sexta-feira, outubro 17, 2008

A Inabalável Fé na Burocracia

Wednesday, October 15, 2008

Rodrigo Constantino

“O propósito da política não é solucionar problemas, mas achar problemas para justificar a expansão do poder do governo e um aumento nos impostos.” (Thomas Sowell)

O que o leitor pensaria de alguém que sempre recorre ao mesmo instrumento de fé quando algo dá errado, ainda que ele nunca leve aos objetivos desejáveis? Trata-se de uma postura no mínimo irracional, tamanha a insistência num meio claramente ineficaz. No entanto, é justamente isso que os crentes da burocracia fazem, de forma assustadoramente repetida. Cada nova crise recebe o diagnóstico de que faltou mais governo, mais regulação e mais supervisão burocrática, mesmo que a tendência de crescimento do governo ocorra concomitante ao agravamento das crises. A desconfiança em relação ao livre mercado e a ingênua fé no governo parecem crenças totalmente blindadas contra os fatos e a lógica.

Naturalmente, esta crise atual não é exceção à regra. Esses crentes no “deus” governo logo partiram para o ataque ao livre mercado, alegando que faltou mais regulação contra a ganância do setor privado. Não obstante a paradoxal premissa de que burocratas não são gananciosos também, resta questionar que falta de regulação foi essa, já que os principais setores atingidos pela crise eram ultra-regulados. Por que esses críticos do liberalismo se recusam a comentar o excesso de regulação dos setores em crise? Por que não dizem nada sobre as regras e incentivos criados pelo próprio governo para estimular o crédito imobiliário nas faixas de baixa-renda? Por que fazem vista grossa ao fato de que países conhecidos por uma vasta e detalhada parafernália burocrática, como a França e a Rússia, estão sofrendo também com a crise? É um constrangedor silêncio por parte dos defensores de mais regulação como solução desta crise.

Se as entidades regulatórias existem para evitar crises como a atual, onde estava a Securities and Exchange Commission (SEC), o Federal Reserve System (FED), o Office of Federal Housing Enterprise Oversight (OFHEO) e demais agências governamentais? Se o vigia dorme com freqüência no posto de vigilância, então é preciso mais vigias para vigiar os outros vigias? E se isso não resolve, então é necessário mais e mais vigias, ad infinitum? Será que questionar a eficiência e os incentivos dos vigias existentes é pecado? A missão da OFHEO é promover o setor imobiliário e um sólido sistema de financiamento de casas, garantindo a segurança e solidez da Fannie Mae e Freddie Mac. O OFHEO tem como meta preservar uma estrutura de capital adequada para estas duas government-sponsored enterprises. Onde estavam então esses poderosos burocratas, já que o epicentro da crise se deu justamente nesse setor e nessas empresas semi-estatais? Para uma base de capital de apenas US$ 100 bilhões, estas empresas, contando com garantidas do governo, levantaram US$ 5 trilhões em dívidas. Será que faltou mesmo regulação do governo? Esses incompetentes burocratas serão demitidos?

Isso sem falar das ações diretas do governo americano, tentando artificialmente inflar o setor imobiliário. Em 1977 foi criado o Comunity Reinvestment Act (CRA), com o objetivo de obrigar bancos a emprestar uma parte dos seus ativos às comunidades carentes. Em 1994, o governo estendeu as metas do CRA, e em 2005, após um escândalo contábil envolvendo a Freddie Mac, o governo resolveu punir a empresa demandando mais crédito hipotecário para as classes de baixa-renda.

Esses são apenas alguns exemplos, entre muitos, que mostram como o governo e sua extensa burocracia estão com suas impressões digitais em todas as cenas do crime nessa crise. Como disse Thomas Sowell, os esforços de financiamento das entidades governamentais para obter mais financiamento do governo são o equivalente político de uma máquina de movimento perpétuo. A burocracia luta para estar sempre em constante crescimento. E como o mesmo Sowell notou, nós sempre pagamos muito caro aos burocratas pelo que eles são, mas muito pouco pelo que nós gostaríamos que eles fossem. O principal motivo disso é esta inabalável fé na burocracia e no governo. Muitos esquecem que o governo é uma abstração, e o que existe de fato são homens que concentram poder. Esses homens são imperfeitos também, possuem interesses particulares, são vítimas de ignorância, vaidade, inveja e todas as paixões que atuam sobre os demais seres humanos. A crença de que o governo é capaz de resolver todas as falhas do livre mercado beira à ingenuidade infantil. Thomas Sowell pergunta, de forma retórica: “Como alguém pode ler história e ainda confiar nos políticos?” A resposta é que esta crença é totalmente calcada na fé irracional, e não nos fatos. Seria análogo à criança que, por ignorância, ainda acredita que o Papai Noel traz seus presentes, e não os próprios pais. Questionamentos sinceros e algum olhar crítico dos fatos logo iriam refutar esta crença. Mas muitos desejam acreditar, por motivos puramente emocionais, ainda que a crença seja claramente falsa. É justamente o que ocorre em relação à fé na burocracia. Os fatos bradam contra esta crença tola, mas a ideologia acaba falando mais alto, e os crentes precisam seguir acreditando que o governo milagroso salvará o mundo, mesmo que suas ações sejam parte das causas dos problemas. Os crentes entram em fase de negação diante dos argumentos contrários, preferindo rotas de fuga, como a repetição de chavões vazios ou os rótulos pejorativos aos que pensam de forma diferente. Quando um dado ou argumento é apresentado, o crente na burocracia acaba vítima de dissonância cognitiva. Para evitar a dor da contradição, ele impede tais dados de chegar ao cérebro. Ele foge de uma reflexão honesta. Mais ou menos o que acontece com um crente fanático da Igreja Universal, quando mostram o vídeo do Bispo Macedo, fundador da seita, rindo enquanto conta dinheiro, ou ensinando os pastores a enganar os pobres coitados. Troca o deus, mas o fanatismo é o mesmo. E o engodo também. Os crentes da burocracia onisciente e clarividente depositam toda a fé no governo, transferindo o poder sobre seus destinos aos burocratas poderosos. O estatismo não passa de uma seita moderna, tão perigosa e irracional quanto às religiões retrógradas e fanáticas. Estamos assistindo a mais um episódio lamentável de devoção desses crentes, que pedem mais governo para resolver uma crise criada ou ampliada pelo próprio governo. Seria como usar sanguessugas para curar a leucemia! Será que já não passou da hora de questionar esta fé na onipotência do governo?

Não obstante o que vimos acima, mostrando como havia muita regulação, e como esse excesso burocrático é parte das causas da crise, quase todos pedem mais governo para resolver os problemas. Vários pacotes foram anunciados, rios de dinheiro foram injetados nos mercados, várias instituições foram salvas, medidas regulatórias extras foram adotadas, e nada parece surtir o efeito desejável. A crise segue se agravando, as bolsas batem recorde de baixa, os mercados de crédito continuam estressados. Mas curiosamente a fé na capacidade milagrosa dos governos continua inabalável. O presidente francês, Nicolas Sarkozy, chegou a propor a “refundação do capitalismo”. É preciso lembrar urgentemente que o capitalismo não é um produto do brilhantismo de alguns políticos, mas sim fruto de uma ordem espontânea, de baixo para cima. Precisamos de mais Mises e Hayek, e menos Keynes. Precisamos derrubar esta fé tola na burocracia. Ou isso, ou o capitalismo realmente estará ameaçado.

segunda-feira, outubro 06, 2008

INTRODUÇÃO DO LIVRO POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JR

INTRODUÇÃO DO LIVRO POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JR., DE
CLADINEI MAGNO MAGRE MENDES, EDITADO PELA UEMA, EM 2008.

INTRODUÇÃO

Caio Prado Jr., não sem razão, é considerado pela grande maioria dos
estudiosos o mais importante dos historiadores brasileiros. Suas obras encontram-se
entre as que são reputadas como as mais significativas para a compreensão da história
brasileira. Dentre elas, Formação do Brasil contemporâneo é tida, mesmo por seus mais
ardorosos adversários, como a que causou maior impacto nos estudos históricos
brasileiros, ou seja, seria a obra decisiva sobre a história do Brasil. Além disso, a
interpretação da história do Brasil que o autor formula nesse livro manteve-se
hegemônica durante décadas. Mesmo nas novas maneiras de se conceber a história
brasileira que surgiram depois dele, encontramos determinadas formulações básicas de
sua autoria. Talvez a maior prova do seu sucesso seja o fato de que basta enunciar
aquela que é considerada a mais importante das suas contribuições para os estudos
sobre a época colonial – o “sentido da colonização” – para que todos o identifiquem
como seu autor. Com efeito, não existe maior consagração para um escritor do que ser
reconhecido pela simples menção à expressão que melhor caracteriza sua obra.

Este lugar de destaque alcançado por Caio Prado na historiografia brasileira
tem sido a justificativa de muitos estudiosos que examinam sua obra sob múltiplos
aspectos: político, econômico, social, filosófico, ideológico, etc. O lugar que ele
alcançou parece ser a razão maior para que tenha se tornado um dos autores mais
estudados nas duas últimas décadas.

Quanto a nós, diferentemente dos estudiosos que justificam seu estudo pela
importância que ele adquiriu, estamos mais interessados, justamente, em compreender
os motivos que o levaram a semelhante consagração e a alcançar essa grande
notoriedade no cenário cultural e político brasileiro. Evidentemente, reconhecemos que
se trata de um personagem com múltiplas qualidades, tanto no plano pessoal como no
intelectual, mas as descartamos como elementos explicativos de semelhante fenômeno.

De nosso ponto de vista, a explicação para o respeito e a consideração que, com toda
razão, se lhe tributa encontra-se na junção autor-sociedade. Mais do que isso: como
Caio Prado se destacou justamente como um pensador da política brasileira, é na
relação política entre ele e a sociedade de sua época que julgamos encontrar os motivos
que o levaram a obter tal sucesso e a percorrer tal trajetória intelectual.

Acreditamos, com efeito, que Caio Prado soube, melhor do que qualquer outro
autor, responder às exigências da sua época, fazendo-se uma espécie de intérprete das
tendências dominantes na sociedade. No entanto, sua obra historiográfica não faz dele
apenas um grande historiador. Considerá-lo apenas por este viés redunda em uma
visão parcial de sua trajetória intelectual e política. Mais do que um historiador, ele foi
um homem político, que atuou principalmente por meio de sua função de historiador.
Podemos dizer que foi um autor que fez da história um instrumento de luta política.
Sob este aspecto, como já salientado, seu sucesso não encontra similar no Brasil.

Em razão disso, acreditamos que, para se entender o papel de destaque que teve
na historiografia brasileira, o caminho mais acertado é o estudo de seu pensamento
político, que se encontra estribado em dois grandes pilares: o da sua interpretação da
história do Brasil e o da proposta política que, por meio de seus escritos, fez à
sociedade brasileira.

Centramos nossa análise justamente nos seus livros de história e nos seus textos
de intervenção política porque é neles, mais do que nos demais, que Caio Prado
explicita o seu pensamento político, possibilitando a sua apreensão. Nosso
procedimento se justifica por ter sido nos seus livros de história que ele exerceu sua
ação política de forma mais eficaz. Realmente, foi como historiador que se tornou
conhecido e foi por meio dos seus livros de história que teve uma influência
extraordinária.

Ao longo de nossas leituras, percebemos que, para analisar o seu pensamento
político, era necessário fazer uma leitura de seus textos em ordem cronológica, de
forma a apreender o significado de cada um deles no conjunto da sua produção
intelectual. Pudemos, com isso, verificar quais formulações novas Caio Prado fez e
quais abandonou no processo de constituição do seu pensamento político

Dentre as constatações a que chegamos e que julgamos essenciais para a
compreensão do seu pensamento político, encontra-se a percepção de que houve uma
ruptura fundamental entre Evolução política do Brasil, de 1933, e Formação do Brasil
contemporâneo, publicado em 1942. Trata-se de uma questão importante, nem sempre
percebida, ainda que muitas vezes intuída, pelos seus estudiosos. Evolução é, a rigor, o
único livro marxista de Caio Prado e, em Formação, ele modifica claramente sua
concepção de história.

É verdade que já se chamou a atenção para a existência de uma diferença entre
eles. Todavia, esta é atribuída a uma compreensão mais heterodoxa do marxismo e,
principalmente, à sua aproximação com a Geografia. Evidentemente, tal aproximação é
importante em sua trajetória intelectual, mas não explica a mudança. Caio Prado
aproximou-se da Geografia justamente para buscar elementos que lhe permitissem
romper com o marxismo e abandonar a luta de classes como fator explicativo da
história brasileira. Em suma, a mudança em seu posicionamento político ocorreu por
meio de uma aproximação com a Geografia. Embora constituam faces de uma mesma
moeda, em última instância, foi a mudança no seu posicionamento político que o levou
a se aproximar da Geografia.

A leitura cronológica e comparativa das obras de Caio Prado permite-nos
identificar, em sua participação na Aliança Nacional Libertadora, em 1935, o momento
de ruptura com a sua concepção de história fundada na luta de classes e que se
encontra expressa em Evolução. Neste livro, que ele escreve movido pela sua recente
adesão ao Partido Comunista e ao marxismo e, muito provavelmente, sob o impulso de
um grande otimismo quanto às transformações sociais, a luta de classes constitui o fio
condutor da explicação da história. Entretanto, pouco tempo depois, envolve-se nas
atividades da Aliança Nacional Libertadora, uma frente política de luta pela libertação
nacional que, pelas suas próprias características, busca a união e não o confronto entre
amplos setores da sociedade. Não se trata, portanto, da libertação de uma classe, mas
de toda a nação. A partir de então, o pensamento político de Caio Prado se modifica
radicalmente. Esta nova direção consubstancia-se na obra Formação do Brasil
contemporâneo, na qual a luta de classes como linha mestra desaparece. Uma
comparação entre os artigos que publicou em 1935 acerca do programa da Aliança
Nacional e o livro Formação permite-nos, inclusive, afirmar que este último já se
encontra em gérmen naqueles.

Com base nessa constatação, pudemos interpretar a obra de Caio Prado sob
outra luz e perceber o imenso papel desempenhado pelo conceito de “sentido da
colonização” na sua interpretação da história do Brasil e, por extensão, em suas
formulações políticas. Menos do que uma explicação do processo colonial, este conceito
tinha como objetivo articular os dois pólos ou as duas formas sociais extremas entre as
quais, segundo sua maneira de conceber, transitaria o processo histórico brasileiro.

Com efeito, para ele, o processo histórico brasileiro caracterizar-se-ia justamente pela
passagem de uma economia colonial para uma economia nacional. De seu ponto de
vista, as características da economia colonial haviam sido dadas pelo sentido da
colonização, isto é, o de produzir para atender às necessidades do mercado externo. O
estabelecimento da economia nacional, cuja produção seria organizada para o
atendimento das necessidades da população, constituía a maneira de superar essas
características coloniais da economia brasileira.

Ao afirmar que a história do Brasil se caracterizava justamente por esta
transformação, Caio Prado pretendia, embora nunca o tenha explicitado, ir muito além
de uma interpretação alternativa da história brasileira. Sua intenção era romper com a
interpretação baseada na seqüência feudalismo-capitalismo-socialismo. Em última
análise, defendia a tese de que, diferentemente da Europa, por exemplo, a história do
Brasil possuía outras características. Assim, ele não estava em luta apenas contra o
marxismo esquemático e mecanicista do Partido Comunista, como querem muitos dos
seus estudiosos. Ainda que seu interlocutor fosse o Partido Comunista, a verdade é que
sua interpretação vai além das formulações desse partido, já que afirma que, pelas
condições existentes no Brasil, sua evolução histórica caracterizava-se pela
transformação da economia colonial em economia nacional.

Desse modo, para Caio Prado, a economia nacional era uma forma de
estruturação da sociedade, fato que seus estudiosos não perceberam. Ao contrário,
interpretaram esta proposição como se ele estivesse tratando da constituição da Nação,
da organização da economia brasileira (nacional) e assim por diante. Por economia
nacional, Caio Prado entendia uma forma específica de organização da economia:
aquela fundada na produção voltada para o atendimento das necessidades da
população brasileira.

Por conseguinte, segundo a maneira de Caio Prado compreender a história
brasileira, o Brasil havia conhecido, ou estava conhecendo, basicamente, duas formas
de estruturação ou organização da sua economia ou sociedade. A primeira, a colonial,
que havia sido estabelecida por meio da colonização e que, ainda à época da
publicação do livro Formação, era a dominante. A segunda, a nacional, que estava em
vias de se constituir, mediante a superação da forma colonial.

Por isso, Formação do Brasil contemporâneo é um marco decisivo na trajetória
política e intelectual de Caio Prado. Neste livro de ruptura, encontramos todos os
elementos e motivos que o levaram a alcançar um grande sucesso e a exercer uma
imensa influência sobre os estudos históricos: uma nova concepção de história, que
substituía a luta de classes por uma política de conciliação entre amplos setores sociais;
a concepção de que a libertação almejada era a da nação, ao invés de uma classe; a
concepção de que o foco e o estímulo da transformação era o mercado interno; por fim,
a concepção de que a transformação social decorreria da ação do Estado.

Estas considerações preliminares expressam o fio condutor dos seis textos que
compõem o livro e que são resultantes do estudo que, ao menos desde 1996, estamos
realizando, de modo sistemático, sobre o pensamento político de Caio Prado Jr. Três
deles já foram publicados, mas temos pelo menos dois motivos para incluí-los neste
volume. O primeiro é que, com exceção da resenha, eles tiveram uma circulação
restrita. O segundo, e o mais importante, é que, de certa maneira, eles deixam mais
claros os escritos posteriores.

O primeiro texto para o qual queremos chamar a atenção é “Caio Prado Jr. e a
história do Brasil. A colonização como produção para o mercado externo”. Ainda que
elaborado alguns anos atrás - foi redigido em 1996, como parte de um capítulo da
nossa tese de doutorado, e publicado separadamente em 1997 –, esse artigo é
fundamental para a compreensão das questões tratadas nos demais, uma vez que, nele,
assinalamos a estreita ligação entre a interpretação da história do Brasil contida em
Formação e a proposta política do autor. Basicamente, essa proposta consiste na
afirmação de que a superação das características coloniais da economia brasileira se
faria por meio do estabelecimento de uma economia nacional. A nosso ver, essa ligação
é essencial para a compreensão do pensamento político de Caio Prado.

Outro texto que consideramos fundamental para se compreender as questões
tratadas neste livro diz respeito ao marxismo e foi escrito por ocasião das
comemorações dos cento e cinqüenta anos de publicação de O Manifesto do Partido
Comunista. Embora não seja específico sobre Caio Prado, ele contém reflexões que
orientaram nossos estudos sobre seu pensamento político, especialmente o papel,
decisivo do nosso ponto de vista, desempenhado por partidos e intelectuais que, no
seio da esquerda e, freqüentemente, no interior do próprio marxismo, combateram
tanto a proposta de socialismo como a própria doutrina marxista. Destacamos também
nossa concepção de que, atualmente, menos do que fazer uma crítica, é fundamental
realizar uma avaliação histórica do papel desempenhado pelos partidos e intelectuais
de esquerda em todo esse processo.

É exatamente isso que procuramos fazer com relação a Caio Prado. Não
estamos interessados em fazer uma crítica de seus textos ou mesmo da sua atuação
política. Sua produção e sua atuação fazem parte de um processo que pertence ao
passado e, por isso, já não cabe fazer uma crítica ou travar uma polêmica com o
historiador ou o homem político. Inclusive, cabe aqui uma passagem de Spinoza que
orienta nosso estudo: “Não rir, não lamentar, não odiar. Compreender.” Entretanto,
apesar de serem parte de um processo que pertence a uma outra época histórica, suas
formulações têm enorme repercussão na atualidade. Portanto, o interesse em
compreender historicamente Caio Prado implica entender também a razão pela qual,
ainda hoje, suas formulações continuam a usufruir de um enorme prestígio entre os
historiadores. Por isso, no conjunto das questões abordadas, colocamos para o debate
nossas reflexões não apenas sobre o papel histórico desempenhado por ele, mas
também sobre a abrangência de sua trajetória política e intelectual.

Quanto aos textos que estamos publicando pela primeira vez, queremos
destacar que, em “Considerações sobre o estudo do pensamento político de Caio Prado
Jr.”, procuramos fazer, a um só tempo, uma crítica da historiografia a ele relativa e uma
reflexão sobre as questões metodológicas que envolvem o estudo do seu pensamento
político. Com efeito, nas considerações sobre qualquer historiografia e, no caso
específico, sobre os estudos acerca de Caio Prado, é preciso investigar seus aspectos
metodológicos, de forma a compreender o ponto de partida dos estudiosos. Ao mesmo
tempo, ao examinar essa historiografia, com especial atenção para o seu ponto de
partida metodológico, cabe um debate acerca do caminho mais adequado para o seu
entendimento. Por conseguinte, as considerações feitas são resultantes tanto da análise
que fizemos de sua obra com o objetivo de apreender o seu pensamento político como
do confronto com a forma como os demais autores o abordaram.

No texto “Reflexões sobre a Independência do Brasil na obra de Caio Prado Jr.”
abordamos as várias questões que têm se colocado para nós no estudo do seu
pensamento político. A primeira delas diz respeito à mudança verificada na concepção de história deCaio Prado quando comparamos os livros Evolução política do Brasil e Formação do Brasil
contemporâneo. Ou seja, diz respeito à inflexão radical no posicionamento político de
Caio Prado, expressa no seu modo de conceber a história e, consequentemente, na sua
maneira de interpretar a história do Brasil.

Poder-se-ia abordar esta questão de várias maneiras. Optamos por examinar
como a Independência do Brasil aparece nas duas obras, mas sem nos limitamos a uma
simples comparação. De uma forma mais abrangente, centramos a análise dessa
mudança no fato de que a Independência desempenha um papel estratégico na
interpretação da história do Brasil em Evolução e em Formação. Nosso objetivo é
examinar qual é a posição estratégica que esse acontecimento ocupa em cada uma das
duas obras. Esse exame confirma a existência de duas maneiras distintas de se conceber
a história, com todas as suas implicações. A maneira diferenciada com que o autor
aborda a Independência decorre da própria avaliação que ele fez desse fato nas duas
obras, ou seja, de sua atitude para com a Independência nos livros Evolução e Formação.
Na origem dessa diferença, encontramos precisamente a mudança de posicionamento
político de Caio Prado.

A segunda questão abordada em “Reflexões sobre a Independência do Brasil na
obra de Caio Prado Jr.”, também decisiva do nosso ponto de vista, relaciona-se ao fato
de que, com Formação, ele estabelece um padrão no modo de conceber a história e que
se expressa, por exemplo, na maneira própria de ele compreender a Independência.
Essa maneira, por seu turno, acabou por determinar o enfoque dado a esse tema por
grande parte da historiografia brasileira. Mais interessante ainda é que esta maneira de
conceber a Independência foi compartilhada por historiadores das mais diferentes
tendências, o que, para nós, põe em evidência, mais uma vez, a grande preponderância
exercida – e que ainda exerce - por Caio Prado nos estudos históricos brasileiros.

Ressalte-se que nem sempre se trata de uma influência direta e imediata, mas de uma
adesão à sua maneira de conceber a história do Brasil.
Quanto à resenha e à palestra, embora menores no que diz respeito à sua
dimensão, são textos importantes para figurarem no livro. Neles procuramos
estabelecer o confronto entre nossa maneira de abordar o pensamento político de Caio
Prado e a de outros estudiosos. No texto “Caio Prado e a Revolução Russa”, ainda que
rapidamente, abordamos também a relação entre autor e sociedade, tal como a
entendemos. Evidentemente, o estudo da produção intelectual de qualquer autor
coloca sempre essa questão, mas a análise levou-nos à conclusão de que, no caso de
Caio Prado, a relação se coloca de uma maneira bastante intensa e, porque não dizer,
sintomática. A nosso ver, ao considerarmos a questão por este ângulo estamos dando
um peso também àqueles aos quais o autor se dirigia. Sob este aspecto, o estudo de
Caio Prado significa, igualmente, desvendar os homens de sua época. Afinal, como
justificar o êxito desse autor senão pelo fato de que parcela significativa dos seus
contemporâneos tenha se identificado com suas formulações?

Ao final, julgamos necessário precisar melhor algumas das constatações que se
tornaram o fio condutor da análise do pensamento político de Caio Prado.
A primeira delas diz respeito à diferença fundamental entre Evolução política,
primeiro livro de Caio Prado, e os escritos subseqüentes no que diz respeito à
concepção da história, à interpretação da história do Brasil e ao seu posicionamento
político. Embora estejamos tratando aqui de uma única mudança, entendemos que ela
se expressa nesses três aspectos, dos quais o último é o determinante. Trata-se de uma
questão fundamental, por isso nunca é demais reiterá-la. Por meio da comparação
entre Evolução e Formação poderemos compreender melhor em que consiste o
pensamento político de Caio Prado e o papel histórico por ele desempenhado.

A segunda constatação é que foi nos artigos de 1935 acerca do programa da
Aliança Nacional Libertadora, mas, principalmente, no livro Formação, que Caio Prado
elaborou a maneira própria de interpretar a história do Brasil que o caracterizou e o
levou ao reconhecimento público. Note-se, além disso, que esse autor não modificou,
ao longo da sua trajetória política e intelectual, na sua essência, esse modo de
interpretar a história do Brasil. A rigor, a única modificação substancial que se verifica
em suas formulações ao longo desse período, mas que não alterou, de maneira alguma,
as linhas mestras de sua interpretação, diz respeito à questão agrária. Com efeito, de
1935, pelo menos, quando trata explicitamente dessa questão, até 1960, Caio Prado foi
partidário da reforma agrária, isto é, do parcelamento e posterior distribuição da terra.
É apenas nos textos publicados entre 1960 e 1962, na Revista Brasiliense, que ele critica a
reforma agrária. Em 1966, quando publica A Revolução Brasileira, ele aprofunda essa
crítica. Evidentemente, esta mudança no enfoque da reforma agrária deve ser
considerada em um estudo sobre seu pensamento político, já que traz consigo
conseqüências importantes. Entretanto, deixamo-la para uma outra oportunidade, pois,
como chamamos a atenção, não implica uma mudança nas linhas gerais da sua
interpretação da história do Brasil, nem da sua proposta política.

Queremos frisar, ainda, que os textos ora publicados foram elaborados ao longo
de nossa pesquisa sobre o pensamento político de Caio Prado. Além de trazerem para
o debate algumas de nossas conclusões, eles testemunham nosso esforço para
compreender o significado histórico desse autor, ou seja, o papel que desempenhou ele
na cultura e na política brasileiras

sexta-feira, setembro 05, 2008

FIQUEM RICOS!

Por Carlos Alberto Sardenberg
07/08/2008

É PRECISO QUE EMPRESAS E PESSOAS ENRIQUEÇAM

-- Fiquem Ricos!

Rosa: “Eu quero viajar mais, eu quero passar um tempo fora estudando. Dá pra chegar no fim do mês com o orçamento tranqüilo, mas a gente sempre quer alguma coisa melhor”. A frase, de uma moça, promotora de eventos, encerrou reportagem do Jornal da Globo, edição de terça-feira, sobre a emergência da classe média, apontada em pesquisa da FGV.

A escolha da personagem, um achado, levanta as questões corretas. Quem é Rosa? Uma pessoa egoísta, preocupada apenas com sua situação individual? Ou um agente de transformações sociais e econômicas para o país? Não há exclusão.

Rosa desempenha os dois papéis. Na verdade, quanto mais conseguir melhorar a sua vida, maior impacto positivo ela levará para a sociedade. É possível medir o dinamismo de um país _ e talvez seja mesmo a melhor medida _ avaliando quanto as pessoas conseguem evoluir ao longo de sua vida. Se uma pessoa começa sua atividade profissional vendendo salgadinhos de porta em porta e termina dona de uma rede de restaurantes, isso representa um êxito individual, é óbvio, mas também mostra que o país abriu a oportunidade para essa criação de valor _ para ela e para a sociedade. Do mesmo, modo se a pessoa se torna um profissional competente, produtivo, ganhou ela, ganhou a companhia onde trabalha, ganhou a sociedade. Dito assim, parece simples. Mas quando se observa o cenário nacional, parece que muita gente pensa exatamente o contrário, que o governo é o principal agente do desenvolvimento. Eis dois exemplos, dois temas em discussão dentro e fora do governo, que tratam de coisas muito diferentes, mas que resultam da mesma concepção ideológica: 1) a proposta de aumento do imposto de renda da pessoa física e 2) a proposta de criação de uma estatal pura para explorar o petróleo da camada do pré-sal. Nos dois casos, está entendido que o país melhora quando se coloca mais dinheiro nas mãos do governo. Mas se fosse assim, o Brasil deveria ser o melhor entre os emergentes, pois é aqui que está a maior carga tributária nesse grupo de nações. Também se fosse assim, os setores estatizados na economia brasileira deveriam ir melhor que os privados. É não é assim. Na verdade, a ascensão da classe média e seu modo de vida provam o contrário, que o Estado fracassa até naquelas que deveriam ser suas funções essenciais. A classe média, assim que pode, paga planos de saúde privados, coloca seus filhos em escolas particulares e compra um fundo de pensão pessoal. Por que faz isso, mesmo sabendo que, querendo ou não, paga os impostos que financiam aqueles mesmos serviços prestados pelo Estado? Porque é elitista ou porque se julga melhor atendida no privado? Olhando pelo outro lado: as empresas privadas de saúde, que hoje atendem mais de 45 milhões de pessoas, as escolas e as universidades particulares, que atendem mais alunos que as publicas, e as instituições financeiras privadas são parasitas ou companhias que geram serviço, valor e empregos? Sendo as respostas óbvias, pelo simples bom senso, deveria resultar daí uma política de redução de impostos para a classe média e, ao mesmo tempo, de melhora no ambiente de negócios para que pudessem prosperar as famílias e as empresas. No caso do petróleo do pré-sal, argumenta-se que será necessária uma estatal pura para que essa riqueza toda pertença ao povo brasileiro. Mas quem disse que pertencendo ao governo e sendo administrada pelo governo, essa coisa sempre pertence ao povo? O que o povo ganha quando o governo ocupa as estatais com seus correligionários e coloca obras em estados e cidades administrados pelos aliados políticos? Por outro lado, quem disse que as companhias privadas geram riqueza apenas para seus acionistas? Exatamente como acontece com as pessoas quando melhoram de vida, quando as empresas crescem, produzem mais, geram mais valor e empregos, é a economia local que se torna mais rica. Resumindo, um país é tão rico quanto seus cidadãos e suas empresas. Mais ainda, o que gera crescimento é o investimento e a criação de valor pelas pessoas e empresas privadas. O governo, quando transfere renda, não cria nada, apenas tira de uns e entrega a outros. O governo ajuda a criar valor quando, por exemplo, oferece boas escolas e segurança para que as pessoas vivam, trabalhem e se apropriem do fruto de seu desempenho. E quando oferece segurança jurídica e bom ambiente de negócios para as empresas, o que não faz corretamente.

Como diria Deng Xio Ping, é preciso que todos melhorem de vida e que muitos enriqueçam. Publicado em O Globo, 07 de agosto de 2008.

terça-feira, julho 08, 2008

DE OPRIMIDOS E OPRESSORES

Reinaldo Azevedo

Fiz ontem, vejam lá, algumas considerações sobre a situação africana. E recebi um comentário interessante. Na sua crueza, não é muito diferente do que pensa de seus adversários uma Marilena Chaui, por exemplo, embora ela busque colocar um pouco mais de recheio filosófico em seu rocambole filototalitário. Lá vai a questão: “Reinaldo, por que [ele acentuou esse “que”, e eu já dei essa aula...] você fica sempre do lado dos opressores e não dos oprimidos? Isso é ser de direita, ou você quer ser do contra? Explica pra nós vai.”

Se eu tivesse de escolher uma dessas duas opções ou ir para a forca, eu diria que é porque “quero ser do contra” — de fato, tem mais a ver com meu temperamento. Mas depois me ocorre que só se é “do contra”, nesta acepção que designa o sujeito que sempre reclama, quando estão plasmados consensos. Como esses consensos, especialmente na esfera dos valores morais e culturais, são de esquerda, então esse meu gosto pelo “contra” acaba assumindo, na geografia dada, uma característica que dizem ser “de direita”. Não sei se confundo o pobre leitor que fez a pergunta, mas o fato é que comecei o parágrafo para lhe dizer que sou do contra e concluo afirmando que, dados os consensos (e só nessa circunstância), sou tambem de direita.

Alguns tontinhos, especialmente alguns desafetos da mesma profissão, acreditam que, sei lá, aderi a uma moda que acho divertida. Moda? Somos quantos mesmo? Quatro? Cinco? Seis no máximo. A nossa multidão não lota uma Kombi. Mas volto à indagação do meu amigo. Não é verdade que eu esteja sempre do lado dos opressores — em causas recentes ou passadas. Nunca defendi os fascistas, mas os meus “oprimidos” não eram os comunistas. Se leio sobre Roma Antiga, por exemplo, não é que eu hostilize os povos dominados — é que acredito firmemente que a expansão da cultura latina foi um bem para a humanidade.

Se eu pudesse ter escolhido, caro leitor, talvez tivesse impedido a expansão mercantil e as grandes navegações dos séculos 15 e 16. Os europeus teriam ficado quietinhos lá no canto deles; os nossos nativos passariam a eternidade batendo o pé no chão para acordar os mortos; os africanos continuariam lá tocando a sua vidinha buliçosa, cheia de cultos animistas — sobre a expansão do Islã, ainda não decidi se teria interferido ou não: conhecendo-me um pouco, acho que sim. E os chineses? Bem, chineses, indianos, japoneses protegeriam de olhares curiosos sua sabedoria milenar, cheia de significados para... chineses, indianos e japoneses. Mas o mundo não se fez assim, entende? Não se fez.

O que é estar sempre “do lado do opressor”? É não olhar com os olhos da moral contemporânea a expansão mercantil, por exemplo? Se os povos pré-colombianos tivessem dominado uma técnica que lhes permitisse sair ao mar, colonizando outras terras, o mundo seria mais justo? Tenho sólidas razões para duvidar disso. Como rejeito essa conversa mole de “Mãe África”. Os negros escravos dos brancos portugueses e brasileiros não sofreram mais aqui do que teriam sofrido nas mãos de seus senhores. Nego, com isso, os horrores da escravidão? De jeito nenhum! Eu apenas demonstro que as noções contemporâneas que temos de igualdade e de justiça são uma construção deste tempo. E cumpre que façamos o melhor do que fizeram de nós, em vez de tentar fazer a história voltar para trás.

Mas sua pergunta não é de todo descabida. Eu, com efeito, prefiro as reformas às revoluções; prefiro os processos de construção da igualdade, preservando o que tem de ser preservado, às rupturas, que, não raro, degeneram em violência, morte e novos horrores, mas aí com a chancela moral da “libertação”. Poucos regimes foram tão essencialmente autoritários, violentos e homicidas quanto a vigência do Terror jacobino, durante a Revolução Francesa. E poucos discursos foram tão humanistas quanto o daqueles revolucionários. Fascismo e socialismo, no século passado, falavam em nome da libertação.

Talvez eu seja, contra a minha própria inclinação, um otimista e acredite, veja que coisa, no progresso, dadas certas precondições, como democracia representativa, por exemplo. E tenho algumas convicções. Não aposto em iniciativas que contrariem a economia de mercado porque acho que ela está mais bem-adaptada a alguma coisa que chamo de “espírito humano”, à falta de uma definição mais precisa.

O cérebro desse macaco sem pêlo, que somos nós, impele-nos, por alguma razão, à competição e à busca do novo. Falharam todas as tentativas de aprisioná-lo. Por que os MSTs da vida e sua pantomima revolucionária me entendiam? Porque sei que eles vão continuar a consumir alguns bilhões de recursos públicos para... nada! Ou, sim, para alguma coisa: para continuar a alimentar a própria causa. Acredito na “tal luta dos oprimidos”? Acredito, por exemplo, em quem se organiza para a formalização da mão-de-obra empregada pela agroindústria. O MST quer outra coisa: uma espécie de éden comunista, já testado e rejeitado pela história.

Veja que coisa, leitor: considero que João Pedro Stédile é, ele sim, um opressor daquela gente que ele mobiliza. Até porque o seu modelo não prevê que os “sem-terra” recebam o seu quinhão para, sei lá, cuidar da vida e progredir como seres autônomos: eles passam a pertencer a uma categoria que há de persegui-los até a morte: serão para sempre assentados sem-terra, devendo vassalagem ao seu suserano: o MST. Quem é o opressor dessa história?E arremato lembrando que o “discurso do oprimido”, como uma visão de mundo, é um contradição dada pelos próprios termos. O oprimido de verdade está esmagado pelo silêncio. Se o sujeito é dotado de uma fala organizada, então já é um ator político. E se, como tal, reivindica, ainda assim, a condição de um oprimido, ele já começou a construir o discurso do opressor — e do pior deles: aquele que busca o direito histórico ao uso legítimo da violência. Não se esqueçam de que na base do fascismo, por exemplo, estava um recalque. Diria mesmo que ele foi a explosão violenta do recalcado.

Ontem, os sem-terra se organizaram em Parauapebas, no Pará, para tentar libertar na marra um dos seus que tinham sido preso. Era seu particular senso de justiça em ação. Foram reprimidos pela Polícia, os pobrezinhos. A poucos ocorre que eles estavam lá para oprimir o estado democrático e de direito, que não se construiu da noite para o dia.
http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/ 08.07.08

quarta-feira, julho 02, 2008

ERRAR É HUMANAS

ERRAR É HUMANAS

Gustavo Ioschpe

Eu só descobri que não entendia nada de matemática quando conversava com um colega russo, no mestrado, sobre o assunto. Aquilo que pra mim exigia um grande esforço mental, de montagem de equações e de tentativa de operações algébricas, para ele era visivelmente algo automático, instintivo, como a construção de uma frase em sua língua natal. Não sei exatamente como os russos ou os asiáticos ensinam a matemática, mas hoje entendo por que o nosso ensino é tão fraco. No Brasil, não se ensina matemática.

Se ensina a resolução de problemas matemáticos.
Nossas escolas explicam a mecânica da coisa. Pra somar e subtrair, você "passa um pra lá", "tira um de lá" e pronto, está aí o resultado. Multiplicação é simples: basta decorar a tabuada e, para números maiores, adicionar a mecânica da adição. A divisão é também uma questão quase geográfica: coloque o divisor aqui, o dividendo ali, na "cadeirinha", puxe a tabuada da memória e vá seguindo até que se encontre o resultado e o "resto". Trigonometria é um exercício de decoreba de fórmulas e ângulos. Geometria é como se fosse um quebra-cabeça com algumas peças faltando: basta saber que a soma dos ângulos de um triângulo é 180 graus, ou o teorema de Pitágoras ou a fórmula do raio de uma circunferência para se resolver todo e qualquer problema.

Os problemas costumam ser de uma inutilidade total, mais na linha de "um círculo inscrito em um quadrado de lados..." do que "para colocar uma pizza em uma caixa quadrada...".
O problema é fundamentalmente filosófico, epistemológico: a maioria das pessoas entende a matemática como uma ferramenta que precisamos dominar para resolver alguns problemas do cotidiano. Mas a matemática não é isso.
A matemática é uma linguagem que descreve o mundo. Todo o mundo físico é traduzível em números, com acuidade muito maior do que a descrição feita por palavras. Além disso, a matemática é a árvore da qual brotam os frutos das ciências exatas: física, química, biologia, estatística, engenharia, medicina - nada disso seria possível sem a matemática.
Eu só fui descobrir isso quando já estava no mestrado.

De tudo que estudei na vida - e acabei estudando, na faculdade, história, ciência política, psicologia, sociologia, economia, geologia, marketing, administração, contabilidade, crítica literária, filosofia e outras que nem me lembro mais, não apenas por desejo e curiosidade próprias, mas porque o sistema americano impõe essa multidisciplinaridade - hoje vejo que a matéria mais importante é estatística. Achava a matéria um porre quando a cursei, no primeiro ano.

O que é natural, aliás: aos 18 anos, o cérebro humano está demasiadamente encharcado de hormônios para que os pensamentos possam nadar. Agora vejo que a estatística é a base de tudo, é o que possibilita a distinção entre a opinião e o fato, a aparência e a realidade (as "formas" platônicas).

Sem estatística não pode haver ciência exata nem ciência social. Cada vez mais entendemos que comportamentos que antes podiam ser debatidos apenas por filósofos, romancistas e poetas agora são explicáveis através da aplicação rigorosa de métodos estatísticos. É claro que a estatística não responde as perguntas fundamentais da existência - como viver a boa vida? - mas tampouco o faz a filosofia, com a agravante que uma filosofia desprovida de estatística é apenas um teatro para o duelo de visões antagônicas e insubstanciadas, com resultados potencialmente nocivos.

"Errar é humanas", disse um professor de história da arte da Unicamp que me acompanhava em um debate anos atrás, numa daquelas manifestações de auto-ironia que não têm sinceridade nenhuma. Não, errar não é humanas. Há muito acerto - e muito erro - naquilo que se produz nas humanas. O difícil, sem o auxílio da estatística, é separar o joio do trigo. Não é que errar seja humanas, é que a convicção do acerto só pode vir com a ajuda das exatas. Sem uma comprovação empírica, qualquer pensamento é apenas uma tese.

Os filósofos e historiadores que me lêem deve estar nauseados, mas mal sabem eles que esse axioma os cerca em todo lugar. Os remédios que eles tomam quando estão doentes só são aprovados ao passar por um processo estatístico que os separe de um placebo ineficaz. Todos os processos produtivos/industriais que geram os bens que consumimos são calibrados e controlados por ferramentas estatísticas de controle de qualidade. As peças dos carros que dirigimos são submetidas a testes estatísticos que asseguram sua confiabilidade. O computador no qual você lê esse artigo só existe por uma ferramenta estatística que determina a sua eficiência. A civilização moderna não é possível sem a estatística. E, ainda assim, está na moda praguejar contra números. Até professores renomados, como esse da Unicamp, podem falar bobagens como "os números são criações humanas e, como tal, têm uma intencionalidade" e se sentir bem, como se não estivessem cometendo um crime intelectual.
Essas idéias me vêm à mente quando vejo que filosofia e sociologia foram incluídas como matérias obrigatórias no currículo do ensino médio. Veja só: nosso sistema educacional é um fracasso tão retumbante que, na última medição em que o desempenho dos alunos foi dividido em níveis, o SAEB de 2003 apontou que 55% dos alunos da quarta série estavam em situação crítica ou muito crítica em leitura, o que quer dizer que eram praticamente analfabetos. A maioria dos alunos que faz a prova de Matemática no SAEB acha que "3/4" é 3,4, e não 0,75. Não entendem nem a notação de uma fração. Achar que esses professores, com essa qualidade, conseguirão ensinar filosofia e sociologia a esses alunos é o que os ingleses chamam de wishful thinking, um otimismo despropositado.

No primeiro semestre da faculdade, li um texto muito bom de Paulo Freire, em que ele dizia que era preciso read the word to read the world (ler a palavra para ler o mundo). Não sei se ele o escreveu em inglês ou se a tradução foi especialmente fortuita, mas o enunciado é verdadeiro: é impossível entender a complexidade do mundo se você não sabe ler. É impossível estudar filosofia se você não sabe ler. Essas aulas serão apenas uma maneira mais escancarada de se praticar o doutrinamento do marxismo rastaquera que impera em nossas escolas. Eu particularmente ficaria muito contente se os nossos alunos saíssem do ensino médio ignorantes de filosofia e sociologia, mas conseguindo ler um texto e entendendo-o, para que tomassem suas próprias conclusões filosóficas ao lerem seus próprios livros. E se fosse para incluir uma nova disciplina em nosso currículo, adoraria que fosse estatística.

A maioria dos alunos a detestaria e aprenderia muito pouco, mas talvez uma minoria conseguisse extrair daí o ferramental que lhe permitiria julgar, com a sua própria racionalidade, a veracidade das teorias com que são bombardeados na escola, nas ruas, na mídia. O que de melhor pode haver no processo educacional do que a capacidade de não apenas instigar a capacidade de questionamento dos alunos, mas também dar-lhes o instrumental que lhes permitirá solucionar esses próprios questionamentos sozinhos?
www.veja.com.br 30.06.08.

quinta-feira, junho 19, 2008

RIOS QUE NUNCA SE ENCONTRAM

18 de Junho de 2008 Atualizado às 22:30h

Demétrio Magnoli
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A Câmara dos Deputados prepara-se para votar o PL 73/99, projeto de lei que institui cotas para alunos de escolas públicas e subcotas raciais nas universidades federais e nas escolas técnicas federais. Ele se apresenta como iniciativa de inclusão social, mas nada tem que ver com isso. Se quisessem promover inclusão, dobrariam as vagas nas universidades públicas, algo relativamente barato, e se limitariam a introduzir cotas para alunos de escolas públicas, como compensação provisória da calamidade que é o ensino médio oficial. O PL de cotas raciais existe para dinamitar o mito de origem do qual emana a identidade brasileira.

A nação é uma "comunidade imaginada", na expressão de Benedict Anderson. O Estado-nação surgiu na escola, com a expansão e universalização da educação pública, e se refaz o tempo todo por meio de uma narrativa de unidade difundida nas salas de aula. Língua e Literatura configuram a nação na esfera da cultura. A História inscreve a nação no tempo; a Geografia a imprime no espaço. O nosso mito de origem nasceu no Império, com o naturalista Carl Von Martius, que descreveu o Brasil como a junção de três rios: as culturas indígena, européia e africana. Ele se consolidou na República, com Gilberto Freyre, que disse que essas águas se misturaram no grande rio da nação mestiça. O PL de cotas raciais tem a função exclusiva de substituir essa narrativa por uma outra.

Nas escolas públicas, estudantes de todas as cores, oriundos de famílias da classe trabalhadora, aprendem que, como cidadãos brasileiros, têm direitos iguais. A lei das cotas veiculará a mensagem de que isso não é mais verdade. Ela separará as turmas de alunos em dois grupos, dividindo-os pela fronteira da raça. De um lado, ficarão os alunos rotulados como "brancos"; do outro, os alunos carimbados como "negros". Dos primeiros será cobrada uma "dívida histórica" contraída pelos proprietários de escravos. Aos segundos, que desempenharão o papel fraudulento de descendentes de escravos, será oferecida a renda proveniente daquela cobrança. Colegas de classe e de folguedos, que vivem nas mesmas ruas, às vezes nas mesmas casas, e cursaram juntos a mesma escola, serão julgados não pelo desempenho no mesmo exame, mas pela cor da sua pele. O PL de cotas raciais narra um mito perverso de três rios que correm paralelos, sem nunca se encontrarem.

A troca do mito do encontro pelo do desencontro é uma operação conduzida por um Estado ideológico, engajado na falsificação da identidade nacional. O Ipea divulgou a "informação" de que a "população negra" superará este ano a "população branca". Os dirigentes do órgão público agem, à revelia da lei, como militantes de sua causa. A verdade é que continua a aumentar a parcela dos que se classificam como "pardos", enquanto se reduzem as parcelas que se classificam como "brancos" e como "pretos". Nas pesquisas, os brasileiros dizem que são mestiços e rejeitam a polaridade das raças. Na mídia, os órgãos oficiais seqüestram a palavra dos cidadãos e propagam uma versão mentirosa que significa exatamente o oposto. Eles apagam os mestiços das estatísticas, erguendo diques nos rios de Martius para impedir a confluência de suas águas.

A fotografia de uma turma das escolas públicas brasileiras revela a presença dominante de um gradiente de tons de pele intermediários entre o "branco" e o "preto". Na sua imensa maioria, os meninos e as meninas das nossas escolas públicas corporificam as complexas mestiçagens que fabricaram uma nação nova, num mundo apartado da "tradição do sangue" vigente tanto na Europa quanto na África. Onde exatamente será traçada a fronteira racial exigida pelo PL de cotas? Pelo alto, universidades engajadas na operação de divisão racial do Brasil fotografam e entrevistam os candidatos, atribuindo-lhes rótulos raciais irrecorríveis. Por baixo, de acordo com norma do MEC em vigor há três anos, as fichas de matrícula no ensino básico associam cada aluno a uma "raça". O Estado brasileiro, cercado por uma rede de ONGs racialistas, não pretende deixar nenhum jovem sem um carimbo de "raça".

A engenharia social racialista que formulou o PL de cotas é um elo do programa internacional do multiculturalismo. A sua fonte original se encontra na Fundação Ford, que financia as redes de ONGs empenhadas na fabricação de etnias e raças. O seu motor ideológico se encontra na academia, entre intelectuais dedicados a escrever narrativas identitárias baseadas na "tradição do sangue". As teses desses intelectuais não são motivadas pelo propósito de investigar o passado, mas pelo imperativo de legitimar um programa de ação política. A manipulação, a distorção e a fraude são suas ferramentas cotidianas de trabalho. A certeza de uma carreira de sucesso e a expectativa da conquista de posições de prestígio e influência são as compensações oferecidas por seus financiadores. Hoje, amparada por um Estado que brinca com a coesão nacional, essa fábrica de ideologias escreve uma história racial do Brasil.

Mitos não são verdades nem mentiras. Eles contam o que imaginamos que somos e apontam na direção daquilo que queremos ser. O nosso mito de origem não impede que se reconheçam as violências históricas perpetradas contra indígenas e escravos. Mas ele nos iguala como cidadãos, erguendo uma plataforma que nos impele a exigir direitos sociais e econômicos para todos.

Quando se iniciar a sessão de votação do PL de cotas, as galerias da Câmara estarão ocupadas por ativistas das ONGs racialistas, muitos deles funcionários públicos em cargos de confiança. A minoria organizada encarnará a representação imaginária de uma "raça" e se apresentará como procuradora dos antigos escravos. Se a farsa intimidatória funcionar, uma narrativa de ressentimento e rancor começará a invadir as salas de aula, envenenando o futuro. Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br

O DIA EM QUE OS POBRES ENRIQUECERAM

18 de Junho de 2008 Atualizado às 22:58h
www.oestadao.com.br Sábado, 14 de Junho de 2008 Versão Impressa

Alexandre Barros

Política é fascinante, não pelo que se sabe que vai acontecer, mas, sobretudo, pelo que não se consegue antecipar.Durante anos o discurso dos políticos era o de que eles iam melhorar a vida dos pobres. Inúmeras políticas foram feitas em nome disso. Algumas úteis. A maioria, desperdício, porque o dinheiro não chegou aos pobres - comida que foi, no meio do caminho, por políticos desonestos e burocratas honestos, encarregados de distribuir o dinheiro. Em troca de um bom salário, é claro.

O caso é que, pelo menos desde a década de 1950, ocorreram coisas aparentemente desordenadas: uma indústria nacional montada a elevadíssimo custo, uma ampliação da educação (mesmo que sem muito controle de qualidade, o que ficou claro era que melhor era que as pessoas tivessem alguma educação do que nenhuma); a decadência do ensino público e o crescimento da oferta do ensino privado, controlado pelo mercado; a montagem de uma infra-estrutura feita, basicamente, pelos governos militares, por razões militares; a montagem de uma rede de telecomunicações nacional, a instalação de uma indústria aeronáutica e a abertura comercial iniciada em 1991.

A lista é maior, mas vou ficar por aqui. O curioso dessa lista e do que não não coloquei nela, por falta de espaço, é que ela não foi obra dos políticos, como um todo. Foi obra de alguns personagens, individuais ou coletivos, que tomaram decisões para satisfazer as suas necessidades específicas.Juscelino queria reeleger-se. Os militares queriam um Brasil poderoso. Collor queria mais liberdade de consumo. E o PSDB queria reformar o País. Cada um fez um pouco do que queria, por razões privadas, e poucos efeitos dramáticos eram vistos como resultado de cada uma dessas políticas. Só que, independentemente do desejo de cada um dos atores que protagonizaram ou implementaram essas decisões, seus efeitos se foram acumulando, mas, ainda assim, eram pouco visíveis.

O fusível que detonou os efeitos cumulativos de todas essas políticas e tornou a mudança visível foi a continuada política antiinflacionária e o aparente milagre da queda dos juros. De repente, os efeitos sobre os quais muito pouca gente refletia se acumularam e desaguaram como se se rompesse uma barragem: com dinheiro que pouco se desvaloriza e crédito farto, os pobres entraram no mercado de consumo para valer.

Aí apareceram vários nós, especialmente nas áreas controladas pelo Estado e pelo governo, que não mudaram quase nada nesse período. Os setores que menos nós tiveram foram os privatizados mais cedo: telefonia, mineração, indústria aeronáutica, indústria automobilística e rodovias (só as privatizadas). Os nós foram maiores e mais embaraçados nos setores em que o Estado não só permaneceu, como pouco ou nada fez: saúde, educação pública, transportes urbanos, rodovias não-privatizadas, transporte aéreo e infra-estrutura.

Povo consome e pessoas se esquecem de olhar que o milagre da multiplicação dos pães só pôde ocorrer quando entrou nisso tudo um ingrediente essencial: dinheiro estável e barato.Penamos ainda durante o governo passado e no primeiro mandato do atual presidente, até que o milagre apareceu.Os aeroportos e as companhias de aviação não davam mais conta de tanta gente querendo voar. As ruas pararam de dar conta de tantos carros novos (e usados), cujos donos queriam ir para o trabalho ou passear. Os sistemas de transporte de massa não davam mais conta das pessoas que precisavam chegar ao trabalho, porque agora tinham emprego.Em resumo, tudo o que ficou por conta do capitalismo se resolveu - ou porque o capitalismo era dinâmico, ou porque algum político ou burocrata se distraiu e deixou o capitalismo funcionar.

Enquanto isso, socialistas e estatistas continuavam a tentar vender aos pobres a idéia que eles tinham de ter muita consciência crítica e aspirar ao paraíso socialista (que, claramente, não incluía consumir os malditos bens capitalistas), composto de péssimos serviços de saúde, educação e segurança, mal prestados ou não prestados.

O mais curioso é que o atual governo, não se sabe bem por que (eu, pelo menos, não sei), mas talvez por distração ou coincidência, acreditou que uma política monetária austera iria melhorar a situação. E melhorou: agora o presidente chama a atual inflação de inflação boa, porque os pobres estão comendo melhor.Não vou discutir os discursos de Sua Excelência, mas o mais curioso é que ele e seus bem remunerados burocratas, mais os 513 senhores e senhoras que se reúnem na Câmara dos Deputados e os 81 no Senado, insistem em dar ao povo mais do mesmo: o que não deu certo.

Criam mais algumas dezenas de universidades públicas condenadas ao mau ensino e à ineficiência. Tentam passar uma lei para financiar uma saúde mal produzida pelo Estado e provêem uma segurança em que todos confiam mais no guardas privados do que nas polícias estatais. E o presidente do STF, quando vai ao Rio de Janeiro, tem um carro blindado, confortavelmente alugado com o nosso dinheiro. Melhor que ele não sinta os efeitos do milagre.Bem-vindos ao Brasil novo, em que o pobres ficaram ricos e o governo não aprendeu que tudo o que deu certo foi resultado do capitalismo. Mas, ainda assim, não acredita no que vê a ainda acha que o estatismo vai dar certo.Tinha razão Milton Friedman quando disse que, como o governo não produz nada, apenas repassa o dinheiro que tira de quem paga imposto, não importam nem o preço pago nem a qualidade do serviço, porque, afinal de contas, ele gasta o dinheiro dos outros, supostamente em benefício dos outros.Bem-vindos ao país em que os pobres enricaram. Preparem-se: eles gostaram. Daqui para a frente quererão mais.

Alexandre Barros é pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação do Centro Universitário (Unieuro), de Brasília E-mail: alex@eaw.com.br

domingo, maio 11, 2008

EDUCAÇÃO E CAPITALISMO: ALIADOS OU INIMIGOS?

http://veja.abril.com.br/gustavo_ioschpe/index_140508.shtml

Gustavo IoschpeEconomista, especialista em educaçãoE-mail: gustavo.ioschpe@gmail.com

EDUCAÇÃO E CAPITALISMO: ALIADOS OU INIMIGOS?
Virou consenso no Brasil associar o nosso fracasso educacional com as maquinações do sistema capitalista/neoliberal. Segundo essa leitura, calcada em Marx, interessaria aos "poderosos", à "elite", que o proletariado não fosse instruído ou, no máximo, recebesse uma educação totalmente "alienante", para que não questionasse suas mazelas nem incomodasse o status quo e apenas continuasse fornecendo sua mão-de-obra barata para a manutenção do sistema. Essa leitura da situação se tornou absolutamente hegemônica: vai da imprensa à academia, dos mais louvados pensadores do tema à correspondência enviada a este articulista por professores dos grotões do Brasil. Vejamos alguns exemplos. De Emir Sader: "A educação, que poderia ser uma alavanca essencial para a mudança, tornou-se instrumento daqueles estigmas da sociedade capitalista: ‘fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à maquinaria produtiva em expansão do sistema capitalista, mas também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes’. Em outras palavras, tornou-se uma peça do processo de acumulação de capital e de estabelecimento de um consenso que torna possível a reprodução do injusto sistema de classes. (...) No reino do capital, a educação é, ela mesma, uma mercadoria. Daí a crise do sistema público de ensino, pressionado pelas demandas do capital (...)". Lucyelle Pasqualotto: "Podemos analisar que a educação como vem sendo, historicamente, organizada está para atender ao capital, numa sociedade inerentemente excludente e contraditória. (...) Oferece diferentes níveis, modalidades, métodos educacionais, a fim de dar continuidade ao seu elemento diferenciador e, ao mesmo tempo, apregoando o discurso da unificação e universalização da educação. Discurso este que, em uma sociedade capitalista, onde os meios de produção, inclusive o conhecimento[,] são propriedade privada, quanto muito pode proporcionar uma educação mercantilizada, excludente e diferencial". Amelia Hamze: "Proporcionar a qualidade de ensino e a gestão democrática da escola levaria a invalidação da sustentação do poder amparada pelo estado capitalista".

Essas teses, como de costume, são apenas frutos da verborragia dos "pesquisadores" que as produzem. Não vêm embasadas por nenhuma tentativa de comprovação quantitativa – até porque a maioria de seus autores se confunde com qualquer operação matemática ou estatística que requeira sofisticação maior do que calcular o troco do táxi e costuma, convenientemente, mascarar essas deficiências sob um discurso ideológico segundo o qual a própria quantificação, do que quer que seja, seria uma vitória da superestrutura neoliberal, mercantilista. É pena, porque essa teoria – de que o capitalismo requer a falta de educação, ou a educação de baixa qualidade – é facilmente conversível em uma hipótese testável. Se esses pensadores estiverem certos, espera-se que os países mais capitalistas sejam aqueles com os piores e mais excludentes sistemas educacionais, enquanto aqueles em que o capitalismo não conseguiu estender seus tentáculos malévolos deveriam ter populações formadas por cidadãos altamente instruídos e intelectualizados.

Em realidade, o que ocorre é exatamente o oposto: quanto mais capitalista o país, melhor e mais abrangente é o seu sistema educacional. Cruzei os dados referentes a educação e capitalismo de 167 países. Usando o instrumento da estatística de regressão, descobre-se que o desempenho educacional explica, por si só, 47% da posição de um país na escala do capitalismo. A relação é estatisticamente fortíssima: a probabilidade que a percebida ligação entre as duas variáveis seja fruto de erro é inferior a 0,00000001%. Essa robustez não é casual: indica que o sistema capitalista exige sociedades com alto nível educacional, e, quanto mais instruída é a população, mais capitalista o país tende a ser, e vice-versa.

Por que no Brasil ainda se acredita no oposto? É a junção do mofo intelectual com a vigarice. Marx já cometia erros de interpretação da realidade quando escrevia seu Manifesto Comunista e O Capital, há 150 anos. O que se aplicava àquela realidade histórica, porém, não se aplica à nossa – o capitalismo mudou, e muito, neste século e meio. O período do início da Revolução Industrial era, sim, uma época em que a competência necessária ao trabalhador era mínima e sua jornada de trabalho era desumana. Para apertar parafusos em uma linha de montagem esfumaçada por dezesseis ou vinte horas por dia, em repetição incessante, era apenas necessário alguém que soubesse ler, se tanto. O capitalismo do século XXI, porém, é outro. O conjunto de habilidades e conhecimentos necessários é muito maior – até para trabalhar em uma linha de montagem de uma fábrica é preciso capacidade analítica para lidar com um maquinário cada vez mais sofisticado. E, quanto mais capitalista e desenvolvido um país se torna, mais diminui a importância das áreas fabril e de produção de commodities e aumenta o peso de setores de serviço e de alta tecnologia, em que o principal insumo é o cérebro das pessoas. Não é por acaso que alguns campeões do capitalismo, como Coréia do Sul e Estados Unidos, hoje se aproximam da massificação da matrícula de ensino universitário, com taxas beirando os 90%.

O profissional de sucesso do mercado internacional de hoje é a antítese do proletário da Inglaterra de Marx: precisa ser altamente capacitado em sua área e, ao mesmo tempo, ter uma formação multidisciplinar e abrangente. Enquanto isso, nossos pensadores continuam recebendo soldo dos nossos impostos para suas análises em que até hoje, quase vinte anos depois da falência do socialismo, tentam mostrar como Marx tinha razão. A essa incapacidade de alguns, soma-se o oportunismo de muitos. Esse tipo de análise reverbera no professorado porque o seu corolário é simples: o insucesso educacional é resultado de uma sociedade corrompida pelo capitalismo. Eu quero ensinar, mas a superestrutura não me permite. A única maneira de produzir uma mudança efetiva na educação é através da revolução social, e acreditar que o esforço individual de um professor ou diretor pode fazer qualquer diferença diante de forças sociais e históricas tão poderosas já seria uma rendição ao espírito atomista, ilusório, que é a marca do capitalismo. A falência intelectual pavimenta o caminho do conformismo e cinismo de cada um.

Essa prisão mental em que nos encontramos acaba por prender em amarras o próprio país. Esperando pela revolução social, abandonamos a possibilidade da revolução mais maravilhosa que existe: a que se dá pelo conhecimento. Silenciosa e pacífica, é a verdadeira redentora: perto de dominar a eternidade representada pelo saber, desapropriar uma fábrica ou fazenda parece brincadeira de criança.

E essa é uma revolução em que não há perdedores. Todos os setores se beneficiam de uma população mais instruída. Em um mundo globalizado, a idéia de que a elite gostaria de confinar a população à ignorância para não ver sua posição ameaçada é fajuta. Se o empresário não tiver trabalhadores competentes, será destruído pela competição das empresas de outros países, com gente qualificada. Só há, estranhamente, um único tipo de organização, que eu saiba, que se beneficie de uma população iletrada: são os partidos de esquerda. Nas últimas eleições presidenciais, segundo o Datafolha, Lula só perdeu em um grupo: o dos eleitores com ensino superior. Entre eles, em pesquisa de 17 de outubro – doze dias antes da eleição, portanto – Lula tinha 40% das preferências, contra 50% de Alckmin. Felizmente, para ele, a maioria de nossa população só tem ensino fundamental, grupo em que o petista liderava por 57% a 28%.

domingo, abril 20, 2008

A QUESTÃO AGRÁRIA E O ABRIL VERMELHO DO MST

Veja a entrevista que concedi ao programa CBN MARINGÁ dia 18/04/08.

quinta-feira, abril 17, 2008

Ayn Rand (Quem é John Galt?)

(AS VIRTUDES DA SOCIEDADE IGUALITÁRIA)
TRECHOS DA OBRA

Segue abaixo um trecho memorável de uma obra em que Ayn Rand mostra, de forma extremamente convincente, a inviabilidade de uma sociedade baseada no princípio marxista "De cada um, conforme sua capacidade, para cada um, conforme sua necessidade".
O trecho é longo -- é parte de Atlas Shrugged (1957; em Português: Quem é John Galt? [Editora Expressão e Cultura, 1987]), romance em que Ayn Rand conta, entre outras coisas, como uma fábrica de ponta e extremamente produtiva é destruída por idéias igualitárias. A transcrição é segundo o texto da tradução (pp. 510-517).

A maior parte do trecho é uma explicação, por parte de um ex-empregado, e dada a uma mulher que o entrevistava, de porque a fábrica faliu. Ironicamente, a fábrica se chamava Motores Século Vinte (Twentieth-Century Motors).
Trata-se de uma obra de ficção - ma non troppo. . . O livro foi recentemente votado pelos leitores, na Internet, a obra de ficção mais importante do século XX. Vide a página de referência. [Se preferir ler a passagem em Espanhol, clique aqui].
[p.510] Bem, foi uma coisa que aconteceu na fábrica onde eu trabalhei durante vinte anos. Foi quando o velho morreu e os herdeiros tomaram conta. Eles eram três, dois filhos e uma filha, e inventaram um novo plano para administrar a fábrica. Deixaram a gente votar, também, para aceitar ou não o plano, e todo mundo, quase todo mundo, votou a favor. A gente não sabia, pensava que fosse bom. Não, também não é bem isso, não. A gente pensava que queriam que a gente achasse que era bom. O plano era o seguinte: cada um trabalhava conforme sua capacidade, e recebia conforme sua necessidade. . . .

Aprovamos o tal plano numa grande assembléia: nós éramos seis mil, todo mundo que trabalhava na fábrica. Os herdeiros do velho Starnes fizeram uns discursos compridos, e ninguém entendeu muito bem, mas ninguém fez nenhuma pergunta. Ninguém sabia como plano ia funcionar, mas cada um achava que o outro sabia. E quem tinha dúvida se sentia culpado e não dizia nada, porque do jeito como os herdeiros falavam, quem fosse contra era desumano e assassino de criancinha. Disseram que esse plano ia concretizar um nobre ideal. Como é que a gente podia saber? Não era isso que a gente ouvia a vida inteira dos pais, professores e pastores, em todos os jornais, filmes e discursos políticos? Não diziam sempre que isso é que era certo e justo? Bem, pode ser que a gente tenha alguma desculpa para o que fez naquela assembléia. O fato é que votamos a favor do plano, e o que aconteceu conosco depois foi merecido.

A senhora sabe, nós que trabalhamos lá no Século Vinte durante aqueles quatro anos, somos homens marcados. O que é que dizem que o inferno é? O mal, o mal puro, nu, absoluto, não é? Pois foi isso que a gente viu e ajudou a fazer, e acho que todos nós estamos malditos, e talvez nunca mais vamos ter perdão. . .

A senhora quer saber como funcionou o tal plano, e o que aconteceu com as pessoas? É como derramar água dentro de um tanque onde tem um cano no fundo puxando mais água do que entra, e cada balde que a senhora derrama lá dentro o cano alarga mais um bocado, e quanto mais a senhor trabalha, mais exigem da senhora, e no final a senhora está despejando balde quarenta horas por semana, depois quarenta e oito, depois cinqüenta e seis, para o jantar do vizinho, para a operação da mulher dele, para o sarampo do filho dele, para a cadeira de rodas da mãe dele, para a camisa do tio dele, para a escola do sobrinho dele, para o bebê do vizinho, para o bebê que ainda vai nascer, para todo mundo à sua volta, tudo é para eles, desde as fraldas até as dentaduras, e só o trabalho é seu, trabalhar da hora em que o sol nasce até escurecer, mês após mês, ano após ano, ganhando só suor, o prazer só deles, durante toda a sua vida, sem descansar, sem esperança, sem fim. . . .

De cada um, conforme sua capacidade, para cada um, conforme sua necessidade. . . .
Nós somos uma grande família, todo mundo, é o que nos diziam, estamos todos [p.511] no mesmo barco. Mas não é todo mundo que passa dez horas com um maçarico na mão, nem todo mundo que fica com dor de barriga ao mesmo tempo. Capacidade de quem? Necessidade de quem, quem tem prioridade? Quando é tudo uma coisa só, ninguém pode dizer quais são as suas necessidades, não é? Senão qualquer um pode dizer que necessita de um iate, e se só o que conta são os sentimentos dele, ele acaba até provando que tem razão. Por que não? Se eu só tenho o direito de ter carro depois que eu trabalhei tanto que fui parar no hospital, depois de garantir um carro para todo vagabundo e todo selvagem nu do mundo, por que ele não pode exigir de mim um iate também, se eu ainda tenho capacidade de trabalhar? Não pode? Então ele não pode exigir que eu tome meu café sem leite até ele conseguir pintar a sala de visitas dele? . . .

Pois é. . . . Mas aí decidiram que ninguém tinha direito de julgar suas próprias capacidades e necessidades. Tudo era resolvido na base da votação. Sim, senhora, tudo era votado em assembléia duas vezes por ano. Não tinha outro jeito, não é? E a senhora imagina o que acontecia nessas assembléias? Bastou a primeira para a gente descobrir que todo mundo tinha virado mendigo -- mendigos, esfarrapados, humilhados, todos nós, porque nenhum homem podia dizer que fazia jus a seu salário, não tinha direitos nem fazia jus a nada, não era dono de seu trabalho, o trabalho pertencia à 'família', e ele não lhe devia nada em troca, a única coisa que cada um tinha era a sua 'necessidade', e aí tinha que pedir em público que atendessem às suas necessidades, como qualquer parasita, enumerando todos os seus problemas, até os remendos na calça e os resfriados da esposa, na esperança de que a 'família' lhe jogasse uma esmola. O jeito era chorar miséria, porque era a sua miséria, e não o seu trabalho, que agora era a moeda corrente de lá.
Assim, a coisa virou um concurso de misérias disputado por seis mil pedintes, cada um chorando mais miséria que o outro. Não tinha outro jeito, não é? A senhora imagina o que aconteceu, que tipo de homem ficava calado, com vergonha, e que tipo de homem levava a melhor?
Mas tem mais. Mais uma coisa que a gente descobriu na mesma assembléia. A produção da fábrica tinha caído quarenta por cento naquele primeiro semestre, e aí se concluiu que alguém não tinha usado toda a sua 'capacidade'. Quem? Como descobrir? A 'família' decidia isso no voto, também. Escolhiam no voto quais eram os melhores trabalhadores, e esses eram condenados a trabalhar mais, fazer hora extra todas as noites durante os próximos seis meses. E sem ganhar nada mais, porque a gente ganhava não por tempo nem por trabalho, e sim conforme a necessidade.

Será necessário explicar o que aconteceu depois disso? Explicar que tipo de criaturas nós fomos virando, nós que antes éramos seres humanos? Começamos a esconder toda a nossa capacidade, trabalhar mais devagar, ficar de olho para ter certeza de que a gente não trabalhava mais depressa nem melhor do que o colega ao nosso lado. Tinha que ser assim, pois a gente sabia que quem desse o melhor de si para a 'família' não ganhava elogio nem recompensa, mas castigo. Sabíamos que para cada imbecil que estragasse um motor e desse um prejuízo para a fábrica -- ou por desleixo, porque ele não tinha nenhum motivo para caprichar, ou por pura incompetência -- quem ia ter que pagar era a gente, trabalhando de noite e no domingo. Assim, a gente se esforçava o máximo para ser o pior possível.

Havia um garoto que começou todo empolgado com o nobre ideal, um garoto muito vivo, sem instrução, mas um crânio. No primeiro ano ele inventou um processo que economizava milhares de homens-hora. Deu de mão beijada a descoberta dele para a 'família', não pediu nada em troca, nem podia, mas não se incomodava com isso. Era tudo pelo ideal, dizia ele. Mas quando foi eleito um dos mais capazes e condenado a trabalhar de noite, ele fechou a boca e o cérebro. No ano seguinte, é claro, não teve nenhuma idéia brilhante.

A vida inteira nos ensinaram que os lucros e a competição tinham um efeito nefasto, que era terrível um competir com o outro para ver quem era melhor, não é? Nefasto? Pois deviam ver o que acontecia quando um competia com o outro para ver quem era o pior.
Não há maneira melhor de destruir um homem do que obrigá-lo a tentar NÃO fazer o melhor de que é capaz, a se esforçar por fazer o pior possível, dia após dia. Isso mata mais [p.512] depressa do que a bebida, a vadiagem, a vida de crime. Mas para nós a única saída era fingir incompetência. A única acusação que temíamos era a de que tínhamos capacidade. A capacidade era como uma hipoteca que não se termina de pagar.

E trabalhar para quê? A gente sabia que o mínimo para a sobrevivência era dado a todo mundo, quer trabalhasse quer não, a chamada 'ajuda de custo para moradia e alimentação', e mais do que isso não se tinha como ganhar, por mais que se esforçasse. Não se podia ter certeza de que seria possível comprar uma muda de roupas no ano seguinte -- a senhora podia ou não ganhar uma 'ajuda de custo para vestimentas', dependendo de quantas pessoas quebrassem a perna, precisassem ser operadas, ou tivessem mais filhos. E se não havia dinheiro para todo mundo comprar roupas, então a senhora também ficava sem roupa nova.

Havia um homem que tinha passado a vida toda trabalhando até não poder mais, porque queria que seu filho fizesse faculdade. Pois bem, o garoto terminou o secundário no segundo ano de vigência do plano, mas a 'família' não quis dar ao homem uma 'ajuda de custo' para pagar a faculdade do filho. Disseram que o filho só ia poder entrar para a faculdade quando houvesse dinheiro para os filhos de todos entrarem para a faculdade -- e, para isso, era preciso primeiro pagar a escola secundária dos filhos de todos, e não havia dinheiro nem para isso. O homem morreu no ano seguinte, numa briga de faca num bar, uma briga sem motivo; brigas desse tipo estavam se tornando cada vez mais comum entre nós.

Havia um sujeito mais velho, um viúvo sem família, que tinha um hobby: colecionar discos. Acho que era a única coisa de que ele gostava na vida. Antigamente, ele costumava ficar sem almoçar para ter dinheiro para comprar mais um disco clássico. Pois não lhe deram nenhuma 'ajuda de custo' para comprar discos -- disseram que aquilo era 'luxo pessoal'. Mas, naquela mesma assembléia, votaram a favor de dar para uma tal de Millie Bush, filha de alguém, uma garotinha de oito anos, feia e má, um aparelho de ouro para corrigir seus dentes -- isto era uma 'necessidade médica', porque o psicólogo da empresa disse que a coitadinha ia ficar com complexo de inferioridade se seus dentes não fossem endireitados. O velho que gostava de música passou a beber. Chegou a um ponto em que nunca mais era visto sóbrio. Mas parece que uma coisa ele nunca esqueceu. Uma noite, ele vinha cambaleando pela rua quando viu a tal da Millie Bush: deu-lhe um soco que lhe quebrou todos os dentes. Todos.

A bebida, naturalmente, era a solução para a qual todos nós apelávamos, uns mais, outros menos. Não me pergunte onde é que achávamos dinheiro para isso. Quando todos os prazeres decentes são proibidos, sempre se dá um jeito de gozar os prazeres que não prestam. Ninguém arromba mercearias à noite nem rouba o colega para comprar discos clássicos nem caniços de pesca, mas se é para tomar um porre e esquecer, faz-se de tudo. Caniços de pesca? Armas para caçar? Máquinas fotográficas? Hobbies? Não havia 'ajuda de custo de entretenimento' para ninguém. O 'entretenimento' foi a primeira coisa que eles cortaram. Pois a gente não deve ter vergonha de reclamar quando alguém pede para abrirmos mão de uma coisa que nos dá prazer? Até mesmo a nossa 'ajuda de custo de fumo' foi racionada a ponto de só recebermos dois maços de cigarro por mês -- e isso, diziam eles, porque o dinheiro estava indo para o fundo do leite dos bebês.

Os bebês eram o único produto que havia em quantidades cada vez maiores -- porque as pessoas não tinham outra coisa para fazer, imagino, e porque não tinham que se preocupar com os gastos da criação dos bebês, já que eram uma responsabilidade da 'família'. Aliás, a melhor maneira de conseguir um aumento e poder ficar mais folgado por uns tempos era ganhar uma 'ajuda de custo para bebês' -- ou isso ou arranjar uma doença séria.

Não demorou muito para a gente entender como a coisa funcionava. Todo aquele que resolvia fazer tudo certinho tinha que se abster de tudo. Tinha que perder toda a vontade de gozar qualquer prazer, não gostar de fumar um cigarro nem mascar um chiclete, porque alguém podia ter uma necessidade maior do dinheiro gasto naquele cigarro ou chiclete. Sentia vergonha cada vez que engolia uma garfada de comida, pensando em quem tinha tido que trabalhar de noite para [p.513] pagar aquela garfada, sabendo que a comida que comia não era sua por direito, sentindo a vontade infame de ser trapaceado ao invés de trapacear, ser um pato e não um sanguessuga. Não podia ajudar os pais, para não colocar um fardo mais pesado sobre os ombros da 'família'. Além disso, se ele tivesse um mínimo de senso de responsabilidade, não podia nem casar nem ter filhos, pois não podia planejar nada, prometer nada, contar com nada.

Mas os indolentes e irresponsáveis se deram bem. Arranjaram filhos, seduziram moças, trouxeram todos os parentes imprestáveis que tinham, todas as irmãs solteiras grávidas, para receber uma 'ajuda de custo de doença', inventaram todas as doenças possíveis, sem que os médicos pudessem provar a fraude, estragaram suas roupas, seus móveis, suas casas -- pois não era a 'família' que estava pagando? Descobriram muito mais 'necessidades' do que os outros -- desenvolveram um talento especial para isso, a única capacidade que demonstraram.


Deus me livre! A senhora entende? Compreendemos que nos tinham dado uma lei, uma lei MORAL, segundo eles, que punia aqueles que a observavam -- pelo fato de a observarem. Quanto mais a senhora tentava seguir essa lei, mais a senhora sofria; quanto mais a senhora a violava, mais lucrava. A sua honestidade era como um instrumento nas mãos da desonestidade do próximo. Os honestos pagavam, e os desonestos lucravam. Os honestos perdiam, os desonestos, ganhavam. Com esse tipo de padrão do que é certo e errado, por quanto tempo os homens poderiam permanecer honestos? No começo éramos pessoas bem honestas, e só havia uns poucos aproveitadores. Éramos competentes, orgulhávamo-nos do nosso trabalho, e éramos empregados da melhor fábrica do país, para a qual o velho Starnes só contratava a nata dos trabalhadores. Um ano depois da implantação do plano não havia mais um homem honesto entre nós. Era ISSO o mal, o horror infernal que os pregadores usavam para assustar os fiéis, mas que a gente nunca imaginava ver em vida.

A questão não foi que o plano estimulasse uns poucos corruptos, e sim que ele corrompia pessoas honestas, e o efeito não podia ser outro -- e era isso que chamavam de idéia moral!
Queriam que trabalhássemos em nome de quê? Do amor pelos nossos irmãos? Que irmãos? Os parasitas, os sanguessugas que víamos ao redor? E se eles eram desonestos ou se eram incompetentes, se não tinham vontade ou não tinham capacidade de trabalhar -- que diferença fazia para nós? Se estávamos presos para o resto da vida àquele nível de incompetência, fosse verdadeiro ou fingido, por quanto tempo nos daríamos o trabalho de seguir em frente? Não tínhamos como saber qual era a verdadeira capacidade deles, não tínhamos como controlar suas necessidades -- só sabíamos que éramos burros de carga lutando às cegas num lugar que era meio hospital, meio curral -- um lugar onde só incentivavam a incompetência, as catástrofes, as doenças - burros de carga que só serviam às necessidades que os outros afirmavam ter.

Amor fraternal? Foi aí que aprendemos, pela primeira vez na vida, a odiar nossos irmãos. Começamos a odiá-los por cada refeição que faziam, cada pequeno prazer que gozavam, a camisa nova de um, o chapéu da esposa do outro, o passeio que um dava com a família, a reforma que o outro fazia na sua casa -- tudo aquilo era tirado de nós, era pago pelas nossas privações, nossa renúncias, nossa fome.

Um começou a espionar o outro, cada um tentando flagrar o outro em alguma mentira sobre as suas necessidades, para cortar sua 'ajuda de custo' na próxima assembléia. Começaram a surgir delatores, que descobriam que alguém tinha comprado clandestinamente um peru para a família num domingo qualquer, provavelmente com o dinheiro que ganhara no jogo. Começamos a nos meter um na vida do outro. Provocávamos brigas de família, para conseguir que os parentes de alguns saíssem da lista de beneficiados. Toda vez que víamos algum homem começando namorar uma moça, tornávamos a vida dele um inferno. Fizemos muitos noivados se romperem. Não queríamos que ninguém se casasse: não queríamos mais dependentes para alimentar.
Antigamente, comemorávamos quando alguém tinha filho, todo mundo contribuía para ajudar a pagar a conta do hospital, quando os pais estavam sem dinheiro no momento. Agora, quando nascia uma criança, ficávamos sem falar com os pais. Para nós, os bebês eram [p.514] agora o que os gafanhotos são para os fazendeiros.

Antigamente, ajudávamos quem tinha um doente na família. Agora . . . Vou contar só um caso para a senhora. Era a mãe de um homem que estava trabalhando conosco há quinze anos. Era uma senhora simpática, alegre e sábia, conhecia todos nós pelo primeiro nome, todos nós gostávamos dela, antes. Um dia ela escorregou na escada do porão, caiu e quebrou a bacia. Nós sabíamos o que isso representava para uma pessoa daquela idade. O médico disse que ela teria que ser hospitalizada, para fazer um tratamento caro e demorado. A velha morreu na véspera do dia em que ia ser removida para o hospital. Ninguém nunca explicou a causa da morte dela. Não, não sei se foi assassinada. Ninguém disse isso. Ninguém comentava nada sobre o assunto. A única coisa que eu sei -- e disso nunca vou me esquecer -- é que eu, também, quando dei por mim estava rezando para que ela morresse. Que Deus nos perdoe! Era essa a fraternidade, a segurança, a abundância que nos haviam prometido com a adoção do plano.

[p.515] E quando a gente via isso, entendia qual era a motivação verdadeira de todo mundo que já pregou o princípio "de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme sua necessidade". Era esse o segredo da coisa. De início, eu não entendia como é que os homens instruídos, cultos e famosos do mundo poderiam fazer um erro como esse e pregar que esse tipo de abominação era direita -- quando bastavam cinco minutos de reflexão para eles verem o que aconteceria quando alguém tentasse pôr em prática essa idéia. Agora eu sei que eles não defendiam isso por erro. Ninguém faz um erro desse tamanho inocentemente. Quando os homens defendem alguma loucura malévola, quando não têm como fazer essa idéia funcionar na prática e não têm um motivo que possa explicar essa sua escolha, então é porque não querem revelar o verdadeiro motivo.

E nós também não éramos tão inocentes assim, quando votamos a favor daquele plano na primeira assembléia. Não fizemos isso só porque acreditávamos naquelas besteiradas que eles vomitavam. Nós tínhamos outro motivo, mas as besteiradas nos ajudavam a escondê-lo dos outros e de nós mesmos, nos davam uma oportunidade de dar a impressão de que era virtude algo que tínhamos vergonha de assumir. Cada um que aprovou o plano achava que, num sistema assim, conseguiria faturar em cima dos lucros dos homens mais capazes. Cada um, por mais rico e inteligente que fosse, achava que havia alguém mais rico e mais inteligente, e que esse plano lhe daria acesso a uma fatia da riqueza e da inteligência daqueles que eram melhores que ele. Mas enquanto ele pensava que ia ganhar aquilo que ele não merecia e que cabia aos que lhe eram superiores, ele esquecia os homens que lhe eram inferiores e que iam querer roubá-lo tanto quanto ele queria roubar seus superiores. O trabalhador que gostava de pensar que suas necessidades lhe davam o direito de ter uma limusine igual à do patrão se esquecia de que todo vagabundo e mendigo do mundo viria gritando que as necessidades deles lhes davam o direito de ter uma geladeira igual à do trabalhador. Era ESSE o nosso motivo para aprovar o plano, na verdade, mas não gostávamos de pensar nisso: e então, quanto mais a idéia nos desagradava, mais alto gritávamos que éramos a favor do bem comum.

Bem, tivemos o que merecíamos. Quando vimos o que havíamos pedido, era tarde demais. Tínhamos caído numa armadilha, e não tínhamos para onde ir. Os melhores de nós saíram da fábrica na primeira semana de vigência do plano. Perdemos nossos melhores engenheiros, superintendentes, chefes, os trabalhadores mais [p.516] qualificados. Quem tem amor-próprio não se deixa transformar em vaca leiteira para ser ordenhada pelos outros. Alguns sujeitos capacitados tentaram seguir em frente, mas não conseguiram agüentar muito tempo. A gente estava sempre perdendo os melhores, que viviam fugindo da fábrica como o diabo da cruz, até que só restavam os homens necessitados, sem mais nenhum dos capacitados. E os poucos que ainda valiam alguma coisa eram aqueles que já estavam lá havia muito tempo.

Antigamente, ninguém pedia demissão da Século Vinte, e a gente não conseguia se convencer de que a Século Vinte não existia mais. Depois de algum tempo, não podíamos mais pedir demissão porque nenhum outro empregador nos aceitaria, aliás com razão. Ninguém queria ter qualquer tipo de relacionamento conosco, nenhuma pessoa nem firma respeitável. Todas as pequenas lojas com que negociávamos começaram a sair de Starnesville depressa, e no final só restavam bares, cassinos e salafrários que nos vendiam porcarias a preços exorbitantes. As esmolas que recebíamos eram cada vez menores, mas o custo de vida subia. A lista dos necessitados da fábrica não parava de aumentar, mas a lista de fregueses diminuía. Havia cada vez menos renda para dividir entre cada vez mais pessoas.

Antigamente, dizia-se que a marca da Século Vinte era tão confiável quanto a marca de quilates num lingote de ouro. Não sei o que pensavam os herdeiros do velho Starnes, se é que eles pensavam alguma coisa, mas imagino que, como todos os planejadores sociais e selvagens, eles achavam que essa marca era um selo mágico que tinha um poder sobrenatural que os manteria ricos, tal como havia enriquecido seu pai. Mas quando nossos fregueses começaram a perceber que nunca conseguíamos entregar uma encomenda dentro do prazo, nem produzir um motor que não tivesse algum defeito, o selo mágico passou a ter o valor oposto: as pessoas não queriam um motor nem dado, se ele ostentasse o selo da Século Vinte.

E no final nossos fregueses eram todos do tipo que nunca pagam o que devem, e nunca têm mesmo intenção de pagar. Mas Gerald Starnes, dopado por sua própria publicidade, ficava todo empertigado, com ar de superioridade moral, exigindo que os empresários comprassem nossos motores, não porque eles fossem bons, mas porque tínhamos muita NECESSIDADE de encomendas.
Àquela altura qualquer imbecil já podia ver o que gerações de professores não haviam conseguido enxergar. De que adiantaria nossa necessidade, para uma usina, quando os geradores paravam porque nossos motores não funcionavam direito? De que ela adiantaria para um paciente sendo operado, quando faltasse luz no hospital? De que ela adiantaria para os passageiros de um avião, quando os motores pifassem em pleno vôo? E se eles comprassem nossos produtos não por causa do seu valor, mas por causa de nossa necessidade, isso seria correto, bom, moralmente certo para o dono daquela usina, o cirurgião daquele hospital, o fabricante daquele avião?

Pois era esta a lei moral que os professores e líderes e pensadores queriam estabelecer por todo o mundo. Se era este o resultado quando ela era aplicada numa única cidadezinha onde todo mundo se conhecia, a senhora pode imaginar o que aconteceria em escala mundial? A senhora pode imaginar o que aconteceria se a senhora tivesse de viver e trabalhar afetada por todos os desastres e toda a malandragem do mundo? Trabalhar -- e quando alguém cometesse um erro em algum lugar, a senhora é que teria de pagar. Trabalhar -- sem jamais ter perspectivas de melhorar de vida, sendo que suas refeições, suas roupas, sua casa e seu prazer estariam à mercê de qualquer trapaça, de qualquer problema de fome ou de peste em qualquer parte do mundo. Trabalhar -- sem nenhuma perspectiva de ganhar uma ração extra enquanto os cambojanos não tivessem sido alimentados e os patagônios não tivessem todos feito faculdade. Trabalhar -- tendo cada criatura no mundo um cheque em branco na mão, gente que a senhora nunca vai conhecer, cujas necessidades a senhora jamais vai conhecer, cuja capacidade e preguiça e desleixo e desonestidade são coisas que a senhora jamais vai saber nem tem direito de questionar -- enquanto as Ivys e os Geralds da vida resolvem quem vai consumir o esforço, os sonhos e os dias de sua vida. E é ESTA lei moral que se deve aceitar? ISTO é um ideal moral?
Olhe, nós tentamos -- e aprendemos. Nossa agonia durou quatro anos, da nossa primeira assembléia à última, e acabou da única [p.517] maneira que podia acabar: com a falência. Na nossa última assembléia foi Ivy Starnes que tentou manter as aparências. Fez um discurso curto, vil e insolente, dizendo que o plano havia fracassado porque o resto do país não o havia aceitado, que uma única comunidade não poderia ter sucesso no meio de um mundo egoísta e ganancioso, e que o plano era um ideal nobre, mas que a natureza humana não era suficientemente boa para que ele desse certo.

Um rapaz -- o mesmo que fora punido por dar uma boa idéia no primeiro ano -- levantou-se, enquanto todos os outros permaneciam calados, e andou até Ivy Starnes no tablado. Não disse nada. Cuspiu na cara dela. Foi assim que acabaram o nobre plano e a Século Vinte.
http://www.aynrand.com.br/pages/excerpts.htm

domingo, abril 13, 2008

O BUFÃO DA AMÉRICA

VEJA, Edição 2056, 16 de abril de 2008.

Entrevista com o historiador Marco Antonio Villa

Historiador diz que Hugo Chávez, presidente da Venezuela, é perigoso por ser ambicioso e imprevisível.

Duda Teixeira
Roberto Setton

"Se Lula tivesse sido presidentena República Velha, o Acre seriados bolivianos e Santa Catarina,dos argentinos"

O historiador Marco Antonio Villa já escreveu 21 livros, com temas que variam da Idade Média à Revolução Mexicana. Ao investir contra mitos da história nacional em suas obras e artigos, esse professor da Universidade Federal de São Carlos colecionou polêmicas e fez dezenas de inimigos. Sete anos atrás, tornou-se persona non grata no estado de Minas Gerais ao sustentar que Tiradentes foi um herói construído pelos republicanos. Mais tarde, causou comoção ao escrever que o presidente João Goulart, deposto pelos militares em 1964, preparava o próprio golpe de estado para obter a reeleição. "Os historiadores costumam ter receio de polêmicas, mas é com elas que se transforma a visão de mundo de uma sociedade", diz Villa, que tem 52 anos. Estudioso da diplomacia brasileira, ele vê com preocupação o sumiço da linha de diplomacia cunhada pelo barão do Rio Branco. "O barão profissionalizou o Itamaraty, que passou a atuar em busca dos interesses do país, e não de um governo ou partido." Em sua casa na Zona Norte de São Paulo, o historiador deu a seguinte entrevista a VEJA.

Veja – Como o senhor avalia a atual diplomacia brasileira?
Villa – Nossa diplomacia se esquiva de defender os interesses nacionais na América Latina. Teima sempre em chegar a um acordo e, como não consegue, acaba cedendo aos vizinhos. Se Lula tivesse sido presidente na República Velha, o Acre seria hoje dos bolivianos e Santa Catarina, dos argentinos. Por aqui se pensa que o Brasil não pode ter interesses nacionais ou econômicos na América do Sul, uma vez que estamos em busca de uma integração regional. É um equívoco. Os interesses do Brasil não são os mesmos da Argentina. Os objetivos do Paraguai não são os do Brasil. A linguagem amena, educada, usada pelos nossos diplomatas apenas tem fortalecido os caudilhos da região, como o venezuelano Hugo Chávez e o boliviano Evo Morales, que se acham com autoridade para falar ainda mais grosso e aumentar as exigências.

Veja – A diplomacia brasileira não era assim no passado?
Villa – Não. No fim do século XIX, a Argentina reivindicou o oeste do Paraná e de Santa Catarina. Não fazia o menor sentido. O presidente Prudente de Moraes, com a ajuda do barão do Rio Branco, resolveu a questão e evitou a doação da área. Não perdemos um hectare de terra. O barão sabia quais eram os interesses nacionais e os defendia. Além disso, profissionalizou o Itamaraty, que passou a coordenar uma política em nome do país, e não de um governo ou partido. Hoje, precisamos urgentemente que o barão do Rio Branco se incorpore no ministro das Relações Exteriores.

Veja – O Brasil cede sempre?
Villa – Só não o fazemos quando é impossível. Em negociações recentes com a argentina Cristina Kirchner e com Evo Morales, a Petrobras recusou-se a fornecer gás para a Argentina, que vive sob ameaça de um apagão. Se cedesse, o Brasil teria um grave desabastecimento. Nos outros casos, somos sempre fregueses. O Brasil já sofreu no passado uma invasão de produtos argentinos e ninguém reclamou. Quando a situação se inverteu e a balança comercial tornou-se superavitária para o Brasil, os argentinos chiaram e conseguiram o que queriam. Com a Bolívia, aceitamos uma indenização simbólica pelas refinarias nacionalizadas, a um valor muito aquém do que foi investido pela Petrobras. Com Hugo Chávez, falamos sempre "não" na primeira hora, depois dizemos "sim". Éramos contra o Banco do Sul. Hoje somos a favor. Fazemos o oposto do que recomendava Vladimir Lenin, para quem era preciso dar um passo atrás e depois dois para a frente. A diplomacia nacional dá um para a frente e dois para trás.

Veja – Deportar turistas espanhóis é uma resposta inteligente à repatriação de brasileiros que tentavam ir para a Espanha?
Villa – Foi um exagero. A política externa não é para ficar a cargo de um funcionário da Polícia Federal. As cenas dos espanhóis sendo deportados no aeroporto de Fortaleza são absurdas. Uma coisa é um turista que vai para Jericoacoara, outra é um brasileiro que, supostamente ou não, deseja trabalhar na Espanha. Quando faz diplomacia com a Europa, os Estados Unidos ou a Ásia, o Brasil tem sido muito agressivo. É como se o esforço para se afirmar como país, uma vez que não se realiza na América Latina, fosse todo desviado para os fóruns em outros continentes. Ser duro com um turista espanhol é fácil. Quero ver ser duro com Hugo Chávez.

Veja – Chávez é o grande líder da América Latina?
Villa – Quando se olha o que ocorre com os mais de vinte países da região, não há dúvida disso. Com a alta do preço do petróleo, Chávez construiu uma sólida rede de alianças. Foi uma sucessão de vitórias. Tem o apoio de Cuba, Nicarágua, Equador, Bolívia, Argentina. Quem está do lado do Brasil? Ninguém. Chávez é um ator que faz um monólogo. Eventualmente alguém da platéia sobe no palco e participa. O show é dele. Ele determina o que vai ser discutido e como. Os outros só correm atrás. Os países que estão se aproximando do Brasil, como Paraguai e Peru, fazem isso apenas porque não tiveram ainda um estabelecimento de relações com a Venezuela. A história talvez comece a mudar agora. Não por obra de Lula, evidentemente, e sim de Álvaro Uribe, o presidente colombiano. Graças a ele, Chávez teve sua primeira derrota em política externa. A reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA), que colocou panos quentes na discussão que se seguiu à morte do terrorista Raúl Reyes, pode sinalizar um futuro diferente.
Veja – Por que o senhor considera que Chávez perdeu?Villa – Chávez é um caudilho e, como tal, precisa de um palanque para discursar. Quando reagiu com firmeza à morte de Raúl Reyes no Equador, ganhou um palco considerável. Só que durou pouquíssimo tempo. A solução rápida e eficaz do problema pela OEA, que estava sumida do mapa, tirou essa oportunidade dele. Chávez resignou-se porque a maioria dos países apoiou a resolução final, que condenava a invasão territorial no Equador e ao mesmo tempo acusava a presença das Farc naquele país. Uribe, ao pautar as negociações que esfriaram o conflito, mostrou que é possível dar um basta a Chávez. Sua atitude terá um impacto pedagógico até mesmo dentro da Venezuela, onde o povo tem aceitado as precárias condições internas do país ao ver que, externamente, seu presidente só obtém vitórias. Chávez teve sua primeira grande derrota no referendo constitucional. Agora, teve a segunda derrota, dessa vez em política externa.
Veja – Por que o discurso é tão importante para um caudilho?
Villa – Um caudilho não vive sem a oratória. O programa dominical Aló Presidente é o que vitamina Chávez. Fidel Castro adora discursar por horas. O mexicano Antonio López de Santa Anna foi ditador várias vezes, afundou seu país e, ferido e pensando que ia morrer, ditou suas últimas palavras. Foram quinze páginas. No fim, sobreviveu com uma perna amputada, que sepultou com honras militares. A oratória é uma tradição latino-americana, que ocorre paralelamente à dissociação entre discurso e prática. Para esses homens e para as suas platéias, é como se as palavras, sozinhas, tivessem um poder de mudar a realidade. Pura bobagem. Não existe tal mágica. Lula também aposta nesse artifício. Acha que ao divulgar o programa do PAC pode transformar o Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, em um bairro residencial em seis meses. Para os sucessores, a herança desse tipo de comportamento é terrível.

Veja – Por que os latino-americanos possuem o vício da oratória?
Villa – Em parte, há na América Latina uma forte tradição do bacharelismo. Muitos dos presidentes passaram por faculdades de direito. No Brasil, Getúlio Vargas e Jânio Quadros são exemplos. Epitácio Pessoa era chamado de "A Patativa do Norte", em referência a uma ave cantora. Fidel Castro foi advogado. O argentino Juan Domingo Perón não era, mas a maioria dos seus auxiliares, sim. Para um advogado, o que importa não é a legitimidade da causa, mas o nível de retórica do advogado para defender seu acusado. Somos muito marcados por isso.

Veja – Qual é o maior perigo de Chávez para o resto da América Latina?
Villa – Ele está armando seu Exército e sua população. Compra fuzis, caças e faz acordos com o Irã. Ninguém parece levar isso a sério. A diplomacia brasileira sabe disso e vai contornando a situação. Uma hora Chávez vai invadir a Guiana. Ele reivindica quase dois terços do território desse país. Para Chávez, a Guiana é uma aventura fácil. E quem vai defendê-la? O que a Guiana conta na América do Sul? Nada.

Veja – Chávez reagiu ao ataque colombiano às Farc no Equador com um discurso em defesa da soberania nacional. Ele invadiria a Guiana?
Villa – Chávez é um bufão. Ele construiu um personagem. É um militar de boina vermelha que se emociona, chora e canta em público. Em um momento é simpático. No minuto seguinte, aparece totalmente irado. O bufão é isso. Nunca se podem prever suas atitudes. Pode abraçar um crítico ou mandá-lo para a prisão. Suas atitudes não se regem pelo mundo racional. O bufão trabalha em outro universo.

Veja – Por que Chávez defende as Farc?
Villa – Seu objetivo é enfraquecer Álvaro Uribe. Chávez vê de forma simplista a conjuntura latino-americana. O mundo para ele se divide de uma maneira muito primária: os que estão com ele e os que estão com os Estados Unidos. Considera que o presidente da Colômbia é um agente imperialista na América do Sul. O combate às Farc tem sido uma das mais fortes bandeiras de Uribe.

Veja – É legítimo usar grupos armados ou políticos de outros países para causar instabilidade?
Villa – Há uma incompatibilidade em defender a soberania e apoiar materialmente um movimento terrorista em um país vizinho. No Brasil, tivemos uma história parecida. No governo de João Goulart, as Ligas Camponesas tinham meia dúzia de campos guerrilheiros e contavam com o apoio financeiro cubano. Quando se descobriram os campos, foi um escândalo. Vivíamos um regime democrático e o governo brasileiro manifestava-se contrário à expulsão de Cuba da OEA, enquanto Cuba violava a soberania brasileira apoiando um movimento guerrilheiro que rompia com a legalidade constitucional. A defesa da soberania só valia para os cubanos. Eu imaginava que essa prática de violação da soberania fosse página virada da história latino-americana. Ledo engano.

Veja – Chávez foi o grande pacificador do conflito entre Colômbia e Equador, como disse Lula?
Villa – Não há nenhum fato que comprove isso. Os documentos que estavam no computador do guerrilheiro Raúl Reyes ainda mostram que Chávez apoiava financeiramente as Farc e também recebia ajuda dos narcoterroristas. Isso não tem nada a ver com paz. Lula não tinha por que falar isso. Diz essas asneiras porque está em um momento especial. A economia vai muito bem, o que levou Lula a entender que ganhou um salvo-conduto para reescrever a história do Brasil. Discursou homenageando Severino Cavalcanti, que renunciou quando se comprovou que ele recebia um mensalinho de 10 000 reais para deixar um restaurante funcionando na Câmara dos Deputados. Dois dias depois, defendeu sua amizade com Renan Calheiros, que teve suas contas pessoais pagas por um lobista. Quando falou de Chávez, Lula disse que ele era um ex-guerrilheiro. Lula sabe que essas coisas não são verdade. Não é ingênuo e é bem assessorado. Mas fala como se fosse um iluminado. É um líder messiânico em plena campanha eleitoral. Os professores de história devem estar arrepiados.

Veja – Qual é a importância do Foro de São Paulo na condução da política externa brasileira?
Villa – O Foro de São Paulo é um clube da terceira idade. Basta ver as fotos. São senhores em idade provecta, como se dizia antigamente. São provectos também no sentido ideológico. Suas idéias pertencem ao passado. Não creio que tenham uma estratégia revolucionária para a América Latina tal como foi a Internacional Comunista. Durante o período da União Soviética, os partidos comunistas espalhados pelo mundo eram braços da política externa soviética. O Foro de São Paulo não tem esse poder. Sua maior influência se dá pela pessoa de Marco Aurélio Garcia, assessor especial para assuntos internacionais da Presidência da República, que tem grande participação no Foro.

Veja – Qual é a relevância de Marco Aurélio Garcia nas relações externas?
Villa – Desde o início da República, não há registro de um assessor com tanto poder como ele. Garcia aparece nas fotos quase sempre atrás de Lula. Dá pronunciamentos em pé de igualdade com o ministro das Relações Exteriores ou o secretário-geral do Itamaraty. Marco Aurélio Garcia é considerado um grande acadêmico, um gênio, uma referência para qualquer estudo sobre relações internacionais na América Latina. Curioso é que não se conhece nenhuma nota de rodapé que ele tenha escrito sobre o tema. Fui procurar seu currículo na plataforma Lattes, do CNPq. Não há nada sobre ele. Marco Aurélio Garcia é o Pacheco das relações internacionais.

Veja – Quem é o Pacheco?
Villa – É um personagem de Eça de Queiroz que aparece no livro A Correspondência de Fradique Mendes. Pacheco era um sujeito tido como brilhante. No primeiro ano de Coimbra, as pessoas achavam estranho um estudante andar pela universidade carregando grossos volumes. No segundo ano, ele começou a ficar mais calvo e se sentava na primeira carteira. Começaram a achar que ele era muito inteligente, porque fazia uma cara muito pensativa durante as aulas e, vez por outra, folheava os tais volumes. No quarto ano, Portugal todo já sabia que havia um grande talento em Coimbra. Era o Pacheco. Virou deputado, ministro e primeiro-ministro. Quando morreu, a pátria toda chorou. Os jornalistas foram estudar sua biografia e viram que ele não tinha feito nada. Era uma fraude.

Veja – Que conseqüências a política externa do Brasil pode ter no futuro?
Villa – Pela primeira vez na história do país existe a possibilidade de a política externa tornar-se tema de eleição. Seria algo realmente inédito que, para acontecer, só depende de como Chávez vai agir nos próximos anos. As concessões dadas à Bolívia, os diversos acordos com Chávez e a recusa em classificar as Farc como um grupo terrorista estão provocando muita crítica dentro do Brasil e podem juntar-se em um único e potente tema central na próxima campanha presidencial