quinta-feira, junho 19, 2008

RIOS QUE NUNCA SE ENCONTRAM

18 de Junho de 2008 Atualizado às 22:30h

Demétrio Magnoli
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A Câmara dos Deputados prepara-se para votar o PL 73/99, projeto de lei que institui cotas para alunos de escolas públicas e subcotas raciais nas universidades federais e nas escolas técnicas federais. Ele se apresenta como iniciativa de inclusão social, mas nada tem que ver com isso. Se quisessem promover inclusão, dobrariam as vagas nas universidades públicas, algo relativamente barato, e se limitariam a introduzir cotas para alunos de escolas públicas, como compensação provisória da calamidade que é o ensino médio oficial. O PL de cotas raciais existe para dinamitar o mito de origem do qual emana a identidade brasileira.

A nação é uma "comunidade imaginada", na expressão de Benedict Anderson. O Estado-nação surgiu na escola, com a expansão e universalização da educação pública, e se refaz o tempo todo por meio de uma narrativa de unidade difundida nas salas de aula. Língua e Literatura configuram a nação na esfera da cultura. A História inscreve a nação no tempo; a Geografia a imprime no espaço. O nosso mito de origem nasceu no Império, com o naturalista Carl Von Martius, que descreveu o Brasil como a junção de três rios: as culturas indígena, européia e africana. Ele se consolidou na República, com Gilberto Freyre, que disse que essas águas se misturaram no grande rio da nação mestiça. O PL de cotas raciais tem a função exclusiva de substituir essa narrativa por uma outra.

Nas escolas públicas, estudantes de todas as cores, oriundos de famílias da classe trabalhadora, aprendem que, como cidadãos brasileiros, têm direitos iguais. A lei das cotas veiculará a mensagem de que isso não é mais verdade. Ela separará as turmas de alunos em dois grupos, dividindo-os pela fronteira da raça. De um lado, ficarão os alunos rotulados como "brancos"; do outro, os alunos carimbados como "negros". Dos primeiros será cobrada uma "dívida histórica" contraída pelos proprietários de escravos. Aos segundos, que desempenharão o papel fraudulento de descendentes de escravos, será oferecida a renda proveniente daquela cobrança. Colegas de classe e de folguedos, que vivem nas mesmas ruas, às vezes nas mesmas casas, e cursaram juntos a mesma escola, serão julgados não pelo desempenho no mesmo exame, mas pela cor da sua pele. O PL de cotas raciais narra um mito perverso de três rios que correm paralelos, sem nunca se encontrarem.

A troca do mito do encontro pelo do desencontro é uma operação conduzida por um Estado ideológico, engajado na falsificação da identidade nacional. O Ipea divulgou a "informação" de que a "população negra" superará este ano a "população branca". Os dirigentes do órgão público agem, à revelia da lei, como militantes de sua causa. A verdade é que continua a aumentar a parcela dos que se classificam como "pardos", enquanto se reduzem as parcelas que se classificam como "brancos" e como "pretos". Nas pesquisas, os brasileiros dizem que são mestiços e rejeitam a polaridade das raças. Na mídia, os órgãos oficiais seqüestram a palavra dos cidadãos e propagam uma versão mentirosa que significa exatamente o oposto. Eles apagam os mestiços das estatísticas, erguendo diques nos rios de Martius para impedir a confluência de suas águas.

A fotografia de uma turma das escolas públicas brasileiras revela a presença dominante de um gradiente de tons de pele intermediários entre o "branco" e o "preto". Na sua imensa maioria, os meninos e as meninas das nossas escolas públicas corporificam as complexas mestiçagens que fabricaram uma nação nova, num mundo apartado da "tradição do sangue" vigente tanto na Europa quanto na África. Onde exatamente será traçada a fronteira racial exigida pelo PL de cotas? Pelo alto, universidades engajadas na operação de divisão racial do Brasil fotografam e entrevistam os candidatos, atribuindo-lhes rótulos raciais irrecorríveis. Por baixo, de acordo com norma do MEC em vigor há três anos, as fichas de matrícula no ensino básico associam cada aluno a uma "raça". O Estado brasileiro, cercado por uma rede de ONGs racialistas, não pretende deixar nenhum jovem sem um carimbo de "raça".

A engenharia social racialista que formulou o PL de cotas é um elo do programa internacional do multiculturalismo. A sua fonte original se encontra na Fundação Ford, que financia as redes de ONGs empenhadas na fabricação de etnias e raças. O seu motor ideológico se encontra na academia, entre intelectuais dedicados a escrever narrativas identitárias baseadas na "tradição do sangue". As teses desses intelectuais não são motivadas pelo propósito de investigar o passado, mas pelo imperativo de legitimar um programa de ação política. A manipulação, a distorção e a fraude são suas ferramentas cotidianas de trabalho. A certeza de uma carreira de sucesso e a expectativa da conquista de posições de prestígio e influência são as compensações oferecidas por seus financiadores. Hoje, amparada por um Estado que brinca com a coesão nacional, essa fábrica de ideologias escreve uma história racial do Brasil.

Mitos não são verdades nem mentiras. Eles contam o que imaginamos que somos e apontam na direção daquilo que queremos ser. O nosso mito de origem não impede que se reconheçam as violências históricas perpetradas contra indígenas e escravos. Mas ele nos iguala como cidadãos, erguendo uma plataforma que nos impele a exigir direitos sociais e econômicos para todos.

Quando se iniciar a sessão de votação do PL de cotas, as galerias da Câmara estarão ocupadas por ativistas das ONGs racialistas, muitos deles funcionários públicos em cargos de confiança. A minoria organizada encarnará a representação imaginária de uma "raça" e se apresentará como procuradora dos antigos escravos. Se a farsa intimidatória funcionar, uma narrativa de ressentimento e rancor começará a invadir as salas de aula, envenenando o futuro. Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br

O DIA EM QUE OS POBRES ENRIQUECERAM

18 de Junho de 2008 Atualizado às 22:58h
www.oestadao.com.br Sábado, 14 de Junho de 2008 Versão Impressa

Alexandre Barros

Política é fascinante, não pelo que se sabe que vai acontecer, mas, sobretudo, pelo que não se consegue antecipar.Durante anos o discurso dos políticos era o de que eles iam melhorar a vida dos pobres. Inúmeras políticas foram feitas em nome disso. Algumas úteis. A maioria, desperdício, porque o dinheiro não chegou aos pobres - comida que foi, no meio do caminho, por políticos desonestos e burocratas honestos, encarregados de distribuir o dinheiro. Em troca de um bom salário, é claro.

O caso é que, pelo menos desde a década de 1950, ocorreram coisas aparentemente desordenadas: uma indústria nacional montada a elevadíssimo custo, uma ampliação da educação (mesmo que sem muito controle de qualidade, o que ficou claro era que melhor era que as pessoas tivessem alguma educação do que nenhuma); a decadência do ensino público e o crescimento da oferta do ensino privado, controlado pelo mercado; a montagem de uma infra-estrutura feita, basicamente, pelos governos militares, por razões militares; a montagem de uma rede de telecomunicações nacional, a instalação de uma indústria aeronáutica e a abertura comercial iniciada em 1991.

A lista é maior, mas vou ficar por aqui. O curioso dessa lista e do que não não coloquei nela, por falta de espaço, é que ela não foi obra dos políticos, como um todo. Foi obra de alguns personagens, individuais ou coletivos, que tomaram decisões para satisfazer as suas necessidades específicas.Juscelino queria reeleger-se. Os militares queriam um Brasil poderoso. Collor queria mais liberdade de consumo. E o PSDB queria reformar o País. Cada um fez um pouco do que queria, por razões privadas, e poucos efeitos dramáticos eram vistos como resultado de cada uma dessas políticas. Só que, independentemente do desejo de cada um dos atores que protagonizaram ou implementaram essas decisões, seus efeitos se foram acumulando, mas, ainda assim, eram pouco visíveis.

O fusível que detonou os efeitos cumulativos de todas essas políticas e tornou a mudança visível foi a continuada política antiinflacionária e o aparente milagre da queda dos juros. De repente, os efeitos sobre os quais muito pouca gente refletia se acumularam e desaguaram como se se rompesse uma barragem: com dinheiro que pouco se desvaloriza e crédito farto, os pobres entraram no mercado de consumo para valer.

Aí apareceram vários nós, especialmente nas áreas controladas pelo Estado e pelo governo, que não mudaram quase nada nesse período. Os setores que menos nós tiveram foram os privatizados mais cedo: telefonia, mineração, indústria aeronáutica, indústria automobilística e rodovias (só as privatizadas). Os nós foram maiores e mais embaraçados nos setores em que o Estado não só permaneceu, como pouco ou nada fez: saúde, educação pública, transportes urbanos, rodovias não-privatizadas, transporte aéreo e infra-estrutura.

Povo consome e pessoas se esquecem de olhar que o milagre da multiplicação dos pães só pôde ocorrer quando entrou nisso tudo um ingrediente essencial: dinheiro estável e barato.Penamos ainda durante o governo passado e no primeiro mandato do atual presidente, até que o milagre apareceu.Os aeroportos e as companhias de aviação não davam mais conta de tanta gente querendo voar. As ruas pararam de dar conta de tantos carros novos (e usados), cujos donos queriam ir para o trabalho ou passear. Os sistemas de transporte de massa não davam mais conta das pessoas que precisavam chegar ao trabalho, porque agora tinham emprego.Em resumo, tudo o que ficou por conta do capitalismo se resolveu - ou porque o capitalismo era dinâmico, ou porque algum político ou burocrata se distraiu e deixou o capitalismo funcionar.

Enquanto isso, socialistas e estatistas continuavam a tentar vender aos pobres a idéia que eles tinham de ter muita consciência crítica e aspirar ao paraíso socialista (que, claramente, não incluía consumir os malditos bens capitalistas), composto de péssimos serviços de saúde, educação e segurança, mal prestados ou não prestados.

O mais curioso é que o atual governo, não se sabe bem por que (eu, pelo menos, não sei), mas talvez por distração ou coincidência, acreditou que uma política monetária austera iria melhorar a situação. E melhorou: agora o presidente chama a atual inflação de inflação boa, porque os pobres estão comendo melhor.Não vou discutir os discursos de Sua Excelência, mas o mais curioso é que ele e seus bem remunerados burocratas, mais os 513 senhores e senhoras que se reúnem na Câmara dos Deputados e os 81 no Senado, insistem em dar ao povo mais do mesmo: o que não deu certo.

Criam mais algumas dezenas de universidades públicas condenadas ao mau ensino e à ineficiência. Tentam passar uma lei para financiar uma saúde mal produzida pelo Estado e provêem uma segurança em que todos confiam mais no guardas privados do que nas polícias estatais. E o presidente do STF, quando vai ao Rio de Janeiro, tem um carro blindado, confortavelmente alugado com o nosso dinheiro. Melhor que ele não sinta os efeitos do milagre.Bem-vindos ao Brasil novo, em que o pobres ficaram ricos e o governo não aprendeu que tudo o que deu certo foi resultado do capitalismo. Mas, ainda assim, não acredita no que vê a ainda acha que o estatismo vai dar certo.Tinha razão Milton Friedman quando disse que, como o governo não produz nada, apenas repassa o dinheiro que tira de quem paga imposto, não importam nem o preço pago nem a qualidade do serviço, porque, afinal de contas, ele gasta o dinheiro dos outros, supostamente em benefício dos outros.Bem-vindos ao país em que os pobres enricaram. Preparem-se: eles gostaram. Daqui para a frente quererão mais.

Alexandre Barros é pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação do Centro Universitário (Unieuro), de Brasília E-mail: alex@eaw.com.br