interferência sofremos no passado e que ainda hoje atuam de modo inequívoco em nossa evolução, devido, principalmente, à natureza tropical da maioria de nossas produções.” (p. 31) Evidentemente, a conseqüência desta formulação é a afirmação da necessidade de se romper com esta situação herdada do passado.
A própria caracterização de economia colonial de Simonsen tem como ponto de partida o protecionismo e o nacionalismo. Segundo este, as principais atividades econômicas na Colônia estavam entregues aos elementos alienígenas. A produção, por sua vez, visava mais os interesses metropolitanos do que os nacionais.

São característicos da economia colonial: a direção das principais atividades econômicas nas mãos dos elementos alienígenas; a posse, por estes elementos, dos principais capitais aplicados na produção local; a orientação dessa produção, visando mais aos interesses da Metrópole do que ao bem estar dos colonos; subordinação, quanto à legislação, administração, transporte e distribuição, a elementos estranhos aos que se entregam diretamente ao trabalho produtivo local. (p. 390)


Como podemos observar, um dos aspectos mais importante da definição de economia colonial de Simonsen, o fato de a produção da colônia voltar-se mais para atender aos interesses da Metrópole do que o bem-estar dos colonos, aproxima-a bastante da caracterização de colônia de Caio Prado, que a definiu como produção voltada para atender necessidades alheias à sua população.
Podemos, então, afirmar mais uma vez que o estudioso do pensamento de Caio Prado deve antes buscar os vínculos de suas formulações com as dos partidários do protecionismo do que com o marxismo. Ressalte-se, todavia, que, apesar da proximidade entre as formulações de Caio Prado e as dos protecionistas, não estamos simplesmente traçando um sinal de igualdade entre elas. Evidentemente, um estudo aprofundado de Caio Prado implica compreender o que singulariza este autor no panorama historiográfico e político nacional. No entanto, para os nossos propósitos, o fundamental é apontar os possíveis nexos entre Caio Prado e os partidários do nacionalismo e do protecionismo no Brasil.
Por fim, uma observação a ser feita. Ainda que Caio Prado tenha assinalado os primórdios do século XIX como marco decisivo do início de transformações que deram origem ao processo de organização nacional da economia, não verificamos nesta época a existência de autores que defendiam a organização nacional da economia e o fortalecimento do mercado interno como condição do desenvolvimento. Antes, o que verificamos é a existência de autores que defendiam a integração completa da economia brasileira ao mercado mundial por meio da liberdade de produção e comércio como condição para o progresso e enriquecimento da nação. Consideravam esta integração, sem restrições de qualquer natureza, e não a ruptura dos laços comerciais com o exterior, o caminho para o desenvolvimento do país. Assim, combateram o sistema colonial e o sistema mercantil, mas não defenderam a constituição de uma economia nacional.
Na verdade, contrapunham ao sistema colonial, que tolhia a liberdade de produção e comércio, não um sistema baseado no intervencionismo, que colocava obstáculos ao comércio mundial, mas um sistema completamente oposto, fundado no livre comércio. Combateram, assim, as propostas de intervenção do Estado, no caso, da Coroa portuguesa, no sentido de proteger a indústria nacional, concedendo monopólios e privilégios aos que estabelecessem fábricas no Brasil. Dentre estes se destacam João Rodrigues de Brito e José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu.
Somente a partir dos anos 40 do século passado é que verificamos o surgimento de uma ideologia de caráter protecionista que estabeleceu uma relação necessária entre autonomia política e autonomia econômica, identificando esta última com a industrialização, conforme observou Wanderley Guilherme dos Santos. Foi somente mais tarde, entre os partidários do protecionismo, como Serzedello, que ganhou força a tese de que havíamos errado por não termos estabelecido medidas protecionistas por ocasião da ruptura dos laços que nos atavam a Portugal.


CONCLUSÃO

Centramos nosso estudo de Caio Prado na sua caracterização de economia colonial como produção para o mercado externo por entendermos ser esta a pedra de toque da sua interpretação da história do Brasil e, conseqüentemente, da sua proposta política.
Não tomamos, pois, esta caracterização como ponto central de forma arbitrária. Ela é fundamental em Caio Prado por causa da sua contrapartida: a formulação de que a ruptura da condição colonial do Brasil somente poderia ocorrer por meio do estabelecimento de uma economia com caráter nacional. Desta maneira, o modo como Caio Prado concebeu a colonização somente pode ser compreendido se associado à afirmação de que a solução para os problemas do Brasil residia na organização nacional da economia.
Assim, a seu ver, a evolução da história do Brasil tinha como fio condutor a transformação da economia colonial em economia nacional. Deste modo, o sentido da colonização somente ganha significado se complementado com a formulação de que a evolução do Brasil definia-se pelo processo de constituição da economia nacional.
A maneira como apresentamos o vínculo entre a concepção de colonização de Caio Prado e sua formulação de que caminhávamos para a constituição de uma economia nacional nunca tinha sido feita até então. É verdade que, em várias oportunidades, estudiosos chamaram a atenção para este vínculo. Todavia, fizeram-no no interior da concepção de Caio Prado, isto é, antes como adesão às linhas gerais de sua interpretação do que como ponto de enfoque para uma análise crítica. Em virtude disto, entenderam que a constituição da economia nacional era conseqüência lógica e natural do fato de o Brasil ter sido uma colônia. Desta maneira, antes reforçaram este vínculo do que tentaram compreender a interpretação de Caio Prado em sua dimensão histórica.
Assim, o sentido da colonização - formulação que somente pode ser compreendida se considerada a partir da proposta de Caio Prado de constituição da economia nacional - acabou assumindo foros de verdade. Com isso, uma interpretação da colonização motivada por uma proposta política acabou erigida em descrição do processo real.
Além disso, é importante salientar que na historiografia posterior a Caio Prado este nexo entre sentido da colonização e proposta política, sempre presente em sua obra, desaparece. Disso resulta que estes historiadores acabaram, implicitamente, partidários de uma formulação que tem suas raízes nas lutas políticas dos anos 30 e 40 do nosso século. Assim, julgando estarem tratando do passado, estes historiadores cuidavam, na verdade, do presente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil. (1500-1820). 6ª edição. São Paulo: Nacional, 1969.
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
SOUZA, Laura de Mello e. O escravismo brasileiro nas redes do poder: comentário de quatro trabalhos recentes sobre a escravidão. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro: v. 2, n. 3, 1989.

[1] Este texto é, com modificações, parte do primeiro capítulo de nossa tese de doutorado, Construindo um mundo novo. Os escritos coloniais do Brasil nos séculos XVI e XVII.
[2] Nos comentários acerca da polêmica travada nos anos 70 e 80, a partir das críticas de Cardoso às análises da escravidão colonial, fica patente que este autor pretendia formular uma interpretação alternativa à de Caio Prado Júnior. Vejamos o que nos diz Linhares: “Nos anos 70, a discussão sobre os fundamentos desta sociedade foi enriquecida com novas contribuições: de Ciro F. S. Cardoso e Jacob Gorender, que desenvolveram o conceito de modo de produção escravista colonial em substituição ao dependentismo implícito no esquema de Caio Prado Júnior e seus seguidores; (...).” (Linhares, 1990, p. 9-10)
[3] A crítica a Caio Prado, por este ter afirmado que na colônia não existia uma sociedade propriamente dita, deriva de uma incompreensão das suas formulações e propostas políticas. Para Caio Prado, uma verdadeira sociedade somente poderia existir quando sua economia estivesse voltada para atender as necessidades da nação. Desta maneira, somente poderia existir uma sociedade a partir do momento que existisse uma nação.
[4] Vide o artigo, verdadeiro depoimento, de Novais sobre Caio Prado: “Suas obras marcaram profundamente nossa vida intelectual a partir de então, daí a dificuldade, e ao mesmo tempo a necessidade de iniciarmos a sua avaliação crítica. Pessoalmente, sinto um embaraço, quase diria emocional, mesmo para discutir Caio Prado Jr., de tal maneira ele marcou a minha formação, creio mesmo que a dos historiadores de minha geração”. NOVAIS, F. A. Caio Prado Jr na historiografia brasileira. In: História, Revista do Arquivo de São Paulo, v. 1, 1993, p. 17.
[5] Estudiosos da obra de Caio Prado costumam lembrar que o livro Formação do Brasil Contemporâneo era o primeiro de uma tríade que pretendia escrever sobre a história do Brasil. Escreveu apenas o volume dedicado à Colônia. Os demais livros seriam dedicados ao Império e à República. Costuma-se mesmo lamentar que Caio Prado não tivesse levado adiante seu projeto. Todavia, uma leitura atenta de Formação nos leva a concluir que Caio Prado não escreveu os outros dois livros por que, além dos motivos por ele arrolados, eram desnecessários do ponto de vista político. A questão fundamental que pretendia colocar já se encontrava exposta em Formação. Com efeito, apesar de tratar da Colônia, o livro tem como eixo o encaminhamento das questões políticas de sua época. Aliás, sob este aspecto o próprio título do livro é bastante expressivo. Tratando da formação do Brasil contemporâneo, Caio Prado mostra como este se formou por meio da colonização e que, à época da publicação de Formação, era o caráter colonial da economia brasileira que prevalecia, ainda que mudanças no sentido do estabelecimento de uma economia nacional já fizessem sentir. Assim, Caio Prado apresenta, em linhas gerais, a evolução da sociedade brasileira até os tempos contemporâneos e, por conseguinte, não restringe sua análise ao período colonial. Os livros que tratariam do Império e da República, ainda que fizessem uma análise desses momentos históricos, apenas seria uma confirmação da tese geral, ou seja, que a evolução da economia colonial para a economia nacional ainda não se completara.

sábado, maio 05, 2007

O RETORNO DO IDIOTA

VEJA, Edição 2007, 9 de maio de 2007
Artigo: Alvaro Vargas Llosa

O RETORNO DO IDIOTA

Durante o século XX, os líderes populistas da América Latina levantaram bandeiras marxistas, praguejaram contra o imperialismo e prometeram tirar seus povos da pobreza. Sem exceção, todas essas políticas e ideologias fracassaram, o que levou ao recuo dos homens fortes. Agora, uma nova geração de revolucionários tenta ressuscitar os métodos ineficazes de seus antecessores.

Dez anos atrás, o colombiano Plinio Apuleyo Mendoza, o cubano Carlos Alberto Montaner e eu escrevemos Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano, livro que criticava os líderes políticos e formadores de opinião que, apesar de todas as provas em contrário, se apegam a mitos políticos mal concebidos. A espécie "Idiota", dizíamos então, era responsável pelo subdesenvolvimento da América Latina. Tais crenças – revolução, nacionalismo econômico, ódio aos Estados Unidos, fé no governo como agente da justiça social, paixão pelo regime do homem forte em lugar do regime da lei – tinham origem, em nossa opinião, no complexo de inferioridade. No fim dos anos 1990, parecia que os idiotas estavam finalmente em retirada. Mas o recuo durou pouco. Hoje, a espécie retornou na forma de chefes de estado populistas empenhados em aplicar as mesmas políticas fracassadas no passado. Em todo o mundo, há formadores de opinião prontos a lhes dar credibilidade e simpatizantes ansiosos por conceder vida nova a idéias que pareciam extintas.
Por causa da inexorável passagem do tempo, os jovens idiotas latino-americanos preferem as baladas pop de Shakira aos mambos do cubano Pérez Prado e não cantam mais hinos da esquerda, como A Internacional e Hasta Siempre, Comandante. Mas eles ainda são os mesmos descendentes de migrantes rurais, de classe média e profundamente ressentidos com a vida fútil dos ricos que vêem nas revistas de fofocas, folheadas discretamente nas bancas. Universidades públicas fornecem a eles uma visão classista da sociedade, baseada na idéia de que a riqueza precisa ser tomada das mãos daqueles que a roubaram. Para esses jovens idiotas, a situação atual da América Latina é resultado do colonialismo espanhol e português, seguido do imperialismo dos Estados Unidos. Essas crenças básicas fornecem uma válvula de segurança para suas queixas contra uma sociedade que oferece pouca mobilidade social. Freud poderia dizer que eles têm o ego fraco, incapaz de fazer a mediação entre seus instintos e a sua idéia de moralidade. Em lugar disso, suprimem o conceito de que a ação predatória e a vingança são erradas e racionalizam a própria agressividade com noções elementares do marxismo.

Os idiotas latino-americanos tradicionalmente se identificam com os caudilhos, figuras autoritárias quase sobrenaturais que têm dominado a política da região, vociferando contra a influência estrangeira e as instituições republicanas. Dois líderes, particularmente, inspiram o Idiota de hoje: os presidentes Hugo Chávez, da Venezuela, e Evo Morales, da Bolívia. Chávez é visto como o perfeito sucessor do cubano Fidel Castro (a quem o Idiota também admira): ele chegou ao poder pelas urnas, o que o libera da necessidade de justificar a luta armada, e tem petróleo em abundância, o que significa que pode bancar suas promessas sociais. O Idiota também credita a Chávez a mais progressista de todas as políticas – ter colocado as Forças Armadas, paradigma do regime oligárquico, para trabalhar em programas sociais. De sua parte, o boliviano Evo Morales tem um apelo indigenista. Para o Idiota, o antigo plantador de coca é a reencarnação de Tupac Katari, um rebelde aimará do século XVIII que, antes de ser executado pelas autoridades coloniais espanholas, profetizou: "Eu voltarei e serei milhões". O Idiota acredita em Morales quando ele alega falar pelas massas indígenas, do sul do México aos Andes, que buscam reparação pela exploração sofrida em 300 anos de domínio colonial e outros 200 anos de oligarquia republicana.
A visão de mundo do Idiota, vez por outra, encontra eco entre intelectuais ilustres na Europa e nos Estados Unidos. Esses pontificadores aliviam o peso na consciência apoiando causas exóticas em países em desenvolvimento. Suas opiniões atraem fãs entre os jovens do Primeiro Mundo, para os quais a fobia da globalização oferece a perfeita oportunidade de encontrar satisfação espiritual na lamentação populista do Idiota latino-americano contra o perverso Ocidente.
Não há nada de original no fato de intelectuais do Primeiro Mundo projetarem suas utopias sobre a América Latina. Cristóvão Colombo chegou por acaso à América em um tempo em que as idéias utópicas da Renascença estavam em voga. Desde o início, os conquistadores descreveram as terras encontradas como nada menos que paradisíacas. O mito do bom selvagem – a idéia de que os nativos do Novo Mundo tinham uma bondade imaculada, não manchada pelas maldades da civilização – impregnou a mente européia. A tendência de usar a América como uma válvula de escape para a frustração com os insuportáveis conforto e abundância da civilização ocidental continuou por séculos. Pelos anos 60 e 70, quando a América Latina estava repleta de organizações terroristas marxistas, esses grupos violentos encontraram apoio maciço na Europa e nos Estados Unidos entre pessoas que nunca teriam aceitado um regime totalitário no estilo de Fidel Castro em seu próprio país.
O atual ressurgimento do Idiota latino-americano precipitou o retorno de seus correspondentes: os idiotas paternalistas europeus e americanos. Mais uma vez, importantes acadêmicos e escritores estão projetando seu idealismo, sua consciência cheia de culpa ou as queixas contra sua própria sociedade no cenário latino-americano, emprestando seu nome a abomináveis causas populistas. Ganhadores do Nobel, incluindo o dramaturgo inglês Harold Pinter, o escritor português José Saramago e o economista americano Joseph Stiglitz, lingüistas americanos como Noam Chomsky e sociólogos como James Petras, jornalistas europeus como Ignacio Ramonet e alguns de veículos como Le Nouvel Observateur, na França, Die Zeit, na Alemanha, e Washington Post, nos Estados Unidos, estão mais uma vez propagando absurdos que moldam as opiniões de milhões de leitores e santificam o Idiota latino-americano. Esse lapso intelectual seria praticamente inócuo se não tivesse conseqüências. Mas, pelo fato de legitimar um tipo de governo que está no âmago do subdesenvolvimento econômico e político da América Latina, esse lapso se constitui numa forma de traição intelectual.

UM AMOR ESTRANGEIRO
O exemplo mais notável da simbiose entre alguns intelectuais ocidentais e os caudilhos latino-americanos é a relação amorosa entre os idiotas americanos e europeus e Hugo Chávez. O líder venezuelano, apesar das tendências nacionalistas, não hesita em citar estrangeiros em seus pronunciamentos para fortalecer suas opiniões. Basta ver o discurso de Chávez na ONU, no ano passado, no qual exaltou o livro de Chomsky Hegemonia ou Sobrevivência: a Busca da América pelo Domínio Global. Do mesmo modo, em apresentações no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Chomsky apontou a Venezuela como um exemplo para o mundo em desenvolvimento, elogiando políticas sociais bem-sucedidas nas áreas de educação e assistência médica, que teriam resgatado a dignidade dos venezuelanos. Ele também expressou admiração pelo fato de "a Venezuela ter desafiado com sucesso os Estados Unidos, um país que não gosta de desafios, menos ainda quando são bem-sucedidos".
Na realidade, os programas sociais da Venezuela têm se tornado, com a ajuda dos serviços de inteligência cubanos, veículos para cooptar e criar dependência social do governo. Além disso, sua eficácia é suspeita. O Centro de Documentação e Análise Social da Federação Venezuelana de Professores, instituto de pesquisas do sindicato da categoria, relatou que 80% dos domicílios venezuelanos tinham dificuldades em cobrir as despesas com comida em 2006 – a mesma proporção de quando Chávez chegou ao poder, em 1999, e quando o preço do barril de petróleo era um terço do atual. Quanto à dignidade das pessoas, a verdade é que, desde que Chávez se tornou presidente, ocorrem 10.000 homicídios por ano na Venezuela, dando ao país a maior taxa de assassinatos per capita do mundo.
Outra nação pela qual alguns formadores de opinião americanos têm uma queda é Cuba. Em 2003, o regime de Fidel Castro executou três jovens que haviam seqüestrado um barco e tentado escapar da ilha. Fidel também mandou 75 ativistas democratas para a prisão por terem emprestado livros proibidos. Como resposta, James Petras, há anos professor de sociologia da State University of New York, em Binghamton, escreveu um artigo intitulado "A responsabilidade dos intelectuais: Cuba, os Estados Unidos e direitos humanos". Em seu texto, que foi reproduzido por várias publicações esquerdistas em todo o mundo, defendeu Havana argumentando que as vítimas estavam a serviço do governo americano.
Conhecido simpatizante de Fidel, Ignacio Ramonet, editor do Le Monde Diplomatique, jornal francês que advoga qualquer causa sem graça que tenha origem no Terceiro Mundo, sustenta que a globalização tornou a América Latina mais pobre. A verdade é que a pobreza foi modestamente reduzida nos últimos cinco anos. A globalização gera tanta receita aos governos latino-americanos com a venda de commodities e com os impostos pagos pelos investidores estrangeiros que eles têm distribuído subsídios aos mais pobres – o que dificilmente é uma solução para a pobreza a longo prazo.
Com duas décadas de atraso, Harold Pinter fez uma avaliação espantosa do governo sandinista em seu discurso de aceitação do Nobel em 2005. Acreditando talvez que uma defesa dos populistas do passado poderia ajudar os populistas de hoje, ele disse que os sandinistas tinham "aberto o caminho para estabelecer uma sociedade estável, decente e pluralista" e que não havia "registro de tortura" ou de "brutalidade militar oficial ou sistemática" sob o governo de Daniel Ortega, nos anos 80. Alguém pode se perguntar, então, por que os sandinistas foram apeados do poder pelo povo da Nicarágua nas eleições de 1990. Ou por que os eleitores os mantiveram fora do poder durante quase duas décadas – até Ortega se transformar num travesti político, declarando-se defensor da economia de mercado. Quanto à negação das atrocidades sandinistas, Pinter faria bem em lembrar o massacre dos índios misquitos, em 1981, na costa atlântica da Nicarágua. Sob a fachada de uma campanha de alfabetização, os sandinistas, com a ajuda de militares cubanos, tentaram doutrinar os misquitos com a ideologia marxista. Os índios recusaram-se a aceitar o controle sandinista. Acusando-os de apoiar os grupos de oposição baseados em Honduras, os homens de Ortega mataram cinqüenta índios, prenderam centenas e reassentaram à força outros tantos. O ganhador do Nobel deveria lembrar também que seu herói Ortega se tornou um capitalista milionário graças à distribuição dos ativos do governo e de propriedades confiscadas, que os líderes sandinistas repartiram entre si após a derrota nas eleições de 1990.
O entusiasmo com o populismo latino-americano se estende a jornalistas dos principais veículos de comunicação. Tome como exemplo algumas matérias escritas por Juan Forero, do Washington Post. Ele é mais equilibrado e informado do que os luminares mencionados acima, mas, de vez em quando, revela um estranho entusiasmo pelo populismo do tipo que está varrendo a região. Em um artigo recente sobre a generosidade estrangeira de Chávez, ele e seu colega Peter S. Goodman criaram uma imagem positiva da forma como Chávez ajuda alguns países a se desfazer da rigidez imposta por agências multilaterais quando emprestam dinheiro para essas nações poderem quitar suas dívidas. Defensores dessa política foram citados favoravelmente e nenhuma menção foi feita ao fato de que o dinheiro do petróleo da Venezuela pertence ao povo venezuelano, e não a governos estrangeiros ou entidades alinhadas com Chávez, ou que esses subsídios têm limitações políticas. É o que se vê no ataque do presidente da Argentina, Néstor Kirchner, aos Estados Unidos e na louvação a Chávez, respostas evidentes à promessa feita por Chávez de comprar novos bônus da dívida argentina.

O PROBLEMA COM O POPULISMO
Observadores estrangeiros estão deixando de compreender um ponto essencial: o populismo latino-americano nada tem a ver com justiça social. No início, no século XIX, era uma reação ao estado oligárquico na forma de movimentos de massa liderados por caudilhos, cujo mantra era culpar as nações ricas pela má situação da América Latina. Esses movimentos baseavam sua legitimidade no voluntarismo, no protecionismo e na maciça redistribuição de riqueza. O resultado, por todo o século XX, foram governos inchados, burocracias sufocantes, subserviência das instituições judiciais à autoridade política e economias parasitárias.
Populistas têm características básicas comuns: o voluntarismo do caudilho como um substituto da lei, a impugnação da oligarquia e sua substituição por outro tipo de oligarquia, a denúncia do imperialismo (com o inimigo sempre sendo os Estados Unidos), a projeção da luta de classes entre os ricos e os pobres para o terreno das relações internacionais, a idolatria do estado como uma força redentora dos pobres, o autoritarismo sob a aparência de segurança de estado e clientelismo, uma forma de paternalismo pela qual os empregos públicos – em oposição à geração de riqueza – são os canais de mobilidade social e uma forma de manter o voto cativo nas eleições. O legado dessas políticas é claro: quase metade da população da América Latina é pobre, com mais de um em cada cinco vivendo com 2 dólares ou menos por dia. E entre 1 milhão e 2 milhões de migrantes procurando os Estados Unidos e a Europa a cada ano em busca de uma vida melhor.
Mesmo na América Latina parte da esquerda está fazendo a transição, afastando-se da Idiotice – semelhante ao tipo de transição mental que a esquerda européia, da Espanha à Escandinávia, fez décadas atrás, quando, de má vontade, abraçou a democracia liberal e a economia de mercado. Na América Latina, pode-se falar em uma "esquerda vegetariana" e uma "esquerda carnívora". A esquerda vegetariana é representada por líderes como o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, e o presidente costa-riquenho, Oscar Arias. Apesar da retórica carnívora ocasional, esses líderes têm evitado os erros da antiga esquerda, como uma barulhenta confrontação com o mundo desenvolvido e a devassidão monetária e fiscal. Eles se adaptaram à conformidade social-democrata e relutam em fazer grandes reformas, mas apresentam um passo positivo no esforço para modernizar a esquerda.
Em contrapartida, a esquerda "carnívora" é representada por Fidel Castro, Hugo Chávez, Evo Morales e pelo presidente do Equador, Rafael Correa. Eles se prendem a uma visão marxista da sociedade e a uma mentalidade da Guerra Fria que separa o Norte do Sul e buscam explorar as tensões étnicas, particularmente na região andina. A sorte inesperada com o petróleo obtida por Hugo Chávez está financiando boa parte dessa empreitada. A gastronomia de Néstor Kirchner, da Argentina, é ambígua. Ele está situado em algum ponto entre os carnívoros e os vegetarianos. Desvalorizou a moeda, instituiu controles de preços e nacionalizou ou criou empresas estatais nos principais setores da economia. Mas tem evitado excessos revolucionários e pagou a dívida argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI), ainda que com a ajuda do crédito venezuelano. A posição ambígua de Kirchner tem ajudado Chávez, que preencheu o vácuo de poder no Mercosul para projetar sua influência na região.
Estranhamente, muitos europeus e americanos "vegetarianos" apóiam os "carnívoros" da América Latina. Um exemplo é Joseph Stiglitz, que tem defendido os programas de nacionalização na Bolívia de Morales e na Venezuela de Chávez. Numa entrevista para a rádio Caracol, da Colômbia, Stiglitz disse que as nacionalizações não deveriam causar apreensão porque "empresas públicas podem ser muito bem-sucedidas, como é o caso do sistema de pensões da Seguridade Social nos Estados Unidos". Stiglitz, porém, não defendeu a nacionalização das principais empresas privadas ou de capital aberto de seu país e parece ignorar que, do México para baixo, nacionalizações estão no centro das desastrosas experiências populistas do passado.
Stiglitz também ignora o fato de que na América Latina não há uma separação real entre as instituições do estado e o governo. Empresas estatais rapidamente se tornam canais para patronato político e corrupção. A principal empresa de telecomunicações da Venezuela tem sido uma história de sucesso desde que foi privatizada, no início dos anos 1990. O mercado de telecomunicações experimentou um crescimento de 25% nos últimos três anos. Em contrapartida, a gigante estatal de petróleo tem visto sua receita cair sistematicamente. A Venezuela produz hoje quase 1 milhão de barris de petróleo menos do que produzia nos primeiros anos desta década. No México, onde o petróleo também está nas mãos do governo, o projeto Cantarell, que representa quase dois terços da produção nacional, vai perder metade de seu rendimento nos próximos dois anos por causa da baixa capitalização.
É realmente importante o fato de que os intelectuais americanos e europeus matam sua sede pelo exótico promovendo idiotas latino-americanos? A resposta inequívoca é sim. Uma luta cultural está sendo deflagrada na América Latina – entre aqueles que querem colocar a região no firmamento global e vê-la emergir como um importante colaborador para a cultura ocidental, à qual seu destino está associado há cinco séculos, e aqueles que não conseguem aceitar essa idéia e resistem. Apesar de a América Latina ter experimentado algum progresso nos últimos anos, essa tensão está impedindo seu desenvolvimento em comparação com outras regiões do mundo – como o Leste Asiático, a Península Ibérica ou a Europa Central – que, há pouco tempo, eram exemplos de atraso. Nas últimas três décadas, a média de crescimento anual do PIB da América Latina foi de 2,8% – contra 5,5% do Sudeste Asiático e a média mundial de 3,6%.
Esse fraco desempenho explica por que quase 45% da população ainda está na pobreza e por que, depois de um quarto de século de regime democrático, pesquisas feitas na região revelam uma profunda insatisfação com instituições democráticas e partidos tradicionais. Enquanto o Idiota latino-americano não for relegado aos arquivos históricos – algo difícil de acontecer enquanto tantos espíritos condescendentes no mundo desenvolvido continuarem a lhe dar apoio –, isso não vai mudar.


Ganhadores do Nobel também podem ser idiotas
O vencedor do Prêmio Nobel ganha uma viagem de graça à Escandinávia, uma medalha de ouro, algum dinheiro e, sobretudo, uma porta para a imortalidade intelectual. Tornar-se um Nobel, contudo, não deixa ninguém imune à estupidez, especialmente quando se trata da América Latina.
HAROLD PINTER, Nobel de Literatura de 2005
FRASE IGNÓBIL: "Os Estados Unidos finalmente derrubaram o governo sandinista (...) Os cassinos voltaram ao país. Saúde e educação gratuitas acabaram. As grandes empresas voltaram com ímpeto" – Discurso de aceitação do Nobel, em Estocolmo
A REALIDADE: Harold, odeio lhe dar a má notícia, mas a verdade é que foram os eleitores nicaragüenses, e não o governo americano, que tiraram os sandinistas do poder.

JOSEPH STIGLITZ, Nobel de Economia de 2001
FRASE IGNÓBIL: "O Chile teve muito sucesso nos últimos quinze anos... [O país] introduziu controles de capital. Privatizou apenas parte de suas minas de cobre, e as minas privatizadas não tiveram um desempenho melhor do que as minas estatais, sendo que os lucros das minas privatizadas foram enviados para o exterior, enquanto os lucros das minas estatais puderam ser investidos nos esforços de desenvolvimento da nação" – International Herald Tribune, 14 de fevereiro de 2007
A REALIDADE: Se as políticas que Stiglitz cita – controle de capital, nacionalização de minas e intervenção estatal na alocação dos lucros gerados pela exportação de commodities – explicam o sucesso do Chile, por que nenhum dos outros paises latino-americanos que implementaram tais políticas teve a mesma prosperidade?
GÜNTER GRASS,Nobel de Literatura de 1999
FRASE IGNÓBIL: "Os cubanos provavelmente não notaram a ausência de direitos liberais... [porque eles ganharam] ... auto-respeito depois da revolução" – Dissent, outono de 1993
A REALIDADE: Como Günter se sentiria se trocasse seus direitos liberais burgueses, incluindo o direito de publicar livros, por um pouquinho da dignidade cubana?

RIGOBERTA MENCHU, Nobel da Paz de 1992
FRASE IGNÓBIL: "Para pessoas comuns como eu, não há diferença entre testemunho, biografia e autobiografia... eu era uma sobrevivente (...) que tinha de convencer o mundo a olhar para as atrocidades cometidas em minha terra natal" – Entrevista coletiva na sede da ONU, em 1999
A REALIDADE: Rigoberta defendia-se das acusações de ter inventado partes de sua autobiografia para exagerar seu papel de vítima. Por que mentir se havia tantas histórias terríveis para contar?
* Álvaro Vargas Llosa é diretor do Centro para a Prosperidade Global do Instituto Independente, em Washington. Reproduzido com permissão do Foreign Policy nº 160 (maio/junho 2007) – www.foreignpolicy.com. Copyright 2007, Carnegie Endowment for Internacional Peace