terça-feira, julho 08, 2008

DE OPRIMIDOS E OPRESSORES

Reinaldo Azevedo

Fiz ontem, vejam lá, algumas considerações sobre a situação africana. E recebi um comentário interessante. Na sua crueza, não é muito diferente do que pensa de seus adversários uma Marilena Chaui, por exemplo, embora ela busque colocar um pouco mais de recheio filosófico em seu rocambole filototalitário. Lá vai a questão: “Reinaldo, por que [ele acentuou esse “que”, e eu já dei essa aula...] você fica sempre do lado dos opressores e não dos oprimidos? Isso é ser de direita, ou você quer ser do contra? Explica pra nós vai.”

Se eu tivesse de escolher uma dessas duas opções ou ir para a forca, eu diria que é porque “quero ser do contra” — de fato, tem mais a ver com meu temperamento. Mas depois me ocorre que só se é “do contra”, nesta acepção que designa o sujeito que sempre reclama, quando estão plasmados consensos. Como esses consensos, especialmente na esfera dos valores morais e culturais, são de esquerda, então esse meu gosto pelo “contra” acaba assumindo, na geografia dada, uma característica que dizem ser “de direita”. Não sei se confundo o pobre leitor que fez a pergunta, mas o fato é que comecei o parágrafo para lhe dizer que sou do contra e concluo afirmando que, dados os consensos (e só nessa circunstância), sou tambem de direita.

Alguns tontinhos, especialmente alguns desafetos da mesma profissão, acreditam que, sei lá, aderi a uma moda que acho divertida. Moda? Somos quantos mesmo? Quatro? Cinco? Seis no máximo. A nossa multidão não lota uma Kombi. Mas volto à indagação do meu amigo. Não é verdade que eu esteja sempre do lado dos opressores — em causas recentes ou passadas. Nunca defendi os fascistas, mas os meus “oprimidos” não eram os comunistas. Se leio sobre Roma Antiga, por exemplo, não é que eu hostilize os povos dominados — é que acredito firmemente que a expansão da cultura latina foi um bem para a humanidade.

Se eu pudesse ter escolhido, caro leitor, talvez tivesse impedido a expansão mercantil e as grandes navegações dos séculos 15 e 16. Os europeus teriam ficado quietinhos lá no canto deles; os nossos nativos passariam a eternidade batendo o pé no chão para acordar os mortos; os africanos continuariam lá tocando a sua vidinha buliçosa, cheia de cultos animistas — sobre a expansão do Islã, ainda não decidi se teria interferido ou não: conhecendo-me um pouco, acho que sim. E os chineses? Bem, chineses, indianos, japoneses protegeriam de olhares curiosos sua sabedoria milenar, cheia de significados para... chineses, indianos e japoneses. Mas o mundo não se fez assim, entende? Não se fez.

O que é estar sempre “do lado do opressor”? É não olhar com os olhos da moral contemporânea a expansão mercantil, por exemplo? Se os povos pré-colombianos tivessem dominado uma técnica que lhes permitisse sair ao mar, colonizando outras terras, o mundo seria mais justo? Tenho sólidas razões para duvidar disso. Como rejeito essa conversa mole de “Mãe África”. Os negros escravos dos brancos portugueses e brasileiros não sofreram mais aqui do que teriam sofrido nas mãos de seus senhores. Nego, com isso, os horrores da escravidão? De jeito nenhum! Eu apenas demonstro que as noções contemporâneas que temos de igualdade e de justiça são uma construção deste tempo. E cumpre que façamos o melhor do que fizeram de nós, em vez de tentar fazer a história voltar para trás.

Mas sua pergunta não é de todo descabida. Eu, com efeito, prefiro as reformas às revoluções; prefiro os processos de construção da igualdade, preservando o que tem de ser preservado, às rupturas, que, não raro, degeneram em violência, morte e novos horrores, mas aí com a chancela moral da “libertação”. Poucos regimes foram tão essencialmente autoritários, violentos e homicidas quanto a vigência do Terror jacobino, durante a Revolução Francesa. E poucos discursos foram tão humanistas quanto o daqueles revolucionários. Fascismo e socialismo, no século passado, falavam em nome da libertação.

Talvez eu seja, contra a minha própria inclinação, um otimista e acredite, veja que coisa, no progresso, dadas certas precondições, como democracia representativa, por exemplo. E tenho algumas convicções. Não aposto em iniciativas que contrariem a economia de mercado porque acho que ela está mais bem-adaptada a alguma coisa que chamo de “espírito humano”, à falta de uma definição mais precisa.

O cérebro desse macaco sem pêlo, que somos nós, impele-nos, por alguma razão, à competição e à busca do novo. Falharam todas as tentativas de aprisioná-lo. Por que os MSTs da vida e sua pantomima revolucionária me entendiam? Porque sei que eles vão continuar a consumir alguns bilhões de recursos públicos para... nada! Ou, sim, para alguma coisa: para continuar a alimentar a própria causa. Acredito na “tal luta dos oprimidos”? Acredito, por exemplo, em quem se organiza para a formalização da mão-de-obra empregada pela agroindústria. O MST quer outra coisa: uma espécie de éden comunista, já testado e rejeitado pela história.

Veja que coisa, leitor: considero que João Pedro Stédile é, ele sim, um opressor daquela gente que ele mobiliza. Até porque o seu modelo não prevê que os “sem-terra” recebam o seu quinhão para, sei lá, cuidar da vida e progredir como seres autônomos: eles passam a pertencer a uma categoria que há de persegui-los até a morte: serão para sempre assentados sem-terra, devendo vassalagem ao seu suserano: o MST. Quem é o opressor dessa história?E arremato lembrando que o “discurso do oprimido”, como uma visão de mundo, é um contradição dada pelos próprios termos. O oprimido de verdade está esmagado pelo silêncio. Se o sujeito é dotado de uma fala organizada, então já é um ator político. E se, como tal, reivindica, ainda assim, a condição de um oprimido, ele já começou a construir o discurso do opressor — e do pior deles: aquele que busca o direito histórico ao uso legítimo da violência. Não se esqueçam de que na base do fascismo, por exemplo, estava um recalque. Diria mesmo que ele foi a explosão violenta do recalcado.

Ontem, os sem-terra se organizaram em Parauapebas, no Pará, para tentar libertar na marra um dos seus que tinham sido preso. Era seu particular senso de justiça em ação. Foram reprimidos pela Polícia, os pobrezinhos. A poucos ocorre que eles estavam lá para oprimir o estado democrático e de direito, que não se construiu da noite para o dia.
http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/ 08.07.08

quarta-feira, julho 02, 2008

ERRAR É HUMANAS

ERRAR É HUMANAS

Gustavo Ioschpe

Eu só descobri que não entendia nada de matemática quando conversava com um colega russo, no mestrado, sobre o assunto. Aquilo que pra mim exigia um grande esforço mental, de montagem de equações e de tentativa de operações algébricas, para ele era visivelmente algo automático, instintivo, como a construção de uma frase em sua língua natal. Não sei exatamente como os russos ou os asiáticos ensinam a matemática, mas hoje entendo por que o nosso ensino é tão fraco. No Brasil, não se ensina matemática.

Se ensina a resolução de problemas matemáticos.
Nossas escolas explicam a mecânica da coisa. Pra somar e subtrair, você "passa um pra lá", "tira um de lá" e pronto, está aí o resultado. Multiplicação é simples: basta decorar a tabuada e, para números maiores, adicionar a mecânica da adição. A divisão é também uma questão quase geográfica: coloque o divisor aqui, o dividendo ali, na "cadeirinha", puxe a tabuada da memória e vá seguindo até que se encontre o resultado e o "resto". Trigonometria é um exercício de decoreba de fórmulas e ângulos. Geometria é como se fosse um quebra-cabeça com algumas peças faltando: basta saber que a soma dos ângulos de um triângulo é 180 graus, ou o teorema de Pitágoras ou a fórmula do raio de uma circunferência para se resolver todo e qualquer problema.

Os problemas costumam ser de uma inutilidade total, mais na linha de "um círculo inscrito em um quadrado de lados..." do que "para colocar uma pizza em uma caixa quadrada...".
O problema é fundamentalmente filosófico, epistemológico: a maioria das pessoas entende a matemática como uma ferramenta que precisamos dominar para resolver alguns problemas do cotidiano. Mas a matemática não é isso.
A matemática é uma linguagem que descreve o mundo. Todo o mundo físico é traduzível em números, com acuidade muito maior do que a descrição feita por palavras. Além disso, a matemática é a árvore da qual brotam os frutos das ciências exatas: física, química, biologia, estatística, engenharia, medicina - nada disso seria possível sem a matemática.
Eu só fui descobrir isso quando já estava no mestrado.

De tudo que estudei na vida - e acabei estudando, na faculdade, história, ciência política, psicologia, sociologia, economia, geologia, marketing, administração, contabilidade, crítica literária, filosofia e outras que nem me lembro mais, não apenas por desejo e curiosidade próprias, mas porque o sistema americano impõe essa multidisciplinaridade - hoje vejo que a matéria mais importante é estatística. Achava a matéria um porre quando a cursei, no primeiro ano.

O que é natural, aliás: aos 18 anos, o cérebro humano está demasiadamente encharcado de hormônios para que os pensamentos possam nadar. Agora vejo que a estatística é a base de tudo, é o que possibilita a distinção entre a opinião e o fato, a aparência e a realidade (as "formas" platônicas).

Sem estatística não pode haver ciência exata nem ciência social. Cada vez mais entendemos que comportamentos que antes podiam ser debatidos apenas por filósofos, romancistas e poetas agora são explicáveis através da aplicação rigorosa de métodos estatísticos. É claro que a estatística não responde as perguntas fundamentais da existência - como viver a boa vida? - mas tampouco o faz a filosofia, com a agravante que uma filosofia desprovida de estatística é apenas um teatro para o duelo de visões antagônicas e insubstanciadas, com resultados potencialmente nocivos.

"Errar é humanas", disse um professor de história da arte da Unicamp que me acompanhava em um debate anos atrás, numa daquelas manifestações de auto-ironia que não têm sinceridade nenhuma. Não, errar não é humanas. Há muito acerto - e muito erro - naquilo que se produz nas humanas. O difícil, sem o auxílio da estatística, é separar o joio do trigo. Não é que errar seja humanas, é que a convicção do acerto só pode vir com a ajuda das exatas. Sem uma comprovação empírica, qualquer pensamento é apenas uma tese.

Os filósofos e historiadores que me lêem deve estar nauseados, mas mal sabem eles que esse axioma os cerca em todo lugar. Os remédios que eles tomam quando estão doentes só são aprovados ao passar por um processo estatístico que os separe de um placebo ineficaz. Todos os processos produtivos/industriais que geram os bens que consumimos são calibrados e controlados por ferramentas estatísticas de controle de qualidade. As peças dos carros que dirigimos são submetidas a testes estatísticos que asseguram sua confiabilidade. O computador no qual você lê esse artigo só existe por uma ferramenta estatística que determina a sua eficiência. A civilização moderna não é possível sem a estatística. E, ainda assim, está na moda praguejar contra números. Até professores renomados, como esse da Unicamp, podem falar bobagens como "os números são criações humanas e, como tal, têm uma intencionalidade" e se sentir bem, como se não estivessem cometendo um crime intelectual.
Essas idéias me vêm à mente quando vejo que filosofia e sociologia foram incluídas como matérias obrigatórias no currículo do ensino médio. Veja só: nosso sistema educacional é um fracasso tão retumbante que, na última medição em que o desempenho dos alunos foi dividido em níveis, o SAEB de 2003 apontou que 55% dos alunos da quarta série estavam em situação crítica ou muito crítica em leitura, o que quer dizer que eram praticamente analfabetos. A maioria dos alunos que faz a prova de Matemática no SAEB acha que "3/4" é 3,4, e não 0,75. Não entendem nem a notação de uma fração. Achar que esses professores, com essa qualidade, conseguirão ensinar filosofia e sociologia a esses alunos é o que os ingleses chamam de wishful thinking, um otimismo despropositado.

No primeiro semestre da faculdade, li um texto muito bom de Paulo Freire, em que ele dizia que era preciso read the word to read the world (ler a palavra para ler o mundo). Não sei se ele o escreveu em inglês ou se a tradução foi especialmente fortuita, mas o enunciado é verdadeiro: é impossível entender a complexidade do mundo se você não sabe ler. É impossível estudar filosofia se você não sabe ler. Essas aulas serão apenas uma maneira mais escancarada de se praticar o doutrinamento do marxismo rastaquera que impera em nossas escolas. Eu particularmente ficaria muito contente se os nossos alunos saíssem do ensino médio ignorantes de filosofia e sociologia, mas conseguindo ler um texto e entendendo-o, para que tomassem suas próprias conclusões filosóficas ao lerem seus próprios livros. E se fosse para incluir uma nova disciplina em nosso currículo, adoraria que fosse estatística.

A maioria dos alunos a detestaria e aprenderia muito pouco, mas talvez uma minoria conseguisse extrair daí o ferramental que lhe permitiria julgar, com a sua própria racionalidade, a veracidade das teorias com que são bombardeados na escola, nas ruas, na mídia. O que de melhor pode haver no processo educacional do que a capacidade de não apenas instigar a capacidade de questionamento dos alunos, mas também dar-lhes o instrumental que lhes permitirá solucionar esses próprios questionamentos sozinhos?
www.veja.com.br 30.06.08.