quinta-feira, outubro 27, 2011

REVENDO A HISTÓRIA ACERCA DO GOLPE DE 1964

Itamar Flávio da Silveira*
“A democracia no Brasil não morreu em 1964 porque a direita deu um golpe. Morreu porque não havia quem a defendesse, de lado nenhum.” (Reinaldo Azevedo).

Todas as vezes que lemos algum texto que aborda nossa história recente, sempre deparamos com a crítica tenaz que se faz da ruptura institucional de 1964, comumente conhecida como Golpe Militar de 1964. Historiadores, sociólogos, entre outros teóricos, atribuem todas nossas mazelas sociais, políticas e econômicas a este evento que teria desviado o Brasil do caminho do desenvolvimento. No entanto, poucos são aqueles que param para refletir se a ação dos militares, do dia 31 de março de 1964, fora um golpe contra a democracia brasileira e seus valores ou se constituiu num contra golpe dado pelos militares naqueles que, em nome da democracia das instituições pretendiam criar as condições para implantar o regime socialista no Brasil.
Durante o curso de graduação em História fui aprendendo uma série de coisas sobre a História do Brasil e me convenci que o Golpe de 1964 fora um ato perpetrado e executado pelos militares com o intuito de destruir a organização sindical dos trabalhadores, destruir as organizações estudantis e imbecilizar a população brasileira, criando as condições políticas adequadas para entregar a pátria brasileira ao imperialismo à custa da miséria e do sofrimento do povo brasileiro. E por alguns anos mantive essas informações como norteadora daquilo que estudava e daquilo que ensinava para colegas e alunos que tive no ensino fundamental e médio. No entanto, um dia comecei a rever meus conceitos e fazer o meu acerto de contas com a história.
Na retomada das leituras sobre o golpe de 1964, e na reflexão sobre o significado daquilo que representava as forças que pegaram em armas para derrubar o regime autoritário, algumas coisas começaram a desencaixar daquele argumento tão harmônico e convincente que estávamos acostumados a ver nos livros de História.
Podemos dizer que os textos que abordam o Golpe militar de 31 de março de 1964 são sempre marcados por atores direta ou indiretamente envolvidos no processo. São sempre obras de militância política partidária de pessoas que viveram o conflito e que, em função das escolhas que fizeram, sofreram as consequencias da implantação do regime militar. Muitos daqueles que participaram da luta armada são tomados como fontes neutras de informação, quando o assunto é a História da ditadura no Brasil.
Nosso propósito, neste artigo, não é desmerecer o que foi produzido pelos autores esquerdistas, queremos apenas dizer que os mesmos apenas expressam a opinião de segmentos políticos que apostaram na implantação de um regime totalitário no Brasil e que, naquele momento, foram os perdedores.

UM PERÍODO POLTICA E IDEOLOGICAMENTE EFERVESCENTE
Não podemos esquecer que no momento em que ocorre o Golpe o Brasil estava vivendo um momento muito perigoso, que, indicava um futuro político turbulento. Ao retomarmos os acontecimentos daqueles dias, observarmos que o Brasil estava numa encruzilhada entre o autoritarismo de direita e totalitarismo de esquerda. Enquanto o primeiro estabeleceria uma ditadura política o segundo, como prova a história de dezenas de países, pretendia transformar o Brasil em uma grade Cuba.
Em 1949, na China, triunfara a revolução comunista liderada por Mao Tse-Tung dando início a uma obscurantista e sangrenta sociedade comunista; em 1959 ocorre a Revolução cubana que, liderada pelos irmãos Castro e Che Guevara, derruba o governo de Fulgencio Batista e instala um regime socialista que fuzila milhares de pessoas e condena a pequena ilha caribenha ao atraso, onde permanece até hoje como um grande museu de carros, construções e ideias. Os comunistas estavam se multiplicando no mundo todo e, inclusive, no Brasil.
O ambiente internacional aumentava a expectativa de que o mundo caminhava necessariamente para o socialismo, internamente muitos formadores de opinião _ jornalistas, políticos e intelectuais _ trabalhavam favoravelmente pela causa da revolução socialista. A situação estava se acirrando e o governo de João Goulart, ao invés de tomar medidas que mantivessem a ordem, trabalhava para jogar mais lenha na fogueira da subversão. Seu mandato durou apenas de setembro de 1961 a 31 de março de 1964. A queda não se explica por uma suposta sede de poder por parte das Forças Armadas, como muitos querem atribuir. Mas se deve a suas próprias escolhas.
Seu flerte com o comunismo já era conhecido. No momento em que ocorre a renúncia de Jânio Quadros João Goulart estava em visita a China comunista por quem não escondia sua simpatia, fato que desagradava a sociedade brasileira que, em sua maioria, era avessa ao comunismo.
Nas Forças Armadas, por motivações ideológicas de esquerda, ocorriam insubordinações quebrando a disciplina e hierarquia, sem que houvesse disposição, do Presidente da República, de aplicar punições exemplares. Crise econômica, descontrole das contas públicas e inflação em alta, contribuíam favoravelmente para a possibilidade do agravamento da situação política.
Em Brasília ocorre a rebelião de sargentos, que reivindicavam o direito de se candidatar a cargos eletivos. No Rio de Janeiro em um grande comício no dia 13 de março com mais de mais de duzentos mil pessoas, o presidente assinou decretos de grande impacto popular, como a nacionalização das refinarias de petróleo privadas e a desapropriação de terras, para a reforma agrária, situadas às margens de ferrovias e rodovias federais. Seis dias depois do comício do Rio foi realizada em São Paulo a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Os manifestantes conclamavam aos militares que salvassem o Brasil do perigo comunista, presente na figura do Presidente Goulart.
A gota que transbordou o copo ocorreu no dia 30 de março quando João Goulart deliberadamente manifestou seu apoio aos marinheiros no Rio de Janeiro. Chegara a hora de conter as ações do Presidente da República. O Alto Comando das Forças Armadas entendeu que a conivência com os atos de insubordinação chegara ao seu limite. Os militares agiam atendendo as reivindicações feitas pelas forças democráticas da sociedade. “A revolução de 1964 não foi o produto de uma campanha ou de uma ideologia política determinada. Foi a reação do povo brasileiro e de suas Forças Armadas contra a tentativa perpetrada por um conjunto comuno-anarquista que visava a levar o país ao caos e atrelá-lo ao grupo de países comandados pelo marxismo”, como afirmou Eugenio Gudin em artigo publicado na impressa em 07 de abril de 1975.
*Professor de História Econômica da Universidade Estadual de Maringá.

segunda-feira, outubro 17, 2011

A Questão do Ensaísmo na Historiografia Brasileira

Claudinei Magno Magre Mendes

RESUMO
Neste texto analisamos a questão do caráter ensaístico da historiografia brasileira. Esta característica marcou a produção historiográfica, basicamente, na primeira metade do século XX. O principal motivo de tratarmos esta questão reside no surgimento de uma nova tendência historiográfica relativa à colonização, denominada Escola do Rio, que crítica, dentre outros aspectos, o caráter ensaístico da historiografia brasileira. Considerando que a crítica expressa o modo como uma nova tendência rompe com a historiografia vigente, resolvemos examinar esta crítica para avaliarmos sua extensão. Nosso pressuposto é que, para se promover a superação de determinada historiografia, é necessário compreendê-la em sua historicidade, ou seja, entender as motivações que levaram historiadores a examinar a história de dada maneira. Evidentemente, a crítica constitui um momento desta superação. Mas, para uma superação radical é necessária a compreensão histórica da historiografia criticada e não apontar seus supostos equívocos, deficiências e falhas. Estes supostos equívocos, deficiências e falhas devem ser vistos como a forma que assume a historiografia em dado momento e não defeitos, sob pena de se promover uma ruptura que não vai, realmente, às raízes da questão.

PALAVRAS-CHAVE: Historiografia Brasileira; Ensaio; Colonização; Escola do Rio.

The question of the essays in brazilian historiography

ABSTRACT
In this paper we analyze the question of character essayistic of Brazilian historiography. This feature marks the historical production, primarily in the first half of the twentieth century. The main reason we deal with this issue is the emergence of a new trend of historiography on thesettlement, called River School, that criticism, among other things, the character essayistic of Brazilian historiography. Whereas the criticism expressed how a new trend breaks with the existing historiography, we decided to examine this critical to assess its extent. Our assumption is that to promote the overcoming of a certain history, it is necessary to understand it in its historicity, that is, understanding the motivations that led historians to examine the history of a given way. Of course, criticism is a moment of transcendence. But for a radical is necessary to overcome historical understanding of historiography and criticism does not point their supposed mistakes, shortcomings and failures. These supposed errors, deficiencies and failures should be viewed as the purest form historiography at one point and not defects, failing to promote a break that will not really matter to the roots.

KEY-WORDS: Brazilian Historiography; Essay; Colonization; Escola do Rio


INTRODUÇÃO

A questão do ensaismo na historiografia brasileira, especialmente a produzida entre os primórdios do século XX até, mais ou menos, a década de 60, constitui um tema importante não apenas para se compreender historicamente esta produção historiográfica como para a sua possível superação. Assinale-se que o caráter ensaístico desta historiografia é mais visível nos textos da primeira metade do século XX. Entretanto, ainda que não mantenham todas as características desta época, os da segunda metade mantêm, ainda, algumas características dos da primeira metade deste século. Este artigo vem a propósito da crítica que os historiadores da Escola do Rio fazem a historiografia vigente, entendendo que aquilo que chamam de caráter ensaístico constitui, se não uma deficiência sua, ao menos uma limitação. Seu objetivo é analisar este caráter ensaístico e examinar o conteúdo da crítica feita pela nova historiografia. A razão disto deriva de que, para nós, esta crítica constitui um caminho para se compreender as novas propostas historiográficas. Com efeito, o modo como se verifica a ruptura com a historiografia vigente, portanto, a crítica que lhe é feita, diz respeito – e muito - ao próprio modo como os novos historiadores se pensam e concebem a história.
Por Escola do Rio, na falta de outro nome, denominamos os historiadores que, a partir da crítica realizada por Ciro Cardoso a Caio Prado e Fernando Novais, desde a década de 70, pelo menos, pertencem a uma nova tendência dentro da historiografia brasileira relativa à colonização. De fato, após as observações feitas por Cardoso aos dois historiadores, nas décadas de 70 e 80, principalmente, apareceram, no decênio seguinte, seus primeiros frutos, particularmente com a publicação dos livros de João Fragoso (1998) e Manolo Florentino (1997), inicialmente teses de doutorado, a primeira orientada pela profa. Maria Yedda Linhares, e a segunda orientada pelo próprio Cardoso. Ainda nos anos 90, e, principalmente, na seguinte, foram publicados diversos livros, geralmente obras coletivas, onde se procurou colocar em prática as novas propostas teóricas e metodológicas para o estudo da época colonial.
É verdade que entre as primeiras críticas feitas por Cardoso e suas propostas de análise da colonização e mesmo os primeiros livros de Fragoso e Florentino e a nova produção historiográfica há diferenças significativas, nem sempre explicitadas. A distinção mais importante refere-se ao campo em que as análises são feitas. Cardoso, para contrapor-se àquilo que denominou de excessiva ênfase no comércio externo, propôs que fossem estudadas as estruturas internas das colônias, únicas capazes de explicar suas distintas trajetórias. Atualmente, a nova tendência ampliou o campo de estudo, valendo-se de dois conceitos que a caracterizam em particular, Império Português e Antigo Regime. Uma breve menção ao fato de a nova tendência historiográfica procurar superar Caio Prado e Cardoso encontra-se na introdução ao livro Na trama das redes. Tratando do livro O Antigo Regime nos trópicos, seus autores observam:

Na época, tal trabalho surgiu com a pretensão de contribuir para as pesquisas de ponta na área de conhecimento então chamada de história colonial brasileira. Na verdade, pretendia-se ultrapassar – sem negar a sua importância – o debate historiográfico que trata da dependência externa versus a excessiva ênfase no caráter único e singular da sociedade colonial-escravista. Para tanto, buscou-se entender a história da América lusa entre os séculos XVI e XVIII, tendo como pano de fundo a dinâmica imperial portuguesa (FRAGOSO e GOUVÊA, 2010, p. 13).

O primeiro conceito, Império português, constitui o novo contexto em que se inserem as novas pesquisas. Com isso, rompe-se com as duas propostas anteriores. Rompe-se, em primeiro lugar, com a historiografia que considerava as questões no interior da relação entre metrópole e colônia. Também ocorre uma ruptura com a proposta de, sem desconsiderar a relação entre metrópole e colônia, incidir a análise nas estruturas internas da colônia, como propôs Cardoso. Desse modo, o espaço imperial é o campo de estudo da nova historiografia brasileira. Importante destacar que não se trata apenas de uma ampliação do contexto da análise, mas de um novo modo de conceber a história. Como salientam os organizadores do livro O Antigo Regime nos trópicos, “(...) trata-se de propor uma nova leitura historiográfica que não se limite a interpretar o ‘Brasil-Colônia’ por meio de suas relações econômicas com a Europa do mercantilismo (...)” (FRAGOSO, BICALHO e GOUVÊA, 2001, p. 21).
Também no prefácio de Nas Rotas do Império, assinado pelos organizadores do livro, encontramos o que se pretende com a utilização do conceito de Império português. Segundo estes autores, este estudo viria em substituição à visão centrada na relação metrópole-colônia.

A utilização sistemática do conceito de império, em substituição a uma visão centrada unicamente na relação metrópole-colônia, pode ser considerada uma das principais transformações da historiografia brasileira nos últimos anos. Não se trata, é claro, do simples reconhecimento da existência de um império português, mas sim de sua incorporação efetiva como um dos mecanismos explicativos da realidade colonial.
O próprio conceito, porém, transformou-se. Longe de ser visto como um todo homogêneo comandado por uma poderosa metrópole, o Império português é hoje percebido como um conjunto heterogêneo de possessões ultramarinas, cuja relação com a metrópole variava não só conforme as conjunturas, mas também de acordo com os variados processos históricos que constituíram essas mesmas possessões.
Tais transformações obrigam o pesquisador a uma apreensão mais complexa do que foi esse “mundo português” (FRAGOSO, FLORENTINO, JUCÁ e CAMPOS, 2006, p. 9. Grifos nossos).

O segundo conceito utilizado pela nova tendência historiográfica, Antigo Regime, tem por objetivo destacar o fato de as relações sociais que se travavam no interior do Império português não eram diretamente econômicas. Antes, estas relações eram mediadas pela política.

Essas conexões comerciais eram, sem dúvida, atravessadas pela política. Os negócios e mercados imperiais eram submetidos às regras do Antigo Regime; leia-se, entre outras coisas, ao complexo sistema de doações e de mercês régias. A expansão e a conquista de novos territórios permitiram à coroa portuguesa atribuir ofícios e cargos civis e militares, conceder privilégios comerciais a indivíduos e grupos, dispor de novos rendimentos com base nos quais se distribuíam pensões. Tais concessões eram o desdobramento de uma cadeia de poder e de redes de hierarquia que se estendiam desde o reino, propiciando a expansão dos interesses metropolitanos, estabelecendo vínculos estratégicos com os colonos (FRAGOSO, BICALHO e GOUVÊA, 2001, p. 23).

Na introdução do livro Na trama das redes, encontramos uma explicitação maior do uso deste conceito: “Desde 2001, a importância de uma dinâmica imperial – resultado da constante interação entre todas as áreas que compunham o império português no período – na formação da sociedade colonial da América portuguesa tem sido enfatizada” (FRAGOSO e GOUVÊA, 2010, p. 15).
Além disso, uma das críticas que os novos historiadores fazem à historiografia então vigente, corporificada em Caio Prado e Fernando Novais, é quanto ao que denominam de caráter ensaístico. Na entrevista de abertura do livro A economia colonial brasileira (séculos XVI-XIX), por exemplo, seus autores afirmam que as pesquisas de base, que se verificaram após a disseminação dos cursos de pós-graduação, iniciada na década de 70, fato que teria levado à efetiva profissionalização dos historiadores, tenderam “(...) a romper com a tradição ensaística da historiografia nacional” (FRAGOSO, FLORENTINO E FARIA, 1998, p. 2). Também na introdução de Na trama das redes, seus organizadores observam que o atual debate em torno do Brasil colonial, “(...) ao contrário de outros no passado, não possui tão somente um caráter ensaísta” (FRAGOSO e GOUVÊA, 2010, p. 17).
Em contraposição ao caráter ensaístico da historiografia brasileira, os novos historiadores assinalam que praticam uma história baseada em uma farta documentação, recolhida em suas pesquisas feitas em arquivos no Brasil e no exterior. Há mesmo, nos textos dos historiadores da Escola do Rio, uma insistência em afirmar que suas interpretações encontram-se respaldadas em uma longa e minuciosa investigação arquivística, documental. Por se tratar de pesquisas fundadas em farta documentação, ela não possuiria caráter generalizante, uma das características, assinaladas por estes novos historiadores, da historiografia praticada até, mais ou menos, a década de 60. Na introdução já mencionada de Na trama das redes, na sequência da passagem acima citada, encontramos a seguinte afirmação: “A profissionalização do ofício de historiador fez com que os argumentos e as teses interpretativas estejam mais fundamentados em sólidas pesquisas, empreendidas em diversos arquivos e por meio de diferentes fontes. Além disso, há tempos o historiador dispõe de uma miríade de técnicas e métodos de pesquisa” (FRAGOSO e GOUVÊA, 2010, p. 17).
É verdade que os novos historiadores não se preocuparam em definir seu entendimento de ensaio ou caráter ensaístico da historiografia brasileira. Todavia, por oposição, levando-se em conta a caracterização que fazem da sua prática historiográfica, isto é, os aspectos que definiriam ou caracterizariam a nova historiografia, é possível alcançar uma definição aproximada do que entendem por ensaio ou caráter ensaístico.
A primeira característica, já tratada anteriormente, é o fato de a nova prática historiográfica basear-se em uma ampla base documental, fato que a historiografia até então vigente não fazia. Segundo os novos historiadores, a partir de uma documentação limitada, muitas vezes sem pesquisa em arquivos, no Brasil e no exterior, se fazia ilações generalizantes. A nova historiografia, além de uma pesquisa documental vasta, justamente por se preocupar em fundar-se em documentos, extrai conclusões locais, evitando lhes dar um caráter nacional. Assim, à visão generalizante e nacional, ela contrapõe a concepção que possui um valor local.
A segunda característica, também tratada anteriormente, diz respeito ao campo de estudo. A historiografia vigente considerava seu objeto de análise no interior da relação metrópole-colônia, ao passo que a nova historiografia considera-o no interior do Império português. Mercadorias e homens circularam por todo Império e, por conseguinte, seria impossível compreender o Brasil-colônia no estreito vínculo dele com a metrópole.
Consideremos, pois, o caráter ensaístico da historiografia brasileira.

O ENSAISMO NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

Desde as primeiras décadas do século XX e até, pelo menos, a década de 60, de um modo geral, os estudos sobre a época colonial tinham entre suas principais características não limitar a análise a este período histórico. Antes, caracterizam-se por serem estudos que buscam compreender a história do Brasil em seu conjunto. Mais do que isto, eram interpretações cujo objetivo maior era explicar o Brasil da época dos seus autores. Em suma, entendiam que o presente era explicado pelo passado.
Por conseguinte, de acordo com estes autores, era preciso fazer a análise da época colonial para se compreender o Brasil da sua época. Alguns historiadores consideravam mesmo que era necessário ir além, abarcando a própria história de Portugal. Para estes, para se entender o Brasil era preciso estudar as instituições portuguesas que haviam sido transplantadas para o solo brasileiro. Todavia, independentemente disso, todos os historiadores concordavam que era o modo como havíamos nos constituído enquanto colônia que explicava nosso presente.
É verdade que cada um desses historiadores tinha um entendimento particular de colônia e de colonização, interpretando o período colonial de determinada maneira. Mas, para todos eles, encontra-se neste período a chave para explicar as vicissitudes do Brasil contemporâneo. Não é casual, portanto, que seus livros tenham, geralmente, no título, algo que indicasse isto, como Formação, Raízes, etc. É o caso de Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Júnior, Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), e Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado (1920-2004). Antes dessas obras, em 1911, Oliveira Lima (1867-1928) já havia publicado Formação histórica da nacionalidade brasileira. Nelson Werneck Sodré (1911-1999), por sua vez, publicou, em 1944, Formação da sociedade brasileira e, em 1962, Formação histórica do Brasil.
Quando estes vocábulos não aparecem no título, encontram-se, ao menos, no subtítulo. Assim, temos obras como: Casa-grande & senzala. Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal (1933), de Gilberto Freyre (1907-1987) e Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro (1958), de Raymundo Faoro (1925-2003).
Mesmo quando não se encontram no título ou subtítulo do livro, estes vocábulos aparecem nos títulos dos capítulos. Como exemplo, podemos citar Populações Meridionais do Brasil (1920), de Oliveira Vianna (1883-1951).
Mas, ainda que estes vocábulos não apareçam em nenhum destes lugares, o pressuposto dos autores é que a explicação para o Brasil no presente residiria no seu passado colonial. Dentre essas obras, podemos citar História econômica do Brasil (1937), de Roberto Simonsen (1889-1948).
Além desta característica, havia outra que, de um modo geral, singularizava estes livros: é que menos do que histórias, eram ensaios, na medida em que pretendiam assinalar as características peculiares da história do Brasil e suas tendências com relação ao futuro. Consideremos, pois, as características do ensaio, contrapondo-o aos livros de história, praticado pela historiografia brasileira.

DISTINÇÃO ENTRE ENSAIO E HISTÓRIA

Entre o ensaio e o livro de história existem, com efeito, diferenças fundamentais, ainda que ambos tenham por objeto o processo histórico. O ensaio pretende explicar a história em seu conjunto, assinalando suas características principais, sem se deter em seus aspectos particulares ou nos seus diferentes momentos. No caso dos ensaios relativos ao processo histórico brasileiro, o pressuposto é que o passado colonial constitui sua chave explicativa. É verdade que este passado é concebido de diferentes maneiras pelos autores, fato que conduz cada um interpretar a história do Brasil de modo distinto. Mas, independentemente disso, para seus autores, o presente se explicaria pelo passado - a época colonial explicaria o Brasil contemporâneo. Em Formação, Caio Prado afirma que a “(...) interpretação do Brasil de hoje (...)” era o que realmente interessava (PRADO JR., 1942, p. 9).
Muitas vezes, no entanto, o ensaio abarca não apenas o passado e o presente, mas o próprio futuro. Nesses casos, com base na linha de desenvolvimento do passado e do presente, seus autores procuram apontar as tendências da história com relação ao futuro.
Ao contrário do ensaio, o livro de história propriamente dito pretende narrar ou descrever um determinado processo histórico verificado no passado. É verdade que, em alguns destes livros, a análise pode chegar até o presente. No entanto, a história é apresentada de maneira cronológica, acompanhando-se, passo a passo, o processo histórico. Somente ao final do livro é que se tem uma visão abrangente da história.
No ensaio, por seu turno, por meio de um golpe de vista, procura-se assinalar as características gerais da história de determinado país, oferecendo ao leitor uma visão de conjunto dela. Para tanto, o ensaio está organizado em torno de uma tese que seu autor busca demonstrar e que, geralmente, ele a anuncia logo no início do seu texto.
O livro de história fica preso aos fatos na medida em que considera o processo histórico em sua cronologia. O ensaio, por sua vez, é mais livre. É verdade que ambos se baseiam em documentos e textos. Mas, o livro de história precisa citar os fatos e acontecimentos, mantendo-se rente a eles, ao passo que no ensaio estes são mencionados em poucas oportunidades, apenas para comprovar determinadas afirmações de caráter mais geral e teórico. Sob este aspecto, o ensaio comporta uma interpretação mais geral dos fatos, não se detendo nas particularidades e nos episódios singulares.
Deste modo, podemos afirmar que, enquanto o livro de história constitui uma interpretação do passado fundada nos fatos e acontecimentos, o ensaio busca descrever as tendências gerais da história. Como assinalam muitos dos autores de um ensaio, busca-se, principalmente, expor nele a linha mestra ou o fio condutor do processo histórico. Em suma, no ensaio se formula uma filosofia da história.
Assim, enquanto a história se preocupa, geralmente, mais com o passado, o ensaio, ainda que também se ocupe dele, tem os olhos postos no presente e no futuro. Na verdade, faz um enlace entre passado, presente e futuro. Este enlace constitui, inclusive, uma das principais características da ensaística da primeira metade do século XX. Em suma, são obras que abarcam o conjunto da história do Brasil, formulando uma interpretação geral dela.
Em seu livro Formação da sociedade brasileira, Sodré deixa patente o que pretendia ao escrever um ensaio: “Escrevendo esta Formação da Sociedade Brasileira não tive outra intenção que a de oferecer ao leitor comum, dentro das possibilidades de um levantamento tão sumário, uma visão de conjunto de como viveu nosso povo, até os dias que precederam a crise de 1929” (SODRÉ, 1944, p. 5).
O ensaio, nos moldes em que foi praticado em relação à história do Brasil, divide-se, geralmente, em três partes. A primeira parte compreende o estudo passado, isto é, da colonização do Brasil, momento em que são lançados os fundamentos da história do Brasil. Como salientamos, a maneira como se caracteriza a colonização constitui a base sobre a qual se ergue a interpretação da história do Brasil em seu conjunto. Em outras palavras, é a sua pedra de toque.
A segunda parte examina o presente, a época do autor, explicado, fundamentalmente, pelo passado colonial. Os problemas do presente e que deveriam ser solucionados são considerados heranças do passado, isto é, apesar das mudanças verificadas ao longo da história, os problemas criados no passado ainda persistiriam.
Por fim, a terceira parte trata do futuro, que se desenha a partir da solução dos problemas do presente. Muitas vezes, é verdade, esta parte se encontra subentendida. É o caso de Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado. Pelo título, percebe-se que seu objetivo era expor como o Brasil contemporâneo, ou seja, o Brasil da sua época, havia se formado ou constituído. Em função disso, o autor estudou a colonização e o que ela produziu ao longo de três séculos.
Assinalou, em seguida, que, durante o período compreendido entre a Independência e a data da publicação do livro, o Brasil havia se modificado. Em virtude disso, assim definiu o Brasil contemporâneo: “O Brasil contemporâneo se define assim: o passado colonial que se balanceia e encerra com o século XVIII, mais as transformações que se sucederam no decorrer do centênio anterior a este e no atual” (PRADO JR., 1942, p. 6). Além disso, advertiu o autor que se tratava de um processo não concluído. O futuro era, por conseguinte, a conclusão desse processo: “Mas este novo processo histórico se dilata, se arrasta até hoje. E ainda não chegou a seu termo” (PRADO JR., 1942, p. 6).
Acreditamos que um dos autores mais expressivos para se entender o caráter ensaístico da produção historiográfica brasileira seja Caio Prado, motivo pelo qual examinaremos, de maneira comparativa, duas das suas principais obras, Evolução política do Brasil e Formação do Brasil contemporâneo.

A QUESTÃO DO ENSAIO EM CAIO PRADO JR.

Em 1942, Caio Prado Júnior publicou Formação do Brasil contemporâneo, considerado por muitos historiadores e estudiosos seu livro mais importante. Nele expôs, pela primeira vez, com todos os seus elementos, a interpretação da história do Brasil que o consagrou e que nunca alterou ou abandonou em seus fundamentos. Antes, reafirmou-a nos livros e textos seguintes, fazendo da mesma a perspectiva com que examinou o processo histórico brasileiro em seus diferentes momentos.
Ainda que seja considerado um livro dedicado à época colonial, Caio Prado não se restringiu a ela. É verdade que, em sua quase totalidade, o livro diz respeito ao período colonial. Não é por casualidade que tenha por subtítulo “Colônia”. Mas, apesar disto, ele não estava interessado direta e unicamente na época colonial. Analisou-a tendo por pressuposto que ela constituía a base da formação do Brasil contemporâneo. Isto significa que entendia o período colonial como a chave para se compreender o Brasil da sua época. Em decorrência disso, ainda que em traços bastante rápidos, formulou uma espécie de teoria da história do Brasil, isto é, elaborou uma interpretação do conjunto do processo histórico brasileiro, que abrangia desde os inícios da colonização até a época contemporânea. Esta teoria encontra-se expressa, como veremos posteriormente em maiores detalhes, no postulado de que a história do Brasil possuía uma linha mestra – portanto, que a explicava - que se configurava na transição de uma economia colonial a uma economia nacional.
A historiografia brasileira não levou em conta este aspecto de Formação. Prendeu-se apenas à formulação de Caio Prado acerca da colonização, fazendo dele uma espécie de historiador da época colonial. Com isso, a historiografia isolou esta formulação, desvinculando-a do fato de que ela faz parte de uma questão maior, que é a própria interpretação da história do Brasil em seu conjunto. Nada mais incorreto do que transformar Caio Prado em uma espécie de historiador da colonização. A rigor, seu entendimento de colonização somente ganha significado se considerado como parte da sua interpretação da história do Brasil em seu conjunto, na medida mesmo em que esta é uma espécie de desdobramento e conseqüência desse entendimento.
Exatamente por conter uma teoria da história do Brasil, o livro Formação deve ser considerado um ensaio e não um livro de história. É verdade que muitos estudiosos, baseando-se inclusive no próprio autor, caracterizaram Formação como um livro de história, ao passo que Evolução política do Brasil, obra de 1933, é considerada um ensaio. O próprio autor dá ensejo a essa caracterização ao definir, no prefácio de Evolução, a obra como um “simples ensaio”, entendendo por isto uma “síntese da evolução política do Brasil”. Para elaborar esta síntese, como indicou Caio Prado, escolheu, dentre os inúmeros fatos que comporiam a história do Brasil, a resultante média deles, “a linha mestre em torno de que se agrupa[ria]m estes fatos”. Alertou, inclusive, para os inconvenientes desse procedimento, destacando que eles não existiriam caso “se tratasse de uma história e não de uma síntese” (PRADO JR., 1933, p. 7). Assim, Caio Prado caracterizou Evolução como uma síntese, na qual procurou apresentar apenas os elementos essenciais que permitiriam ao leitor compreender o processo histórico brasileiro, desde a colonização até a proclamação da República. A nosso ver, no entanto, Evolução seria antes interpretação da história do Brasil dada em seus traços mais gerais, uma espécie de síntese da história do Brasil do que propriamente um ensaio.
Uma comparação entre Evolução e Formação deixa isto claro. Em Evolução, Caio Prado analisa o processo histórico. Divide, por exemplo, a época colonial em duas fases. Na primeira, que vai dos primórdios da colonização até a segunda metade do século XVII, em que entre os interesses coloniais e metropolitanos havia uma concordância e os grandes proprietários de terra dominavam econômica e politicamente. A partir de então, verifica-se uma diferenciação de interesses, com a ascensão dos comerciantes, que se tornam a classe dominante tanto econômica quanto politicamente. Em Formação, ainda que seja um livro dedicado inteiramente à época colonial, ao contrário de Evolução, cuja primeira edição vai até a proclamação da República, a economia e sociedade são analisadas em seus aspectos gerais, sem considerar o processo histórico em suas particularidades. Aliás, como destaca o autor, ele centra sua análise no período compreendido entre finais do século XVIII e início do XIX. Trata-se, do seu ponto de vista, de um momento privilegiado, pois, a um só tempo, permite olhar para o passado e ver o que foi a colonização, de um lado, e, de outro, permite olhar para o processo que tem início naquele momento e que ainda se desenrolaria à época da publicação deste livro.
Consideremos agora, pois, Formação, para entender as razões pelas quais entendemos tratar-se de um ensaio.
Para Caio Prado, a colonização se caracterizava por ser uma produção voltada para o mercado externo. Segundo ele, esta característica ainda predominava em sua época, estando na base dos problemas que os brasileiros então enfrentavam. Esses problemas eram, portanto, aqueles que derivavam da maneira como a colonização do Brasil havia se processado, cujos caracteres ainda estavam presentes na economia brasileira do século XX. De seu ponto de vista, a grande questão política era superar o caráter colonial da economia brasileira por meio do estabelecimento de uma economia nacional, processo que estaria em andamento: “Numa palavra, não completamos ainda hoje a nossa evolução da economia colonial para a nacional” (PRADO JR., 1942, p. 7). Ele próprio caracteriza este processo como “linha mestra” do processo histórico.
O estabelecimento da economia nacional constituía, portanto, uma tendência que vinha se desenvolvendo desde o início do século XIX, mas que somente em meados do XX se colocara como uma questão passível de solução. Estávamos, em sua opinião, à época da publicação de Formação, atravessando a última etapa da transição da economia colonial para a economia nacional, processo que exigia uma intervenção política para se completar. Desse modo, a economia nacional seria o futuro do Brasil.
Devemos, antes de tudo, atentar para um fato importante. Podemos supor que a forma como a colonização é compreendida determina uma explicação do presente. Entretanto, ainda que nestes ensaios a questão apareça desta maneira, é o oposto que, de fato, ocorre. Não é a interpretação do passado que condiciona o modo de conceber o presente. Antes, é o posicionamento político dos autores diante das questões da sua época, portanto, do presente, que os leva a conceber o passado, em nosso caso, a colonização, de determinada maneira. Desse modo, é a “solução” que os historiadores davam às questões do presente que os levava a considerar o passado de determinada maneira. Como bem observou o historiador francês François Guizot (2008, p. 56), o passado muda com o presente. Pretendia com isso assinalar que, de acordo com as questões do presente, o passado é encarado de determinada maneira. É o historiador, homem do seu tempo, com suas opções políticas, com sua visão de mundo, que, munido de questões colocadas por sua época, se volta para o passado e o analisa.
Duas constatações devem ser feitas. Primeiro: alterando-se as questões do presente, surgindo outras, o modo de compreender o passado também se altera. Segundo: cada autor, colocando-se diante das questões do seu tempo de uma maneira determinada, considera, necessariamente, o passado de um modo próprio, em consonância com seu posicionamento político. Daí deriva o fato de, em uma mesma época, verificarmos várias concepções distintas do passado colonial.
Entretanto, independentemente do modo como estes autores se posicionaram diante das questões de sua época e, por conseqüência, interpretaram a época colonial de determinada maneira, eles possuem algo que lhes é comum. É exatamente este ponto em comum que os leva a elaborarem seus livros na forma de ensaio. Caio Prado não foge à regra.

O ENSAIO COMO POSICIONAMENTO POLÍTICO

Os autores do século XX até os anos 60, mais ou menos, com ênfase nos da primeira metade dessa centúria, tinham em comum enfrentar uma questão fundamental da sua época: o socialismo como uma alternativa ao capitalismo e o marxismo como doutrina política. Posicionaram-se contrários a eles, ainda que muitos se colocassem na condição de socialistas, comunistas ou marxistas. Esta oposição foi feita de forma explícita ou implícita, de maneira direta ou indireta.
A oposição ao socialismo e ao marxismo foi feita por meio de textos cuja questão central era combatê-los. Sob este aspecto, o ensaio constituiu a forma adequada para alcançar este objetivo. Com efeito, diante da formulação que apontava o socialismo como o futuro da sociedade, isto é, como a forma de superação do capitalismo, os autores precisavam defender a tese de que a história do Brasil não caminhava em direção ao socialismo. Fizeram isso de diferentes maneiras. Mas, qualquer que fosse ela, os autores tinham que elaborar uma apreciação geral da história do Brasil - ou uma interpretação dela – que abarcasse passado, presente e futuro, com o objetivo de negar a tendência para o socialismo. Ou, ao menos, protelá-lo para um futuro distante, insistindo na necessidade de se atravessar algumas etapas intermediárias. Os teóricos do Partido Comunista e Caio Prado, por exemplo, representam muito bem esta tendência. Para o Partido, era necessária uma revolução democrático-burguesa, liberar o capitalismo dos entraves feudais ou semi-feudais, por meio de uma reforma agrária, para então, tendo o capitalismo se desenvolvido, lutar pelo socialismo. Para Caio Prado, a tarefa política da atualidade era lutar para estabelecer a economia nacional, completando a transformação que se desenrolava desde primórdios do século XIX.
O principal argumento desses autores eram as particularidades da história brasileira. Dito de outra maneira, eles afirmavam que as formulações que serviam para a Europa não eram adequadas ao Brasil justamente pelo fato deste possuir uma história que se diferenciava completamente da européia. De certa maneira, trata-se de argumento perfeitamente válido. Com efeito, a história de cada país tem suas particularidades, que a distingue dos demais. No entanto, ele apenas servia para justificar uma interpretação da história que, sob o pretexto de fundar-se nessas particularidades, introduz uma visão que se opõe frontalmente a qualquer mudança ou, no mais das vezes, fundamenta uma concepção reformista ou etapista da história. Neste caso, não se nega o diretamente socialismo, mas afirma-se que o mesmo era algo ao que se chegaria num futuro não muito próximo. Mas, antes, era preciso percorrer algumas etapas ou proceder algumas reformas na sociedade.
A forma ensaística da historiografia brasileira deriva, assim, de um posicionamento político por parte dos historiadores. Ela é, assim, a forma própria dessa posição política contrária ao socialismo e ao marxismo. É, sob este aspecto, a forma própria de expressar este posicionamento político. Consideremos o caso de Caio Prado para melhor ilustrar isto.
Caio Prado Jr. elaborou um ensaio justamente com o objetivo de oferecer uma interpretação da história brasileira que se contrapusesse à formulação de que o socialismo constituiria o futuro do país, ao menos o futuro imediato. Daí produzir uma interpretação da história do Brasil que postulava que o traço distintivo do processo histórico brasileiro era a constituição de uma economia nacional. Economia colonial/produção voltada para o mercado externo e economia nacional/produção voltada para o mercado interno eram os dois pólos entre os quais se moveria a história do Brasil. Como ele destacou, a transformação da economia colonial em economia nacional era o fio condutor ou a linha mestra da história do Brasil.
A conseqüência desta formulação era de que, nas condições existentes no Brasil, a proposta de socialismo era prematura. Caio Prado afirmou isto em algumas poucas oportunidades, é verdade, mas o suficiente para que se perceba que isto se encontrava no centro das suas formulações. É verdade, por outro lado, que, se este autor não afirmou isto aberta e explicitamente com freqüência, na prática o fez, ao indicar que a evolução histórica do Brasil, as transformações por que passava, o conduzia em direção ao estabelecimento de uma economia nacional. Para ele, a tarefa política dos brasileiros era lutar para que este processo se completasse.
Caio Prado explicitou em Diretrizes a essência da sua obra, ao afirmar:

Supor por exemplo que seja possível no Brasil e nas circunstâncias atuais um regime socialista com a entrega a órgãos estatais da responsabilidade pela direção e manejamento total das forças produtivas do país, é se não fantasia de visionário, certamente maneira disfarçada de entravar as reformas que desde já se impõe e que não precisam aguardar um socialismo ainda irrealizável (PRADO JR., 1954, p. 235-236).

Um pouco mais adiante: “Essas forças não são ainda ou não são sobretudo as do socialismo que começa apenas a esboçar-se entre nós e precisará aguardar ainda, para amadurecer, um largo processo das forças produtivas que não será possível sem a preliminar destruição do sistema colonial” (PRADO JR., 1954, p. 236). Como se pode observar, nos trechos acima encontramos duas questões anteriormente assinaladas. Primeiro, a oposição ao socialismo, considerando uma proposta prematura nas condições do Brasil. Segundo, esta oposição não é frontal, mas a posterga para o futuro. Antes, é preciso superar certas etapas para, então, lutar-se pelo socialismo.
Por fim, anteriormente assinalamos que o caráter ensaístico da historiografia brasileira aparece com mais intensidade na primeira metade do século XX. Com efeito, aos poucos, este caráter ensaístico perde força. Isto aparece claramente no livro Formação histórica do Brasil, de Sodré, do início da década de 60. Sodré acompanha, em linhas gerais, o processo histórico brasileiro, tratando dos seus temas maiores. No entanto, ele guarda uma característica dos ensaios propriamente. Pretende, indicando as particularidades da história brasileira, indicar que existiriam etapas a serem transpostas antes de se colocar a questão do socialismo (SODRÉ, 1967).

CONCLUSÃO

Ao longo do texto procuramos chamar a atenção para o fato de os historiadores brasileiros do século XX, até, mais ou menos, a década de 60, optaram pelo ensaio, de um modo geral, em função do objetivo político que tinham em mente. Sob este aspecto, tinham uma tese a defender.
O ensaio pressupõe uma tese, em torno da qual se elabora a interpretação da história do Brasil. Menos do que fazer uma interpretação da história do Brasil com base em documentos, os historiadores tinham uma tese a defender: de que a história do Brasil não caminhava na direção do socialismo ou que o socialismo não constituía uma alternativa válida para as condições do país. Era preciso demonstrar que nossa história possuía determinadas características que a afastavam do modelo proposto por aqueles que defendiam a solução socialista.
Iniciamos o texto indicando que ele havia sido motivado pela crítica feita pela Escola do Rio à historiografia brasileira. Chamamos a atenção, também, para o fato de que estava em questão a superação desta historiografia. Pretendem esta escola superar a historiografia vigente contrapondo-lhe estudos fundados em uma ampla e farta documentação, sem fazer generalizações e, principalmente, assinalando que, em função da organização da pós-graduação, verificou-se a profissionalização dos historiadores, com métodos e fundamentação teórica que superaria o “amadorismo” que até então dominaria na prática historiográfica. Os novos historiadores não afirmam explicitamente isto, mas o fazem implicitamente ao destacarem a profissionalização do historiador com a disseminação dos cursos de pós-graduação.
Esta crítica, em última análise, despolitiza a questão, trazendo o debate para o campo acadêmico. De nosso ponto de vista, no entanto, a superação da historiografia até então dominante somente pode ser feita em decorrência da compreensão do papel político que ela desempenhou ao longo do século XX.
Por fim, a lamentação de que os historiadores atuais são menos afeitos aos ensaios macrointerpretativos, preferindo-se as monografias técnicas, pontuais e específicas apenas revela uma incompreensão do papel político desempenhado pela historiografia brasileira de grande parte do século XX. Derrotado o socialismo, a historiografia brasileira não precisa manter seu caráter ensaístico.

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