domingo, fevereiro 03, 2008

O burguês e o banqueiro: por que eles são tão úteis?

Leonardo Bruno

No cerne da literatura, como também no vocabulário dos militantes engajados da pretensa “justiça social”, duas figuras parecem fadadas a caricatura, senão a ojeriza da plebe em geral, e dos intelectuais, em particular: O BURGUÊS E O BANQUEIRO. Em específico, dentro da panfletagem e da literatura socialista, estes dois seres motrizes da economia de mercado são taxados com os mais virulentos estereótipos. São culpados de empobrecer economicamente a humanidade, de extorquir os trabalhadores, de cobrar juros altos e agiotagem, de executar impiedosamente os bens dos devedores e reduzir às relações civis num “roubo” e “alienação” chamado comércio (sendo tal retórica, vindo dos chavões surrados do marxismo). Nestas condições, burgueses e banqueiros são seres pejorativos, tão pejorativos como qualquer estelionatário de beira de rua, como qualquer trapaceiro de canto de esquina. Malgrado estas roupagens, a literatura universal granjeou uma estupenda horda de antipatia a esta classe de comerciantes e atravessadores de dinheiro, que vivem de rendas e da poupança alheia: moralistas hipócritas, racionalistas frios, materialistas extremados, arrivistas arrogantes, tudo movido pelo mais mesquinho das benesses materiais: O LUCRO.

Se os estereótipos não são ao todo falsos, por outro lado, nunca se cometeu tamanha injustiça como a falta de reconhecimento da necessidade dos burgueses e dos banqueiros. Pelo contrário, eles revolucionaram mais a economia e a política do que muitos revolucionários profissionais da vida somados. O problema dos burgueses e dos banqueiros é que eles não têm tanta indústria midiática como um Karl Marx e Che Guevara. Chamam menos atenção que Karl Marx e Che Guevara, porque são mais discretos e são menos espalhafatosos em sua prática revolucionária.

Talvez os burgueses sejam espalhafatosos naquilo que muita gente critica e inveja: gastar, gastar e gastar sem muito compromisso e sem muito romantismo. Todavia, financiar guerrilhas de um aventureiro fútil do tipo Che Guevara custa mais caro do que os caprichos monótonos dos comerciantes. Os burgueses, os banqueiros e os que vivem de rendas em geral, quase sempre são conseqüentes e não arriscariam perder tudo o que tem em aventuras desastrosas e destrutivas dos guerrilheiros. Para muitos homens de negócios, Che Guevara soaria como um burguês excêntrico ou idiota. E ao contrário do que muitos pensam, os burgueses de tradição e linhagem detestam aparecer.
Mas por que tamanha injustiça aos burgueses? Poucas revoluções foram tão fantásticas como as transformações econômicas, políticas e jurídicas alimentadas pelos empreendimentos comerciais. A revolução burguesa, tal como a previdência burguesa e o sentido da poupança burguesa, nasceu em alguma vila ou feira de Europa do século IX, numa sociedade rigidamente estratificada, estamental, cuja sobrevivência era a subsistência da terra. Na prática, nada mais eram do que pequenos feirantes, uns verdadeiros camelôs sem origem social, excluídos das terras senhoriais, que vagavam de um lado para outro, transferindo e oferecendo mercadorias e serviços. As práticas dos vagantes, ao contrário dos servos e escravos, eram profissões livres, atividades autônomas, as mesmas daqueles mascates que carregam malas cheias de quinquilharias para vender de porta em porta (e no caso da Idade Média, de castelo em castelo).

Os mercadores, embora se locomovessem livremente, fincavam pontos comerciais onde poderiam ser encontrados ou fixassem moradias. Tal casa era o burgo. E os seus moradores, os burgueses, assim foram batizados. E deste modo nasceu a sociedade comercial. O comércio gerou uma revolução na Europa feudal. Muitos servos fugiam de seus feudos para tentarem a vida comercial e as práticas de mercancia eram uma oportunidade de vida para muitos que se livravam dos pesados fardos da hierarquia feudal. Por outro lado, a escassez de terras e o difícil acesso a elas restringiam a posse de muitos na atividade agrícola. De fato, a riqueza chama aqueles que a buscam e o comércio prosperou, e junto com ela, as cidades burguesas, com seu fausto de liberdade e riqueza. Foram as cidades burguesas medievais que foram pioneiras de legislações políticas democráticas modernas.

As leis civis, as comunas parlamentaristas dos moradores da cidade contrastavam com o domínio dos nobres e reis da época. Na realidade, os parlamentos não eram estranhos à nobreza ou a monarquia feudal. Porém, os governos colegiados e as liberdades civis criaram vínculos muito maiores na cidade do que no campo. Os modernos conselhos e parlamentos democráticos possuem um particular débito com as comunas e assembléias burguesas. Perspectivas de vida melhor e liberdade civil eram os maiores emblemas das cidades. De fato, dizia um provérbio medieval alemão: “STADTLUFT MACHT FREI” (o ar das cidades nos torna mais livres). Curiosamente, se for observado por uma ótica moderna, no êxodo rural para as cidades, qualquer camponês parece respirar esta liberdade que as cidades inspiram, em oportunidades e melhora de vida.
De fato, grande parte dos preconceitos contra a burguesia não é de hoje. A crença comum do “individualismo” do mercador já era retratada muito antes da Idade Média, uma vez que o comerciante era visto como uma pessoa desterrada, sem vínculos com ninguém. Na Grécia Antiga, como em Roma e na Idade Média, o vínculo de alguém a algum lugar era determinado pela terra, mais precisamente pela propriedade privada rural. Quem não tivesse vínculos com a terra, era considerado um degradado, um estranho na comunidade, sem direitos políticos. Ou na pior das hipóteses, um “idiota”, ou seja, alguém sem vínculos com a comunidade, um individualista. A terra, ou a propriedade, desde a época antiga até a baixa Idade Média, era muitas vezes inalienável, porque a economia era de auto-suficiência, e, em particular na Idade Média, as terras eram privilégios de algumas famílias nobres. Além de ser sinônimo de ligação com uma comunidade, possuir terras era ter posição social.

O sinônimo e status do “burguês” na Idade Média se equivalia a de um reles feirante, um vendedor barato ou mesmo um atravessador. Em alguns casos, era um “marrano”, um “judeu”, uma figura desclassificada socialmente. Foram os burgueses que romperam a regra da sociedade estamental agrária, tornando os bens imóveis comercializáveis, e, portanto, acessíveis a qualquer classe social. O que era uma sociedade com pouca circulação de riqueza, acabou por se tornar uma espontânea rede de trocas econômicas, não só facilitando a mobilidade de produtos, como também a ressurreição de um padrão monetário, ou seja, a moeda.
Na velha sociedade estamental, onde a economia era de subsistência, a moeda era pouco utilizada, pois em algumas regiões a riqueza simplesmente mal circulava, limitando-se ao mais primitivo escambo. Foram as práticas mercantis das feiras e mercados destes artesãos, peixeiros e camelôs que não somente flexibilizaram o acesso a riqueza, como também dinamizaram-na, drenando-a e fazendo-a circular livremente pela Europa. Este malvado monstro chamado “mercado” renasceu, e em miúdos, foi gerado. Se a odienta figura do burguês surgiu de uma rudimentar feira de comércio medieval, a origem do banqueiro não foi diferente. Certo dia, um comerciante, artesão ou mascate acumulou e poupou determinada quantidade de rendas, acabando por não saber o que fazer com elas. De repente, algum outro comerciante, um nobre ou mesmo um rei necessitado o procura e pede emprestado o seu dinheiro. Cobrando garantias de crédito e uma determinada taxa de juros, o emprestador se convence de seu ato, encontrando um jeito de dar destino a seu dinheiro: OU SEJA, LUCRANDO NA “VENDA” OU EMPRÉSTIMOS DE DINHEIRO. Por conseguinte, ele não só percebe uma procura de empréstimos para seu dinheiro, como também ele sabe que existem tantos mercadores endinheirados como ele. Então, movido por uma notável intuição para satisfazer a demanda, simplesmente pede emprestado dinheiro, coletando sócios e credores para seu empreendimento. Coletando seu capital e o capital dos outros, o burguês "vende” o dinheiro para terceiros, enquanto promete pagar uma porcentagem do que ganhar aos seus credores. Do empréstimo, o burguês tira uma parte dos seus ganhos em taxas de juros e distribui uma parte do seu ganho a seus sócios credores. Em outras palavras, o artesão da feira acabou por se tornar um banqueiro.
É claro que isto é apenas uma dedução hipotética do que deve ter ocorrido, dentre outras experiências similares nas feiras européias, pois já havia precedentes históricos deste fenômeno. Na Idade Média, muito antes dos cristãos exercerem o mercado financeiro, os judeus cumpriam o papel de prestamistas privados, já que os bancos ainda eram remotos e entre os católicos, havia restrições de exercerem práticas de empréstimo. Todavia, isto não impediu o surgimento das bancas dos Templários, que criaram talvez uma das primeiras práticas de transferência de conta-corrente da história. Era simples: se um comerciante, rei ou nobre quisesse transferir uma renda de um lugar para outro, era só o cliente colocar o dinheiro no banco da sua cidade, e um cavaleiro ia a outro banco em que o dinheiro seria transferido, para informar sobre a aplicação. O banco que era informado do depósito liberava o dinheiro, quando tomava conhecimento de que outra filial sua já tinham seu valor depositado. O que era antes uma prática restrita, tornou-se disseminada. Os banqueiros da feira herdaram e aprimoraram as práticas financeiras. Os bancos cada vez mais aperfeiçoavam o acesso ao crédito.
Se o mercador do burgo era um mero feirante, o banqueiro não fugia a regra, com o agravante de viver às custas da “usura”, algo tão condenado pela moral da época como pela Igreja. A usura, ou a cobrança de juros, era considerada “roubo”, pois pressuponha que o comércio de dinheiro não gerava riqueza. O mesmo se pode dizer do “lucro”, besta tão malvada, vilipendiada por alguns frades medievais e socialistas. Tão hostil quanto o “banqueiro” ou o dono de uma banca a ponto de “vender” seu dinheiro pela usura, era abastança com que eles se apresentavam, enfurecendo muitos nobres. Ora a nobreza concedia favores, ora deixava os usurários em desgraça, em particular, contra aqueles que constituiam uma ameaça a seus bens. Por outro lado, muitos foram agraciados com as benesses da monarquia e da Igreja Católica, uma vez que custeavam não somente os gastos arbitrários, mas até as suas cavalheirescas guerras. Aliás, os banqueiros no final da Idade Média granjearam enorme prestigio no governo das cidades e repúblicas, entre os quais, a poderosa família italiana e florentina dos Médici. Ou os banqueiros Függer, financiadores do imperador Carlos V da Alemanha.
Segunda Parte do texto.
Os judeus tinham um certo destaque de preferência dos nobres, haja vista porque os mesmos eram deslocados da vida plebéia cristã e da nobreza. Os judeus eram figuras assazes estranhas da sociedade européia, verdadeiros excluidos do meio social, a tal ponto de ser mais fácil para os nobres pedirem seus empréstimos, sem concederem no essencial de poder. Nasce aí o “judeu da corte”, o abastado semita vivendo de favores dos nobres, em troca de seu capital. Em contrapartida, se o banqueiro era visto com desconfiança pelos nobres, para o povo em geral, a figura do “banqueiro judeu” tornou-se uma mística de ódio virulento para sempre na imaginação da Europa. Visto que aquele elemento estranho cobrava as malditas “usuras”, sugava os devedores, e por sinal, não tinha a dignidade de ser cristão, blasfemando contra Cristo e negando-o como Messias.
Outro fator de hostilidade aos judeus é o fato de alguns deles possuírem privilégios acima dos plebeus, através de concessões vassálicas da nobreza. Era uma situação dúbia. Se alguns judeus tinham o privilégio nobre de emprestar e gerir negócios nobiliárquicos, a grande maioria estava à margem dos direitos civis modernos. Eles ficavam aos caprichos de seus senhores feudais, que poderiam tanto agradá-los, como extorqui-los. O desprezo aristocrático e medieval ao banqueiro acabou por se assimilar no povo um viés anti-semita, uma vez que muitos emprestavam dos judeus (e quase sempre detestavam pagar). A família judia de banqueiros mais famosa da Europa, sem dúvida foram os Rothschild (ou a família do brasão vermelho), cuja casa bancária fundada num ghetto judaico de Hamburgo por volta de 1770, prosperou por mais de um século e meio, financiando quase todos os empreendimentos e quase todas as guerras do século XIX e do começo do século XX.
Se os banqueiros de alguns reis tinham privilégios especiais, em outros países da Europa, em particular a Inglaterra e Holanda, as casas bancárias se pautavam no princípio da liberdade comercial. Uma burguesia próspera, independente e empreendedora ali nascia, hostilizando não só o poder real, mas qualquer tipo de intervenção estatal arbitrária. Em específico na Holanda do século XVII e na Inglaterra do século XVIII, as casas bancárias tiveram seu maior esplendor econômico, desenvolvendo práticas de créditos inéditos até aquela dada época, evoluindo o sistema econômico e tornando-o cara vez mais flexível e mais prospectivo.

Foi a evolução do crédito bancário, junto com o empreendimento do livre comércio, que vigorou o sistema de mercado, e conseqüentemente a geração de atividade produtiva. Porém, se alguns banqueiros vivam pelas oscilações parasitárias do poder da nobreza, os comerciantes enriquecidos começaram a investir em empreendimentos acobertados pelos reis, cujos capitais acumulados dinamizavam o comércio dos países, e, por conseguinte, os tributos. Os outroras feirantes de beira de estrada, a outrora gentalha que batia de castelo em castelo vendendo quinquilharias, a gentinha fedorenta que se imiscuía com trabalhos pouco “nobres” ou “mecânicos”, agora estava na ordem do dia, conhecendo uma posição social e econômica antes desconhecida.
Em outras palavras, a burguesia reinventou a ascensão social. A idéia de prosperidade e ascensão social, se não era virtualmente ignorada na Idade Média, tornava-se remota. O status social de cada membro da sociedade medieval era determinado pelo nascimento e pela condição hereditária de sua família, cuja mobilidade social era quase nula. Os burgueses sem origem, sem tradição, sem privilégios, foram responsáveis pela idéia da “prosperidade”, mais precisamente na melhora econômica de vida através da perspectiva de trabalho e do mérito individual. Numa sociedade que via o trabalho como condição de subalternos, servos e escravos, o burguês ascendendo socialmente era uma anormalidade para a época, de certa forma tolerada. S burguesia desenvolveu este espírito de empreendimento e as casa bancárias patrocinaram o “crédito” como um valor econômico, ou seja, na confiança mútua tanto de credores como de devedores. Ao invés de colocar as economias debaixo do colchão, deixando parado seus capitais, o credor empresta os frutos de sua poupança ao devedor através dos bancos, e o devedor o transforma em nova fonte de riqueza circulante, seja investindo numa empresa, seja consumindo.
Os nobres, percebendo nos banqueiros e burgueses enriquecidos, bons aliados, acabaram por nobilitá-los, ou no mais, em busca de seu dinheiro. Os burgueses, em troca, queriam privilégios, mais precisamente privilégios de investimento comercial. Embora a sociedade comercial tenha nascido em plena Idade Média, a idéia de “livre comércio” é surpreendentemente nova, e se consagrou no século XVIII, com as idéias liberais de Smith e da Escola Clássica de Economia. Grande parte da economia comercial da época era ministrada por guildas e corporações comerciais rigidamente fechadas, com usufrutos de monopólios econômicos e comerciais. Tais práticas ainda eram resquícios medievais da cultura feudal, onde o nobre, na relação de vassalagem e suserania, concedia terras e privilégios a seus costados.
O que era uma tendência de poucos, nos monopólios de corporações, ofícios e privilégios nobiliárquicos, acabou por ser uma exigência de muitos de uma época. Quando hoje se critica a “liberdade de comércio”, pouco se atenta ao fato de que o quanto era dificil abrir um negócio como em épocas passadas. Talvez a liberdade de locomoção, tão corriqueira nos dias de hoje, era quase impensável no século XVII e XVIII. Abrir uma empresa, viver por conta própria, era algo que dependia das regalias pesadas do Ancien Regime, onde só alguns banqueiros e empresários eram eleitos pelo favoritismo do principe.
Se muitas corporações eram privilegiadas por conchavos nobiliárquicos, não poucos criticavam tais privilégios. Não só porque tal prática cerceava a prosperidade social em favor de poucos, como também inviabilizava as melhorias de produção e expansão do mercado. Foi a partir do século XVII e XVIII que os privilégios feudais começaram a ruir de vez, dando espaço para a liberdade política, civil e econômica.

Para o cidadão do século XVIII, acostumado as intervenções arbitrárias da monarquia, “liberdade comercial”, tal como a existência de créditos bancários, de empresas, indústrias e possibilidades de investimentos livres era algo tão novo quanto revolucionário. Numa sociedade, cuja pobreza chegava a níveis africanos de hoje e onde a alimentação era cara e escassa, o capital não só geraria produtos melhores, mais baratos, como também geraria credito para produzir mais recursos. Por outro lado, foi o mercado, na figura do banqueiro e do mercador, que foi desenvolvido as sociedades anônimas, as sociedades de capital aberto, e afins, as poupanças e toda sorte de espírito de previdências que a economia nos cobra.
Os cartões de crédito, as letras de câmbio, os cheques, as notas promissórias, as debêntures e toda sorte de créditos embasados na confiança, foram gerados pelo mercado, através dos bancos, sem os quais, a sociedade estaria mais pobre. Nos últimos dois séculos, apesar de todas as guerras, de toda estupidez econômica e política que os séculos XIX e XX geraram, a prosperidade econômica do capitalismo melhorou sensivelmente o padrão de vida do mundo. Isto se for considerado não só o desenvolvimento tecnológico e o barateamento vertiginoso do consumo, e sim, as facilidades que a economia de mercado gerou para a distribuição de renda em geral. O crédito dos bancos barateou o custo dos produtos, como as facilidades de pagamento que o crédito bancário propicia, tornando o capital mais acessível e, por conseguinte, o consumo. Isto se deve, em parte, ao empreendimento comercial, nascido de artesãos, feirantes e mascates que entraram para a história com a alcunha de burgueses. Estes burgueses que não só vendiam quinquilharias, como aqueles que constituíam bancas e vendiam dinheiro. Em suma, é necessário reconhecer a grandeza e a necessidade deles. Com todas as mesquinharias da avareza destes destemidos feirantes e mascates, é preciso fazer-lhes justiça.

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