sexta-feira, abril 20, 2007
MATEMÁTICA AGRÁRIA
O ESTADO DE SÃO PAULO, 16/04/07.
MATEMÁTICA AGRÁRIA
Por Xico Graziano
"Começo a ter vergonha de ser brasileira". Assim a fazendeira Maria Lúcia finaliza sua dramática mensagem, inconformada com a desapropriação de sua propriedade rural. Não é para menos. Perdeu o direito à terra querida por ter preservado um pedaço da floresta atlântica. A virtude se transforma em pesadelo.
Localizada no município de Selvíria, MS, a fazenda foi vistoriada em abril de 2006 pelo Incra. Sua boa condição produtiva resultou num grau de eficiência na exploração, apelidado GEE, de 135%, superior ao índice exigido, de 100%. É simples entender. O governo estipula índices de produtividade mínimos, para serem alcançados pelos produtores rurais. Se estiverem abaixo deles, são classificados como ineficientes, caindo na malha da reforma. Não era o caso.
Existe, porém, outro cálculo. Trata-se do grau de utilização da terra, chamado GUT. Nessa conta, os técnicos medem quanto da área disponível do imóvel rural está sendo explorada. A lei exige, no mínimo, 80% de exploração agropecuária sobre a área total. Menos que isso, vai para a reforma agrária.
Aqui residiu o problema da fazenda em Selviria. O grau de utilização da propriedade atingiu 68%, abaixo do requerido. Acabou classificada pela matemática agrária como "grande propriedade improdutiva". Será mesmo um latifúndio?
Longe disso. A fazenda é exemplar. Acontece que a avaliação não considerou efetiva a reserva florestal da propriedade. Conforme escrito no próprio laudo oficial de vistoria, a mata virgem de fato existe, facilmente comprovada ao simples olhar. Um tributo à biodiversidade.
Mas não valeu. O governo resolveu desconsiderar a área mantida com floresta. Valeu-se do argumento de que ela, a reserva florestal, não estava averbada, quer dizer, escriturada, no cartório de notas. Numa manobra de caneta, a gleba natural, moradia de bichos, foi incluída no cálculo do GUT como "área aproveitável não utilizada". Quer dizer, virou terra ociosa.
Nesses termos, a fazenda acabou declarada improdutiva. Sua reserva florestal foi menosprezada, simplesmente porque, repita-se, embora real, não constava no papel da escritura, gravada, como o governo quer, com clausura de perpetuidade. A realidade sucumbiu à teoria agrarista.
Acompanhar as palavras da proprietária permite entender o equívoco histórico da reforma agrária brasileira: "estou entre aquelas pessoas que vêm sentindo na pele a fúria arrecadatória de terras pelo Incra". Foi à luta: "por não concordar com essa alegação, e mais ainda, por não pretender perder a minha propriedade para o Incra, especialmente baseado num argumento como esse, fomos (eu e meu marido) pessoalmente à sede do Instituto, em Campo Grande, na expectativa de que pudéssemos reverter tal quadro, uma vez que a reserva florestal existia de fato".
Continua a missivista: "os engenheiros vistoriadores nos aconselharam a ir ao cartório e fazer a averbação da reserva legal, o que foi feito. Porém, qual não foi a nossa surpresa quando, na análise do recurso, o Incra argumentou que o ato formal não poderia ser, infelizmente, considerado, porque foi realizado em data posterior à vistoria". Ora bolas, um logro.
"Fizemos um recurso, ajuntando laudo de engenheiros por nós contratados e que avaliaram a mata existente em nossa propriedade como Floresta Estacional Decidual e Semi-decidual, portanto, um tipo de bioma componente da Mata Atlântica! Mantemos a mata não porque há uma imposição legal, mas porque somos preservacionistas. Entendemos que a propriedade rural é um pontinho dentro do Planeta Terra". Nada adiantou espernear.
Não é de hoje que estudiosos da questão agrária apontam a influência danosa da desapropriação de terras no desmatamento. Propriedades contendo remanescentes nativos do centro-sul foram sistematicamente invadidas por sem-terras, contando com a conivência do poder público. Mata continua sinônimo de terra improdutiva.
Insuspeito relatório do Imazon, Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, comprova que 15% do desmatamento daquela região vêm da reforma agrária. Cerca de 106 mil quilômetros quadrados, 49% da área dos assentamentos mapeados, foram desmatados até 2004. Desde então, a situação somente piorou.
Pertence à ideologia a origem dessa peçonha fundiária. A esquerda tradicional, ao historicamente combater o latifúndio, estimula a derrubada da floresta. A idéia produtivista ganhou forma jurídica no Estatuto da Terra, em 1964. Terra com mata virgem passou a significar coisa de especulador. A ordem era derrubar tudo, em nome do progresso no campo.
Naquela época, quando nem se falava em ecologia, fazia sentido. Hoje, com o aquecimento global batendo às portas, novos conceitos se impõem. Definitivamente, floresta virgem não pode ser sinônimo de ociosidade. Produtores rurais preservacionistas, raros, deveriam ser homenageados, ao invés de desapropriados.
"Hoje (22 de março) saiu o Decreto de desapropriação de minha propriedade rural. Dói ler. Temos ela há mais de 30 anos. É o sustento de nossa família. Dela saiu a educação dos nossos filhos e é dela que vivemos. Custa-me crer que para esse governo, a minha propriedade seja improdutiva, apesar de gerar empregos, utilizar adequadamente o solo e preservar o meio ambiente. Agora só nos resta a via judicial. Lamentavelmente, vamos gastar o que não dispomos no momento".
Dificilmente o Tribunal lhe dará ganho de causa. Sorte dos sem-terra. Azar dos com-floresta.
Xico Graziano, agrônomo, é secretário do Meio Ambiente
do Estado de São Paulo. E-mail: xico@xicograziano.com.br
MATEMÁTICA AGRÁRIA
Por Xico Graziano
"Começo a ter vergonha de ser brasileira". Assim a fazendeira Maria Lúcia finaliza sua dramática mensagem, inconformada com a desapropriação de sua propriedade rural. Não é para menos. Perdeu o direito à terra querida por ter preservado um pedaço da floresta atlântica. A virtude se transforma em pesadelo.
Localizada no município de Selvíria, MS, a fazenda foi vistoriada em abril de 2006 pelo Incra. Sua boa condição produtiva resultou num grau de eficiência na exploração, apelidado GEE, de 135%, superior ao índice exigido, de 100%. É simples entender. O governo estipula índices de produtividade mínimos, para serem alcançados pelos produtores rurais. Se estiverem abaixo deles, são classificados como ineficientes, caindo na malha da reforma. Não era o caso.
Existe, porém, outro cálculo. Trata-se do grau de utilização da terra, chamado GUT. Nessa conta, os técnicos medem quanto da área disponível do imóvel rural está sendo explorada. A lei exige, no mínimo, 80% de exploração agropecuária sobre a área total. Menos que isso, vai para a reforma agrária.
Aqui residiu o problema da fazenda em Selviria. O grau de utilização da propriedade atingiu 68%, abaixo do requerido. Acabou classificada pela matemática agrária como "grande propriedade improdutiva". Será mesmo um latifúndio?
Longe disso. A fazenda é exemplar. Acontece que a avaliação não considerou efetiva a reserva florestal da propriedade. Conforme escrito no próprio laudo oficial de vistoria, a mata virgem de fato existe, facilmente comprovada ao simples olhar. Um tributo à biodiversidade.
Mas não valeu. O governo resolveu desconsiderar a área mantida com floresta. Valeu-se do argumento de que ela, a reserva florestal, não estava averbada, quer dizer, escriturada, no cartório de notas. Numa manobra de caneta, a gleba natural, moradia de bichos, foi incluída no cálculo do GUT como "área aproveitável não utilizada". Quer dizer, virou terra ociosa.
Nesses termos, a fazenda acabou declarada improdutiva. Sua reserva florestal foi menosprezada, simplesmente porque, repita-se, embora real, não constava no papel da escritura, gravada, como o governo quer, com clausura de perpetuidade. A realidade sucumbiu à teoria agrarista.
Acompanhar as palavras da proprietária permite entender o equívoco histórico da reforma agrária brasileira: "estou entre aquelas pessoas que vêm sentindo na pele a fúria arrecadatória de terras pelo Incra". Foi à luta: "por não concordar com essa alegação, e mais ainda, por não pretender perder a minha propriedade para o Incra, especialmente baseado num argumento como esse, fomos (eu e meu marido) pessoalmente à sede do Instituto, em Campo Grande, na expectativa de que pudéssemos reverter tal quadro, uma vez que a reserva florestal existia de fato".
Continua a missivista: "os engenheiros vistoriadores nos aconselharam a ir ao cartório e fazer a averbação da reserva legal, o que foi feito. Porém, qual não foi a nossa surpresa quando, na análise do recurso, o Incra argumentou que o ato formal não poderia ser, infelizmente, considerado, porque foi realizado em data posterior à vistoria". Ora bolas, um logro.
"Fizemos um recurso, ajuntando laudo de engenheiros por nós contratados e que avaliaram a mata existente em nossa propriedade como Floresta Estacional Decidual e Semi-decidual, portanto, um tipo de bioma componente da Mata Atlântica! Mantemos a mata não porque há uma imposição legal, mas porque somos preservacionistas. Entendemos que a propriedade rural é um pontinho dentro do Planeta Terra". Nada adiantou espernear.
Não é de hoje que estudiosos da questão agrária apontam a influência danosa da desapropriação de terras no desmatamento. Propriedades contendo remanescentes nativos do centro-sul foram sistematicamente invadidas por sem-terras, contando com a conivência do poder público. Mata continua sinônimo de terra improdutiva.
Insuspeito relatório do Imazon, Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, comprova que 15% do desmatamento daquela região vêm da reforma agrária. Cerca de 106 mil quilômetros quadrados, 49% da área dos assentamentos mapeados, foram desmatados até 2004. Desde então, a situação somente piorou.
Pertence à ideologia a origem dessa peçonha fundiária. A esquerda tradicional, ao historicamente combater o latifúndio, estimula a derrubada da floresta. A idéia produtivista ganhou forma jurídica no Estatuto da Terra, em 1964. Terra com mata virgem passou a significar coisa de especulador. A ordem era derrubar tudo, em nome do progresso no campo.
Naquela época, quando nem se falava em ecologia, fazia sentido. Hoje, com o aquecimento global batendo às portas, novos conceitos se impõem. Definitivamente, floresta virgem não pode ser sinônimo de ociosidade. Produtores rurais preservacionistas, raros, deveriam ser homenageados, ao invés de desapropriados.
"Hoje (22 de março) saiu o Decreto de desapropriação de minha propriedade rural. Dói ler. Temos ela há mais de 30 anos. É o sustento de nossa família. Dela saiu a educação dos nossos filhos e é dela que vivemos. Custa-me crer que para esse governo, a minha propriedade seja improdutiva, apesar de gerar empregos, utilizar adequadamente o solo e preservar o meio ambiente. Agora só nos resta a via judicial. Lamentavelmente, vamos gastar o que não dispomos no momento".
Dificilmente o Tribunal lhe dará ganho de causa. Sorte dos sem-terra. Azar dos com-floresta.
Xico Graziano, agrônomo, é secretário do Meio Ambiente
do Estado de São Paulo. E-mail: xico@xicograziano.com.br
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QUESTÃO AGRÁRIA
domingo, abril 15, 2007
NEM ELITISMO, NEM POBRISMO
São Paulo, sexta-feira, 13 de abril de 2007
GUSTAVO IOSCHPE
A experiência histórica mostra que o caminho do desenvolvimento pela punição da elite desemboca na popularização da pobrezaESCREVO de um hotel no Peru. Vim apresentar um trabalho sobre educação e nele permaneço pela falta dela -retido pela paralisação dos controladores de vôo e o apagão de liderança de seus superiores. Para a fração de brasileiros que lê jornais e sabe o que se passa no mundo, tem ficado difícil evitar a percepção de que, como país, andamos para trás. Há alguns anos já descobrimos que não conseguimos manejar chuvas e usinas hidrelétricas para a produção de eletricidade. Não conseguimos igualmente fazer estradas transitáveis ou portos suficientes. Agora nos deparamos com a inabilidade de operar o sistema de aviação.
Passamos a ter dificuldades em tarefas que nossos antecedentes dominaram há várias décadas. Aceleramos com tal ímpeto rumo ao passado que estamos agora prestes a repetir o século 16, exportando derivados da cana para as metrópoles desenvolvidas. Antes era o açúcar, agora é o etanol, mas a posição dos países nesses quatrocentos e tantos anos não mudou, assim como também não mudou uma realidade que teimamos ignorar: nenhum país, na história da humanidade, chegou ao Primeiro Mundo pela via da exportação de commodities. Some-se a essa pasmaceira a evolução da única indústria que vem crescendo a níveis chineses nas últimas décadas -a da violência- e temos a receita para o desalento que vitima uma grande parte da população. Essa é uma realidade que não é captada pelos grandes números. O país cresce -pouco e dependendo de maquiagem, mas cresce. O desemprego cai. A balança comercial melhora, a desigualdade diminui, a renda das camadas mais pobres aumenta. E esse é justamente o problema: enquanto a população da classe média para cima sofre e se toma de desesperança, a maioria da população vê melhorias. Se estivéssemos no rumo do desenvolvimento sustentado, talvez pudéssemos descartar as preocupações dos setores mais esclarecidos como elitismo. Mas não estamos. Estamos trilhando o caminho do subdesenvolvimento continuado. Ainda que as camadas mais pobres não saibam disso, as medidas que causam sua alegria hoje são as que continuarão causando sua tristeza amanhã. O aumento dos gastos sociais, quando vem pela elevação de impostos, causa a pobreza futura de todos. As proteções da legislação trabalhista empurram o trabalhador para a informalidade. A instituição de um Judiciário em que se dá uma enxurrada de possibilidades de recurso cria uma terra em que a justiça é inexeqüível. A lei que não pode ser cumprida não existe, e, em terra sem lei, manda o mais forte.
A criação de tantas ONGs e programas governamentais para a inclusão do jovem da periferia só escamoteia o indizível: com a educação a que tem acesso, esse jovem será periférico sempre. Toda a infra-estrutura que os representantes do povo criaram para supostamente defendê-lo são as fundações do arcabouço de sua pobreza presente e futura. O mais trágico é que criamos uma sociedade em que tantos têm tão pouco que qualquer promessa de um minúsculo ganho presente é suficiente para obliterar o cálculo de perdas futuras. Três quartos de nossa população é funcionalmente analfabeta. Assim não se pavimenta um país democrático, nem muito menos pujante. A curto prazo, não temos saída. Mesmo que acertássemos os problemas econômicos, somos uma nação de ignorantes.
Exceções à parte, não temos condição de competir com países de alto desenvolvimento tecnológico. Somos condenados à continuação do modelo agroexportador e, internamente, a indústrias e serviços de baixo valor agregado. Enquanto não conseguirmos produzir os bens e serviços de ponta, nossos empregados continuarão recebendo pouco, sendo presas fáceis de governantes e suas promessas mirabolantes. Há possibilidade de sucesso no médio e longo prazos. Podemos repetir o caminho de outras nações: focar na capacitação para chegar à produção de ponta; parar de olhar para o passado e mirar o futuro; focar na inclusão através do desenvolvimento, não da socialização da pobreza. O problema é que ninguém das chamadas elites parece ter coragem de defender um projeto de país, em vez de um projeto para excluídos do país. Pelo elitismo do passado, agora nos condenamos ao pobrismo, como se a vida em sociedade fosse como a matemática, em que dois negativos formam um positivo, e não um prejuízo dobrado. Um país precisa de aeroportos e vôos regulares, mesmo que sejam usados por apenas 1% da população. Precisa de boas universidades, que produzam pesquisa voltada aos seus interesses nacionais. Precisa de uma polícia eficiente e um Judiciário idem. Precisa de baixos impostos e estímulos a quem empreende. Precisa entender que quem conduz uma nação ao desenvolvimento não é só seu governo, mas principalmente seu setor privado. E que o setor privado não é feito de oprimidos e opressores, mas de diversos atores -de habilidades, inclinações e apetites de risco diferentes, e remunerações condizentes. Precisamos parar de pensar em termos de raças e classes e pensar em termos de país.
Às vezes, aquilo que beneficia muito poucos é fundamental -como bons aeroportos. A experiência histórica mostra que o caminho do desenvolvimento pela punição das elites desemboca apenas na popularização da pobreza. Esperar o bolo crescer para então reparti-lo é uma estratégia tão infeliz quanto causar a diminuição do bolo por sua distribuição mais equânime.
GUSTAVO IOSCHPE, 30, mestre em desenvolvimento econômico pela Universidade Yale (EUA), é autor de "A Ignorância Custa um Mundo" (W11 Editores)
GUSTAVO IOSCHPE
A experiência histórica mostra que o caminho do desenvolvimento pela punição da elite desemboca na popularização da pobrezaESCREVO de um hotel no Peru. Vim apresentar um trabalho sobre educação e nele permaneço pela falta dela -retido pela paralisação dos controladores de vôo e o apagão de liderança de seus superiores. Para a fração de brasileiros que lê jornais e sabe o que se passa no mundo, tem ficado difícil evitar a percepção de que, como país, andamos para trás. Há alguns anos já descobrimos que não conseguimos manejar chuvas e usinas hidrelétricas para a produção de eletricidade. Não conseguimos igualmente fazer estradas transitáveis ou portos suficientes. Agora nos deparamos com a inabilidade de operar o sistema de aviação.
Passamos a ter dificuldades em tarefas que nossos antecedentes dominaram há várias décadas. Aceleramos com tal ímpeto rumo ao passado que estamos agora prestes a repetir o século 16, exportando derivados da cana para as metrópoles desenvolvidas. Antes era o açúcar, agora é o etanol, mas a posição dos países nesses quatrocentos e tantos anos não mudou, assim como também não mudou uma realidade que teimamos ignorar: nenhum país, na história da humanidade, chegou ao Primeiro Mundo pela via da exportação de commodities. Some-se a essa pasmaceira a evolução da única indústria que vem crescendo a níveis chineses nas últimas décadas -a da violência- e temos a receita para o desalento que vitima uma grande parte da população. Essa é uma realidade que não é captada pelos grandes números. O país cresce -pouco e dependendo de maquiagem, mas cresce. O desemprego cai. A balança comercial melhora, a desigualdade diminui, a renda das camadas mais pobres aumenta. E esse é justamente o problema: enquanto a população da classe média para cima sofre e se toma de desesperança, a maioria da população vê melhorias. Se estivéssemos no rumo do desenvolvimento sustentado, talvez pudéssemos descartar as preocupações dos setores mais esclarecidos como elitismo. Mas não estamos. Estamos trilhando o caminho do subdesenvolvimento continuado. Ainda que as camadas mais pobres não saibam disso, as medidas que causam sua alegria hoje são as que continuarão causando sua tristeza amanhã. O aumento dos gastos sociais, quando vem pela elevação de impostos, causa a pobreza futura de todos. As proteções da legislação trabalhista empurram o trabalhador para a informalidade. A instituição de um Judiciário em que se dá uma enxurrada de possibilidades de recurso cria uma terra em que a justiça é inexeqüível. A lei que não pode ser cumprida não existe, e, em terra sem lei, manda o mais forte.
A criação de tantas ONGs e programas governamentais para a inclusão do jovem da periferia só escamoteia o indizível: com a educação a que tem acesso, esse jovem será periférico sempre. Toda a infra-estrutura que os representantes do povo criaram para supostamente defendê-lo são as fundações do arcabouço de sua pobreza presente e futura. O mais trágico é que criamos uma sociedade em que tantos têm tão pouco que qualquer promessa de um minúsculo ganho presente é suficiente para obliterar o cálculo de perdas futuras. Três quartos de nossa população é funcionalmente analfabeta. Assim não se pavimenta um país democrático, nem muito menos pujante. A curto prazo, não temos saída. Mesmo que acertássemos os problemas econômicos, somos uma nação de ignorantes.
Exceções à parte, não temos condição de competir com países de alto desenvolvimento tecnológico. Somos condenados à continuação do modelo agroexportador e, internamente, a indústrias e serviços de baixo valor agregado. Enquanto não conseguirmos produzir os bens e serviços de ponta, nossos empregados continuarão recebendo pouco, sendo presas fáceis de governantes e suas promessas mirabolantes. Há possibilidade de sucesso no médio e longo prazos. Podemos repetir o caminho de outras nações: focar na capacitação para chegar à produção de ponta; parar de olhar para o passado e mirar o futuro; focar na inclusão através do desenvolvimento, não da socialização da pobreza. O problema é que ninguém das chamadas elites parece ter coragem de defender um projeto de país, em vez de um projeto para excluídos do país. Pelo elitismo do passado, agora nos condenamos ao pobrismo, como se a vida em sociedade fosse como a matemática, em que dois negativos formam um positivo, e não um prejuízo dobrado. Um país precisa de aeroportos e vôos regulares, mesmo que sejam usados por apenas 1% da população. Precisa de boas universidades, que produzam pesquisa voltada aos seus interesses nacionais. Precisa de uma polícia eficiente e um Judiciário idem. Precisa de baixos impostos e estímulos a quem empreende. Precisa entender que quem conduz uma nação ao desenvolvimento não é só seu governo, mas principalmente seu setor privado. E que o setor privado não é feito de oprimidos e opressores, mas de diversos atores -de habilidades, inclinações e apetites de risco diferentes, e remunerações condizentes. Precisamos parar de pensar em termos de raças e classes e pensar em termos de país.
Às vezes, aquilo que beneficia muito poucos é fundamental -como bons aeroportos. A experiência histórica mostra que o caminho do desenvolvimento pela punição das elites desemboca apenas na popularização da pobreza. Esperar o bolo crescer para então reparti-lo é uma estratégia tão infeliz quanto causar a diminuição do bolo por sua distribuição mais equânime.
GUSTAVO IOSCHPE, 30, mestre em desenvolvimento econômico pela Universidade Yale (EUA), é autor de "A Ignorância Custa um Mundo" (W11 Editores)
quinta-feira, abril 05, 2007
O RACISMO DA MINISTRA MATILDE
A análise do historiador Manolo Florentino sobre a entrevista da ministra Matilde da Secretaria da Promoção da Igualdade Racial.
Domingo, 1 abril de 2007 – O ESTADO DE SÃO PAULO.
Historiador vê racismo no discurso de Matilde
Para Florentino, pasta da Igualdade Racial faz o contrário do que anuncia
Felipe Werneck, RIO
O discurso da ministra Matilde Ribeiro - que disse considerar natural o racismo de negros contra brancos no Brasil - é “racista” e “coerente” com o trabalho desenvolvido por ela à frente da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, diz o doutor em História e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Manolo Florentino. “Se buscarmos os documentos que eles produzem e trocarmos a palavra negro por branco, a impressão é a de que é Goebbels falando. É um troço assim impressionante. A fala tem absoluta coerência, não tem nenhuma novidade”, afirmou Florentino, referindo-se ao ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels. E qual será o resultado da declaração? “Nenhum.
Em um governo pautado fundamentalmente por movimentos sociais, alguém vai ter a coragem de demitir essa senhora?” Para ele, a secretaria promove o contrário do que anuncia, ao estimular a criação de um conjunto de etnias no País. Florentino reconhece que há racismo no Brasil, mas afirma que o conflito é social. Qual é a saída? “Pura e simplesmente tornar esse país um pouco menos pobre.” Ele conversou com o Estado na quinta-feira, em uma sala do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ. A seguir, os principais trechos. DECLARAÇÃO DA MINISTRA “A impressão que se tem é a de que as pessoas não têm a menor noção do que estão fazendo. Eu achei a declaração da ministra supercoerente com a idéia de criar uma secretaria, com o que ela vem desenvolvendo. O Estatuto da Igualdade Racial parece um documento nazista. Se buscarmos os documentos que eles produzem e trocarmos a palavra negro por branco, a impressão é a de que é Goebbels falando. Grande parte dos documentos emanados por este órgão, por estar pautada na racialização, trabalha em última instância com a noção de raça. Evidentemente, quando se pensa em raça hoje em dia imediatamente se remete ao nazismo, que foi efetivamente ao longo dos últimos 100 anos o mais importante, para o mal, projeto de humanidade calcado em racialização.”CRIME “Tem três coisas que me parecem interessantes na fala da ministra. Uma é o desconhecimento muito grande da legislação brasileira, porque racismo é crime. O que a ministra fez, mesmo depois dando aquelas explicações, atenta contra a lei. Ela deveria, ou poderia, ser processada por insuflar racismo. Ela teve uma atitude racista. A outra coisa: parece que nós estamos sendo governados nesse setor pelo senso comum, porque trabalha-se com a categoria raça, que é um troço que está banido da antropologia, da sociologia e da biologia. (O que a ciência já provou amplamente é que só existe uma raça, a humana). A terceira dimensão é que é impressionante: uma pessoa que ocupa um cargo público dizer esse tipo de coisa. Acho que é um desconhecimento, não é possível que alguém no mundo de hoje não saiba que raças não existem. Pode ser qualquer pessoa, menos um ministro de Estado que tem por função promover a igualdade racial. Acho que ela está sendo pautada pelos movimentos sociais, está cumprindo um papel lamentável, nesse caso especifico. E o terrível é que não vai haver pedido de desculpas, não vai acontecer nada.”MOVIMENTO NEGRO “Nos primórdios dos movimentos negros brasileiros, nos anos 30, eles postulavam um sentido de profundo orgulho da nossa miscigenação.
Os primeiros líderes negros sabiam com clareza o que significava isso do ponto de vista civilizacional. E não apostavam de modo algum em um País repartido, separado, apartado, de brancos de um lado e negros do outro. Atualmente a postura é diferente. E aí eu não acho que o governo Lula seja o único culpado. Por interferência e diretriz governamental, tem se postulado sim a fundação de um novo Brasil, bicolor, separado, repartido em etnias. Voltar a uma etapa de multiculturalismo que já está historicamente ultrapassada. Os chamados movimentos sociais têm um peso muito grande nas formulações de políticas nesse governo. Então eles não devem ser ouvidos? Claro que devem. Mas o Estado brasileiro é o Estado dos brasileiros.
O presidente é o presidente dos brasileiros, não é o presidente dos negros, dos azuis, dos amarelos, sequer dos pobres.”RACISMO E POBREZA“Não creio que uma pessoa no Brasil hoje se afaste de um negro por ele ser negro. As pessoas gostam de negros, gostam de brancos, gostam de amarelos, ou não gostam de negros, não gostam de brancos, não gostam de amarelos. Você está perguntando se há racismo no Brasil. Eu não tenho a menor dúvida disso. A minha dúvida é se a gente combate o racismo a partir de políticas que primam por racializar as relações. Acho que não. Racismo, para mim, é caso de polícia.
O grande problema brasileiro é a pobreza mesmo. Eu não tenho muita certeza se o racismo brasileiro chega a se expressar numa espécie de apartheid como na África do Sul. Essa brincadeirinha com raças no Brasil, a criação de identidade étnica num país como esse, isso vai acabar insuflando o ódio racial. Muita gente diz que hoje em dia o Brasil não é racista. Eu acho mais correto dizer que não queremos ser racistas. Agora, que há, há. Cor no Brasil é uma questão de posição social. Você enriquece e vai deixando de ser negro ou pardo. O Chico Buarque disse uma vez que jura ter visto um sujeito que era branco e que ficando pobre passou a ser tratado como preto. O que se pode fazer é pura e simplesmente tornar esse país um pouco menos pobre.
Na medida em que o país retoma o crescimento econômico, mais pessoas abandonam a linha de pobreza, e essas pessoas são pardas e negras.”COTAS“Percebeu-se, e aí a coisa vem desde a época do Fernando Henrique, que isso não seria uma batalha fácil. Sobretudo porque as nossas grandes universidades rejeitam. E o que aconteceu é que eles resolveram mudar de estratégia. Em vez de impor o projeto de cima para baixo, eles vão fazer uma espécie de chantagem, em que a liberação de verbas vai ficar condicionada à adoção de políticas afirmativas. Essa é que é a questão. É o sonho de todo político: inclusão social a custo zero, que não toma o tempo dele e ele ainda ganha votos.” FRASESManolo FlorentinoProfessor da UFRJ“Se buscarmos os documentos que eles produzem e trocarmos a palavra negro por branco, a impressão é a de que é Goebbels falando”“Parece que nós estamos sendo governados nesse setor pelo senso comum, porque trabalha-se com a categoria raça, que é um troço que está banido”
Domingo, 1 abril de 2007 – O ESTADO DE SÃO PAULO.
Historiador vê racismo no discurso de Matilde
Para Florentino, pasta da Igualdade Racial faz o contrário do que anuncia
Felipe Werneck, RIO
O discurso da ministra Matilde Ribeiro - que disse considerar natural o racismo de negros contra brancos no Brasil - é “racista” e “coerente” com o trabalho desenvolvido por ela à frente da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, diz o doutor em História e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Manolo Florentino. “Se buscarmos os documentos que eles produzem e trocarmos a palavra negro por branco, a impressão é a de que é Goebbels falando. É um troço assim impressionante. A fala tem absoluta coerência, não tem nenhuma novidade”, afirmou Florentino, referindo-se ao ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels. E qual será o resultado da declaração? “Nenhum.
Em um governo pautado fundamentalmente por movimentos sociais, alguém vai ter a coragem de demitir essa senhora?” Para ele, a secretaria promove o contrário do que anuncia, ao estimular a criação de um conjunto de etnias no País. Florentino reconhece que há racismo no Brasil, mas afirma que o conflito é social. Qual é a saída? “Pura e simplesmente tornar esse país um pouco menos pobre.” Ele conversou com o Estado na quinta-feira, em uma sala do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ. A seguir, os principais trechos. DECLARAÇÃO DA MINISTRA “A impressão que se tem é a de que as pessoas não têm a menor noção do que estão fazendo. Eu achei a declaração da ministra supercoerente com a idéia de criar uma secretaria, com o que ela vem desenvolvendo. O Estatuto da Igualdade Racial parece um documento nazista. Se buscarmos os documentos que eles produzem e trocarmos a palavra negro por branco, a impressão é a de que é Goebbels falando. Grande parte dos documentos emanados por este órgão, por estar pautada na racialização, trabalha em última instância com a noção de raça. Evidentemente, quando se pensa em raça hoje em dia imediatamente se remete ao nazismo, que foi efetivamente ao longo dos últimos 100 anos o mais importante, para o mal, projeto de humanidade calcado em racialização.”CRIME “Tem três coisas que me parecem interessantes na fala da ministra. Uma é o desconhecimento muito grande da legislação brasileira, porque racismo é crime. O que a ministra fez, mesmo depois dando aquelas explicações, atenta contra a lei. Ela deveria, ou poderia, ser processada por insuflar racismo. Ela teve uma atitude racista. A outra coisa: parece que nós estamos sendo governados nesse setor pelo senso comum, porque trabalha-se com a categoria raça, que é um troço que está banido da antropologia, da sociologia e da biologia. (O que a ciência já provou amplamente é que só existe uma raça, a humana). A terceira dimensão é que é impressionante: uma pessoa que ocupa um cargo público dizer esse tipo de coisa. Acho que é um desconhecimento, não é possível que alguém no mundo de hoje não saiba que raças não existem. Pode ser qualquer pessoa, menos um ministro de Estado que tem por função promover a igualdade racial. Acho que ela está sendo pautada pelos movimentos sociais, está cumprindo um papel lamentável, nesse caso especifico. E o terrível é que não vai haver pedido de desculpas, não vai acontecer nada.”MOVIMENTO NEGRO “Nos primórdios dos movimentos negros brasileiros, nos anos 30, eles postulavam um sentido de profundo orgulho da nossa miscigenação.
Os primeiros líderes negros sabiam com clareza o que significava isso do ponto de vista civilizacional. E não apostavam de modo algum em um País repartido, separado, apartado, de brancos de um lado e negros do outro. Atualmente a postura é diferente. E aí eu não acho que o governo Lula seja o único culpado. Por interferência e diretriz governamental, tem se postulado sim a fundação de um novo Brasil, bicolor, separado, repartido em etnias. Voltar a uma etapa de multiculturalismo que já está historicamente ultrapassada. Os chamados movimentos sociais têm um peso muito grande nas formulações de políticas nesse governo. Então eles não devem ser ouvidos? Claro que devem. Mas o Estado brasileiro é o Estado dos brasileiros.
O presidente é o presidente dos brasileiros, não é o presidente dos negros, dos azuis, dos amarelos, sequer dos pobres.”RACISMO E POBREZA“Não creio que uma pessoa no Brasil hoje se afaste de um negro por ele ser negro. As pessoas gostam de negros, gostam de brancos, gostam de amarelos, ou não gostam de negros, não gostam de brancos, não gostam de amarelos. Você está perguntando se há racismo no Brasil. Eu não tenho a menor dúvida disso. A minha dúvida é se a gente combate o racismo a partir de políticas que primam por racializar as relações. Acho que não. Racismo, para mim, é caso de polícia.
O grande problema brasileiro é a pobreza mesmo. Eu não tenho muita certeza se o racismo brasileiro chega a se expressar numa espécie de apartheid como na África do Sul. Essa brincadeirinha com raças no Brasil, a criação de identidade étnica num país como esse, isso vai acabar insuflando o ódio racial. Muita gente diz que hoje em dia o Brasil não é racista. Eu acho mais correto dizer que não queremos ser racistas. Agora, que há, há. Cor no Brasil é uma questão de posição social. Você enriquece e vai deixando de ser negro ou pardo. O Chico Buarque disse uma vez que jura ter visto um sujeito que era branco e que ficando pobre passou a ser tratado como preto. O que se pode fazer é pura e simplesmente tornar esse país um pouco menos pobre.
Na medida em que o país retoma o crescimento econômico, mais pessoas abandonam a linha de pobreza, e essas pessoas são pardas e negras.”COTAS“Percebeu-se, e aí a coisa vem desde a época do Fernando Henrique, que isso não seria uma batalha fácil. Sobretudo porque as nossas grandes universidades rejeitam. E o que aconteceu é que eles resolveram mudar de estratégia. Em vez de impor o projeto de cima para baixo, eles vão fazer uma espécie de chantagem, em que a liberação de verbas vai ficar condicionada à adoção de políticas afirmativas. Essa é que é a questão. É o sonho de todo político: inclusão social a custo zero, que não toma o tempo dele e ele ainda ganha votos.” FRASESManolo FlorentinoProfessor da UFRJ“Se buscarmos os documentos que eles produzem e trocarmos a palavra negro por branco, a impressão é a de que é Goebbels falando”“Parece que nós estamos sendo governados nesse setor pelo senso comum, porque trabalha-se com a categoria raça, que é um troço que está banido”
terça-feira, abril 03, 2007
Crime e castigo dentro de nós
VEJA, Edição 2001, 28 de março de 2007, Artigo: Reinaldo Azevedo
"Só é criminoso quem quer; trata-se de uma escolha." Fiz essa afirmação no meu blog, em VEJA on-line, para escândalo de muitos. Os esquerdistas ficaram furiosos. Como sempre, falam antes e pensam depois. A esquerda, pouco importa o matiz, vive ainda no marxismo do século XIX. É incapaz de entender o homem como um ser dotado de vontade, apto a fazer opções, equipado para distinguir o bem do mal. Seu aparato analítico é fruto do naturalismo do século retrasado, quando o pensamento foi dominado pelo determinismo científico.
Imaginou-se, então, que tudo o que fosse humano estava subordinado a um conjunto de variáveis alheias às vontades. Até a economia, se bem se lembram, se inseria numa seqüência mecânica, etapista, decidida no mundo das idéias. Ah, quem diria que Karl Marx (1818-1883), um materialista, era, de fato, um discípulo do pior platonismo!? Quem se debruçou sobre sua obra sabe disso: só resistia ao socialismo, "fantasma" (termo apropriado) que rondava a Europa, quem estava a contrapelo da marcha da civilização. Por isso, os que combatiam o modelo não eram apenas conservadores de uma ordem moribunda (o capitalismo), mas reacionários. E não adiantava espernear: como se diz em má poesia, ninguém conseguiria impedir a chegada da primavera; no máximo, retardá-la. O socialismo estava inscrito em nossa caminhada evolutiva. O "novo homem" era uma construção coletiva e um destino.
A economia, a literatura, a psicologia, a sociologia, a antropologia, todo conhecimento, enfim, à medida que cedia à crítica da razão idealista e aderia a uma suposta razão iluminista, buscava substituir o exame de consciência, estimulado pela fé cristã, por um conjunto de causalidades exteriores: o homem já não precisava mais se confessar à sua consciência ou a seu sacerdote: bastava que se justificasse no tribunal da história. Um contemporâneo de Marx, o escritor russo Fiodor Dostoievski (1821-1881), estava no limite dessas duas eras. Situa o homem na fronteira entre a racionalização que justifica o crime e a consciência que produz a culpa. Se não leram ainda, leiam um dia o romance Crime e Castigo. Juntamente com o personagem Raskolnikov, cometam um homicídio (de fato, dois) por razões até muito "justas". E percorram o calvário que conduz ao arrependimento e, infelizmente no caso do romance, à redenção. Escrevo esse "infelizmente" porque o fim empobrece a obra, embora engrandeça a piedade que Dostoievski sentia de todos nós.
O que interessa em Raskolnikov? O sofrimento posterior ao crime não deriva da pressão social ou das dificuldades que encontra, na sociedade, por ser um assassino. O que lhe corrói a alma é sua consciência e, eu ousaria dizer, uma espécie de ancestralidade humanista que o confronta com o horror, tema também de outro romance do escritor russo, Os Irmãos Karamazov. Nenhuma força é tão poderosa para conter a mão assassina quanto uma interdição que está além da ordem prática do mundo, de seu utilitarismo, das exigências pragmáticas. A isso chamamos "moral individual", que pode ou não ser influente, que pode ou não estar ligada a uma tradição cultural.
Atribui-se, aliás, a Dostoievski a frase: "Se Deus não existe, tudo é permitido". Mais ou menos. É bom contextualizar. Quem escreveu isso foi Sartre (1905-1980), em O Existencialismo É um Humanismo. No autor russo, há coisa parecida. Aliocha Karamazov, o santinho de Os Irmãos Karamazov, diz em tom de censura a Ivan, o intelectual ateu e verdadeiro cérebro do parricídio praticado por Smerdiakov (o quarto irmão é Dimitri): "Mas, se Deus não existe, então não há crime e não há pecado; tudo é permitido". A afirmação era feita em tom de censura. No Capítulo 9 do Livro 11, Ivan ouve a mesma afirmação, aí feita pelo diabo, que vem a ser a razão cínica que dilui qualquer postulado moral.
Por que Dostoievski está, a meu juízo, alguns degraus acima do que se produziu no século XIX – talvez, vá lá, nem tanto como literatura, mas como indagação moral? Porque não se limitou a ser o cronista de uma crise de valores ou o apologista de um novo saber, como era a moda. Sua literatura só existe porque a moral religiosa sofria o assédio e o cerco da razão avassaladora, com seus instrumentos de medição científica, diante dos quais todo saber, considerado então convencional, era relativo e, para muitos, descartável. Raskolnikov e Ivan Karamazov, nesse sentido, são homens absolutamente modernos.
Quem me acompanhou até aqui deve imaginar qual é o fato público que está na origem deste texto. Sim, é o assassinato brutal do menino João Hélio, no Rio de Janeiro. Àquele episódio, seguiu-se a retórica farisaica que tenta emprestar metáforas novas àquelas teses do século retrasado: existiria uma ciência fora da consciência individual, privada, que explicaria o crime; estaríamos diante de fatores, todos eles sociais, que expropriariam dos assassinos a decisão de matar. O curioso é que a mesma esquerda que pretende fazer dos facinorosos menores morais, incapazes de se decidir entre o bem e o mal, não se atreve a pedir que lhes seja cassado, por exemplo, o direito de voto. Quem não está equipado para escolher entre a vida e a morte deve exercer que outro direito de escolha?
Voltemos, então, um pouco no tempo: "Quando as leis forem fixas e literais, quando só confiarem ao magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos, para decidir se tais atos são conformes ou contrários à lei escrita; quando, enfim, a regra do justo e do injusto, que deve dirigir em todos os seus atos o ignorante e o homem instruído, não for um motivo de controvérsia, mas simples questão de fato, então não mais se verão os cidadãos submetidos ao jugo de uma multidão de pequenos tiranos, tanto mais insuportáveis quanto menor é a distância entre o opressor e o oprimido".
Trata-se de um trecho do Capítulo 4 de Dos Delitos e das Penas, do italiano Cesare Beccaria (1738-1794). É justamente o trecho da obra em que ele ataca o arbítrio dos juízes ao interpretar o "espírito da lei", o que abre espaço para toda sorte de subjetivismos. Notável pensador. Beccaria, que combateu a prática da tortura e do tratamento cruel aos presos, não obstante, queria uma lei a mais objetiva, voltada à proteção dos que não eram criminosos. E explicava por quê: "Com leis penais executadas à letra, cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, porque tal conhecimento poderá desviá-lo do crime. Gozará com segurança de sua liberdade e dos seus bens; e isso é justo, porque é esse o fim da reunião dos homens em sociedade".
As leis são manifestações do pacto que todos firmamos em sociedade. Mas jamais terão o poder de incutir uma moral, por mais tolerantes que sejam, a quem considera que tudo lhe é permitido. Aquela crise que Dostoievski identificou no fim do século XIX, se quiserem saber, ainda é a nossa. O endurecimento da legislação penal serve, sem dúvida, à diminuição da impunidade, para o que devem concorrer também as leis as mais objetivas, com aplicação severa. Mas ninguém inventou ainda um instrumento útil que possa substituir a consciência individual. Eu, a exemplo de Aliocha, também considero que, se Deus não existe, então não há crime e não há pecado. E até concedo que possa haver uma outra religião, não revelada, mas construída, a que se possa chamar, talvez, de humanismo.
Pouco importa se é Deus o ente a nos indagar ou um outro valor igualmente constituído de respeito ao próximo e de tolerância. A verdade é que a lei será sempre impotente para conter a mão criminosa se houver algo em nossa consciência a dizer que tudo nos é permitido. Olhem à volta: o que é que lhes diz o mundo contemporâneo?
"Só é criminoso quem quer; trata-se de uma escolha." Fiz essa afirmação no meu blog, em VEJA on-line, para escândalo de muitos. Os esquerdistas ficaram furiosos. Como sempre, falam antes e pensam depois. A esquerda, pouco importa o matiz, vive ainda no marxismo do século XIX. É incapaz de entender o homem como um ser dotado de vontade, apto a fazer opções, equipado para distinguir o bem do mal. Seu aparato analítico é fruto do naturalismo do século retrasado, quando o pensamento foi dominado pelo determinismo científico.
Imaginou-se, então, que tudo o que fosse humano estava subordinado a um conjunto de variáveis alheias às vontades. Até a economia, se bem se lembram, se inseria numa seqüência mecânica, etapista, decidida no mundo das idéias. Ah, quem diria que Karl Marx (1818-1883), um materialista, era, de fato, um discípulo do pior platonismo!? Quem se debruçou sobre sua obra sabe disso: só resistia ao socialismo, "fantasma" (termo apropriado) que rondava a Europa, quem estava a contrapelo da marcha da civilização. Por isso, os que combatiam o modelo não eram apenas conservadores de uma ordem moribunda (o capitalismo), mas reacionários. E não adiantava espernear: como se diz em má poesia, ninguém conseguiria impedir a chegada da primavera; no máximo, retardá-la. O socialismo estava inscrito em nossa caminhada evolutiva. O "novo homem" era uma construção coletiva e um destino.
A economia, a literatura, a psicologia, a sociologia, a antropologia, todo conhecimento, enfim, à medida que cedia à crítica da razão idealista e aderia a uma suposta razão iluminista, buscava substituir o exame de consciência, estimulado pela fé cristã, por um conjunto de causalidades exteriores: o homem já não precisava mais se confessar à sua consciência ou a seu sacerdote: bastava que se justificasse no tribunal da história. Um contemporâneo de Marx, o escritor russo Fiodor Dostoievski (1821-1881), estava no limite dessas duas eras. Situa o homem na fronteira entre a racionalização que justifica o crime e a consciência que produz a culpa. Se não leram ainda, leiam um dia o romance Crime e Castigo. Juntamente com o personagem Raskolnikov, cometam um homicídio (de fato, dois) por razões até muito "justas". E percorram o calvário que conduz ao arrependimento e, infelizmente no caso do romance, à redenção. Escrevo esse "infelizmente" porque o fim empobrece a obra, embora engrandeça a piedade que Dostoievski sentia de todos nós.
O que interessa em Raskolnikov? O sofrimento posterior ao crime não deriva da pressão social ou das dificuldades que encontra, na sociedade, por ser um assassino. O que lhe corrói a alma é sua consciência e, eu ousaria dizer, uma espécie de ancestralidade humanista que o confronta com o horror, tema também de outro romance do escritor russo, Os Irmãos Karamazov. Nenhuma força é tão poderosa para conter a mão assassina quanto uma interdição que está além da ordem prática do mundo, de seu utilitarismo, das exigências pragmáticas. A isso chamamos "moral individual", que pode ou não ser influente, que pode ou não estar ligada a uma tradição cultural.
Atribui-se, aliás, a Dostoievski a frase: "Se Deus não existe, tudo é permitido". Mais ou menos. É bom contextualizar. Quem escreveu isso foi Sartre (1905-1980), em O Existencialismo É um Humanismo. No autor russo, há coisa parecida. Aliocha Karamazov, o santinho de Os Irmãos Karamazov, diz em tom de censura a Ivan, o intelectual ateu e verdadeiro cérebro do parricídio praticado por Smerdiakov (o quarto irmão é Dimitri): "Mas, se Deus não existe, então não há crime e não há pecado; tudo é permitido". A afirmação era feita em tom de censura. No Capítulo 9 do Livro 11, Ivan ouve a mesma afirmação, aí feita pelo diabo, que vem a ser a razão cínica que dilui qualquer postulado moral.
Por que Dostoievski está, a meu juízo, alguns degraus acima do que se produziu no século XIX – talvez, vá lá, nem tanto como literatura, mas como indagação moral? Porque não se limitou a ser o cronista de uma crise de valores ou o apologista de um novo saber, como era a moda. Sua literatura só existe porque a moral religiosa sofria o assédio e o cerco da razão avassaladora, com seus instrumentos de medição científica, diante dos quais todo saber, considerado então convencional, era relativo e, para muitos, descartável. Raskolnikov e Ivan Karamazov, nesse sentido, são homens absolutamente modernos.
Quem me acompanhou até aqui deve imaginar qual é o fato público que está na origem deste texto. Sim, é o assassinato brutal do menino João Hélio, no Rio de Janeiro. Àquele episódio, seguiu-se a retórica farisaica que tenta emprestar metáforas novas àquelas teses do século retrasado: existiria uma ciência fora da consciência individual, privada, que explicaria o crime; estaríamos diante de fatores, todos eles sociais, que expropriariam dos assassinos a decisão de matar. O curioso é que a mesma esquerda que pretende fazer dos facinorosos menores morais, incapazes de se decidir entre o bem e o mal, não se atreve a pedir que lhes seja cassado, por exemplo, o direito de voto. Quem não está equipado para escolher entre a vida e a morte deve exercer que outro direito de escolha?
Voltemos, então, um pouco no tempo: "Quando as leis forem fixas e literais, quando só confiarem ao magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos, para decidir se tais atos são conformes ou contrários à lei escrita; quando, enfim, a regra do justo e do injusto, que deve dirigir em todos os seus atos o ignorante e o homem instruído, não for um motivo de controvérsia, mas simples questão de fato, então não mais se verão os cidadãos submetidos ao jugo de uma multidão de pequenos tiranos, tanto mais insuportáveis quanto menor é a distância entre o opressor e o oprimido".
Trata-se de um trecho do Capítulo 4 de Dos Delitos e das Penas, do italiano Cesare Beccaria (1738-1794). É justamente o trecho da obra em que ele ataca o arbítrio dos juízes ao interpretar o "espírito da lei", o que abre espaço para toda sorte de subjetivismos. Notável pensador. Beccaria, que combateu a prática da tortura e do tratamento cruel aos presos, não obstante, queria uma lei a mais objetiva, voltada à proteção dos que não eram criminosos. E explicava por quê: "Com leis penais executadas à letra, cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, porque tal conhecimento poderá desviá-lo do crime. Gozará com segurança de sua liberdade e dos seus bens; e isso é justo, porque é esse o fim da reunião dos homens em sociedade".
As leis são manifestações do pacto que todos firmamos em sociedade. Mas jamais terão o poder de incutir uma moral, por mais tolerantes que sejam, a quem considera que tudo lhe é permitido. Aquela crise que Dostoievski identificou no fim do século XIX, se quiserem saber, ainda é a nossa. O endurecimento da legislação penal serve, sem dúvida, à diminuição da impunidade, para o que devem concorrer também as leis as mais objetivas, com aplicação severa. Mas ninguém inventou ainda um instrumento útil que possa substituir a consciência individual. Eu, a exemplo de Aliocha, também considero que, se Deus não existe, então não há crime e não há pecado. E até concedo que possa haver uma outra religião, não revelada, mas construída, a que se possa chamar, talvez, de humanismo.
Pouco importa se é Deus o ente a nos indagar ou um outro valor igualmente constituído de respeito ao próximo e de tolerância. A verdade é que a lei será sempre impotente para conter a mão criminosa se houver algo em nossa consciência a dizer que tudo nos é permitido. Olhem à volta: o que é que lhes diz o mundo contemporâneo?
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