sexta-feira, outubro 17, 2008

A Inabalável Fé na Burocracia

Wednesday, October 15, 2008

Rodrigo Constantino

“O propósito da política não é solucionar problemas, mas achar problemas para justificar a expansão do poder do governo e um aumento nos impostos.” (Thomas Sowell)

O que o leitor pensaria de alguém que sempre recorre ao mesmo instrumento de fé quando algo dá errado, ainda que ele nunca leve aos objetivos desejáveis? Trata-se de uma postura no mínimo irracional, tamanha a insistência num meio claramente ineficaz. No entanto, é justamente isso que os crentes da burocracia fazem, de forma assustadoramente repetida. Cada nova crise recebe o diagnóstico de que faltou mais governo, mais regulação e mais supervisão burocrática, mesmo que a tendência de crescimento do governo ocorra concomitante ao agravamento das crises. A desconfiança em relação ao livre mercado e a ingênua fé no governo parecem crenças totalmente blindadas contra os fatos e a lógica.

Naturalmente, esta crise atual não é exceção à regra. Esses crentes no “deus” governo logo partiram para o ataque ao livre mercado, alegando que faltou mais regulação contra a ganância do setor privado. Não obstante a paradoxal premissa de que burocratas não são gananciosos também, resta questionar que falta de regulação foi essa, já que os principais setores atingidos pela crise eram ultra-regulados. Por que esses críticos do liberalismo se recusam a comentar o excesso de regulação dos setores em crise? Por que não dizem nada sobre as regras e incentivos criados pelo próprio governo para estimular o crédito imobiliário nas faixas de baixa-renda? Por que fazem vista grossa ao fato de que países conhecidos por uma vasta e detalhada parafernália burocrática, como a França e a Rússia, estão sofrendo também com a crise? É um constrangedor silêncio por parte dos defensores de mais regulação como solução desta crise.

Se as entidades regulatórias existem para evitar crises como a atual, onde estava a Securities and Exchange Commission (SEC), o Federal Reserve System (FED), o Office of Federal Housing Enterprise Oversight (OFHEO) e demais agências governamentais? Se o vigia dorme com freqüência no posto de vigilância, então é preciso mais vigias para vigiar os outros vigias? E se isso não resolve, então é necessário mais e mais vigias, ad infinitum? Será que questionar a eficiência e os incentivos dos vigias existentes é pecado? A missão da OFHEO é promover o setor imobiliário e um sólido sistema de financiamento de casas, garantindo a segurança e solidez da Fannie Mae e Freddie Mac. O OFHEO tem como meta preservar uma estrutura de capital adequada para estas duas government-sponsored enterprises. Onde estavam então esses poderosos burocratas, já que o epicentro da crise se deu justamente nesse setor e nessas empresas semi-estatais? Para uma base de capital de apenas US$ 100 bilhões, estas empresas, contando com garantidas do governo, levantaram US$ 5 trilhões em dívidas. Será que faltou mesmo regulação do governo? Esses incompetentes burocratas serão demitidos?

Isso sem falar das ações diretas do governo americano, tentando artificialmente inflar o setor imobiliário. Em 1977 foi criado o Comunity Reinvestment Act (CRA), com o objetivo de obrigar bancos a emprestar uma parte dos seus ativos às comunidades carentes. Em 1994, o governo estendeu as metas do CRA, e em 2005, após um escândalo contábil envolvendo a Freddie Mac, o governo resolveu punir a empresa demandando mais crédito hipotecário para as classes de baixa-renda.

Esses são apenas alguns exemplos, entre muitos, que mostram como o governo e sua extensa burocracia estão com suas impressões digitais em todas as cenas do crime nessa crise. Como disse Thomas Sowell, os esforços de financiamento das entidades governamentais para obter mais financiamento do governo são o equivalente político de uma máquina de movimento perpétuo. A burocracia luta para estar sempre em constante crescimento. E como o mesmo Sowell notou, nós sempre pagamos muito caro aos burocratas pelo que eles são, mas muito pouco pelo que nós gostaríamos que eles fossem. O principal motivo disso é esta inabalável fé na burocracia e no governo. Muitos esquecem que o governo é uma abstração, e o que existe de fato são homens que concentram poder. Esses homens são imperfeitos também, possuem interesses particulares, são vítimas de ignorância, vaidade, inveja e todas as paixões que atuam sobre os demais seres humanos. A crença de que o governo é capaz de resolver todas as falhas do livre mercado beira à ingenuidade infantil. Thomas Sowell pergunta, de forma retórica: “Como alguém pode ler história e ainda confiar nos políticos?” A resposta é que esta crença é totalmente calcada na fé irracional, e não nos fatos. Seria análogo à criança que, por ignorância, ainda acredita que o Papai Noel traz seus presentes, e não os próprios pais. Questionamentos sinceros e algum olhar crítico dos fatos logo iriam refutar esta crença. Mas muitos desejam acreditar, por motivos puramente emocionais, ainda que a crença seja claramente falsa. É justamente o que ocorre em relação à fé na burocracia. Os fatos bradam contra esta crença tola, mas a ideologia acaba falando mais alto, e os crentes precisam seguir acreditando que o governo milagroso salvará o mundo, mesmo que suas ações sejam parte das causas dos problemas. Os crentes entram em fase de negação diante dos argumentos contrários, preferindo rotas de fuga, como a repetição de chavões vazios ou os rótulos pejorativos aos que pensam de forma diferente. Quando um dado ou argumento é apresentado, o crente na burocracia acaba vítima de dissonância cognitiva. Para evitar a dor da contradição, ele impede tais dados de chegar ao cérebro. Ele foge de uma reflexão honesta. Mais ou menos o que acontece com um crente fanático da Igreja Universal, quando mostram o vídeo do Bispo Macedo, fundador da seita, rindo enquanto conta dinheiro, ou ensinando os pastores a enganar os pobres coitados. Troca o deus, mas o fanatismo é o mesmo. E o engodo também. Os crentes da burocracia onisciente e clarividente depositam toda a fé no governo, transferindo o poder sobre seus destinos aos burocratas poderosos. O estatismo não passa de uma seita moderna, tão perigosa e irracional quanto às religiões retrógradas e fanáticas. Estamos assistindo a mais um episódio lamentável de devoção desses crentes, que pedem mais governo para resolver uma crise criada ou ampliada pelo próprio governo. Seria como usar sanguessugas para curar a leucemia! Será que já não passou da hora de questionar esta fé na onipotência do governo?

Não obstante o que vimos acima, mostrando como havia muita regulação, e como esse excesso burocrático é parte das causas da crise, quase todos pedem mais governo para resolver os problemas. Vários pacotes foram anunciados, rios de dinheiro foram injetados nos mercados, várias instituições foram salvas, medidas regulatórias extras foram adotadas, e nada parece surtir o efeito desejável. A crise segue se agravando, as bolsas batem recorde de baixa, os mercados de crédito continuam estressados. Mas curiosamente a fé na capacidade milagrosa dos governos continua inabalável. O presidente francês, Nicolas Sarkozy, chegou a propor a “refundação do capitalismo”. É preciso lembrar urgentemente que o capitalismo não é um produto do brilhantismo de alguns políticos, mas sim fruto de uma ordem espontânea, de baixo para cima. Precisamos de mais Mises e Hayek, e menos Keynes. Precisamos derrubar esta fé tola na burocracia. Ou isso, ou o capitalismo realmente estará ameaçado.

segunda-feira, outubro 06, 2008

INTRODUÇÃO DO LIVRO POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JR

INTRODUÇÃO DO LIVRO POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JR., DE
CLADINEI MAGNO MAGRE MENDES, EDITADO PELA UEMA, EM 2008.

INTRODUÇÃO

Caio Prado Jr., não sem razão, é considerado pela grande maioria dos
estudiosos o mais importante dos historiadores brasileiros. Suas obras encontram-se
entre as que são reputadas como as mais significativas para a compreensão da história
brasileira. Dentre elas, Formação do Brasil contemporâneo é tida, mesmo por seus mais
ardorosos adversários, como a que causou maior impacto nos estudos históricos
brasileiros, ou seja, seria a obra decisiva sobre a história do Brasil. Além disso, a
interpretação da história do Brasil que o autor formula nesse livro manteve-se
hegemônica durante décadas. Mesmo nas novas maneiras de se conceber a história
brasileira que surgiram depois dele, encontramos determinadas formulações básicas de
sua autoria. Talvez a maior prova do seu sucesso seja o fato de que basta enunciar
aquela que é considerada a mais importante das suas contribuições para os estudos
sobre a época colonial – o “sentido da colonização” – para que todos o identifiquem
como seu autor. Com efeito, não existe maior consagração para um escritor do que ser
reconhecido pela simples menção à expressão que melhor caracteriza sua obra.

Este lugar de destaque alcançado por Caio Prado na historiografia brasileira
tem sido a justificativa de muitos estudiosos que examinam sua obra sob múltiplos
aspectos: político, econômico, social, filosófico, ideológico, etc. O lugar que ele
alcançou parece ser a razão maior para que tenha se tornado um dos autores mais
estudados nas duas últimas décadas.

Quanto a nós, diferentemente dos estudiosos que justificam seu estudo pela
importância que ele adquiriu, estamos mais interessados, justamente, em compreender
os motivos que o levaram a semelhante consagração e a alcançar essa grande
notoriedade no cenário cultural e político brasileiro. Evidentemente, reconhecemos que
se trata de um personagem com múltiplas qualidades, tanto no plano pessoal como no
intelectual, mas as descartamos como elementos explicativos de semelhante fenômeno.

De nosso ponto de vista, a explicação para o respeito e a consideração que, com toda
razão, se lhe tributa encontra-se na junção autor-sociedade. Mais do que isso: como
Caio Prado se destacou justamente como um pensador da política brasileira, é na
relação política entre ele e a sociedade de sua época que julgamos encontrar os motivos
que o levaram a obter tal sucesso e a percorrer tal trajetória intelectual.

Acreditamos, com efeito, que Caio Prado soube, melhor do que qualquer outro
autor, responder às exigências da sua época, fazendo-se uma espécie de intérprete das
tendências dominantes na sociedade. No entanto, sua obra historiográfica não faz dele
apenas um grande historiador. Considerá-lo apenas por este viés redunda em uma
visão parcial de sua trajetória intelectual e política. Mais do que um historiador, ele foi
um homem político, que atuou principalmente por meio de sua função de historiador.
Podemos dizer que foi um autor que fez da história um instrumento de luta política.
Sob este aspecto, como já salientado, seu sucesso não encontra similar no Brasil.

Em razão disso, acreditamos que, para se entender o papel de destaque que teve
na historiografia brasileira, o caminho mais acertado é o estudo de seu pensamento
político, que se encontra estribado em dois grandes pilares: o da sua interpretação da
história do Brasil e o da proposta política que, por meio de seus escritos, fez à
sociedade brasileira.

Centramos nossa análise justamente nos seus livros de história e nos seus textos
de intervenção política porque é neles, mais do que nos demais, que Caio Prado
explicita o seu pensamento político, possibilitando a sua apreensão. Nosso
procedimento se justifica por ter sido nos seus livros de história que ele exerceu sua
ação política de forma mais eficaz. Realmente, foi como historiador que se tornou
conhecido e foi por meio dos seus livros de história que teve uma influência
extraordinária.

Ao longo de nossas leituras, percebemos que, para analisar o seu pensamento
político, era necessário fazer uma leitura de seus textos em ordem cronológica, de
forma a apreender o significado de cada um deles no conjunto da sua produção
intelectual. Pudemos, com isso, verificar quais formulações novas Caio Prado fez e
quais abandonou no processo de constituição do seu pensamento político

Dentre as constatações a que chegamos e que julgamos essenciais para a
compreensão do seu pensamento político, encontra-se a percepção de que houve uma
ruptura fundamental entre Evolução política do Brasil, de 1933, e Formação do Brasil
contemporâneo, publicado em 1942. Trata-se de uma questão importante, nem sempre
percebida, ainda que muitas vezes intuída, pelos seus estudiosos. Evolução é, a rigor, o
único livro marxista de Caio Prado e, em Formação, ele modifica claramente sua
concepção de história.

É verdade que já se chamou a atenção para a existência de uma diferença entre
eles. Todavia, esta é atribuída a uma compreensão mais heterodoxa do marxismo e,
principalmente, à sua aproximação com a Geografia. Evidentemente, tal aproximação é
importante em sua trajetória intelectual, mas não explica a mudança. Caio Prado
aproximou-se da Geografia justamente para buscar elementos que lhe permitissem
romper com o marxismo e abandonar a luta de classes como fator explicativo da
história brasileira. Em suma, a mudança em seu posicionamento político ocorreu por
meio de uma aproximação com a Geografia. Embora constituam faces de uma mesma
moeda, em última instância, foi a mudança no seu posicionamento político que o levou
a se aproximar da Geografia.

A leitura cronológica e comparativa das obras de Caio Prado permite-nos
identificar, em sua participação na Aliança Nacional Libertadora, em 1935, o momento
de ruptura com a sua concepção de história fundada na luta de classes e que se
encontra expressa em Evolução. Neste livro, que ele escreve movido pela sua recente
adesão ao Partido Comunista e ao marxismo e, muito provavelmente, sob o impulso de
um grande otimismo quanto às transformações sociais, a luta de classes constitui o fio
condutor da explicação da história. Entretanto, pouco tempo depois, envolve-se nas
atividades da Aliança Nacional Libertadora, uma frente política de luta pela libertação
nacional que, pelas suas próprias características, busca a união e não o confronto entre
amplos setores da sociedade. Não se trata, portanto, da libertação de uma classe, mas
de toda a nação. A partir de então, o pensamento político de Caio Prado se modifica
radicalmente. Esta nova direção consubstancia-se na obra Formação do Brasil
contemporâneo, na qual a luta de classes como linha mestra desaparece. Uma
comparação entre os artigos que publicou em 1935 acerca do programa da Aliança
Nacional e o livro Formação permite-nos, inclusive, afirmar que este último já se
encontra em gérmen naqueles.

Com base nessa constatação, pudemos interpretar a obra de Caio Prado sob
outra luz e perceber o imenso papel desempenhado pelo conceito de “sentido da
colonização” na sua interpretação da história do Brasil e, por extensão, em suas
formulações políticas. Menos do que uma explicação do processo colonial, este conceito
tinha como objetivo articular os dois pólos ou as duas formas sociais extremas entre as
quais, segundo sua maneira de conceber, transitaria o processo histórico brasileiro.

Com efeito, para ele, o processo histórico brasileiro caracterizar-se-ia justamente pela
passagem de uma economia colonial para uma economia nacional. De seu ponto de
vista, as características da economia colonial haviam sido dadas pelo sentido da
colonização, isto é, o de produzir para atender às necessidades do mercado externo. O
estabelecimento da economia nacional, cuja produção seria organizada para o
atendimento das necessidades da população, constituía a maneira de superar essas
características coloniais da economia brasileira.

Ao afirmar que a história do Brasil se caracterizava justamente por esta
transformação, Caio Prado pretendia, embora nunca o tenha explicitado, ir muito além
de uma interpretação alternativa da história brasileira. Sua intenção era romper com a
interpretação baseada na seqüência feudalismo-capitalismo-socialismo. Em última
análise, defendia a tese de que, diferentemente da Europa, por exemplo, a história do
Brasil possuía outras características. Assim, ele não estava em luta apenas contra o
marxismo esquemático e mecanicista do Partido Comunista, como querem muitos dos
seus estudiosos. Ainda que seu interlocutor fosse o Partido Comunista, a verdade é que
sua interpretação vai além das formulações desse partido, já que afirma que, pelas
condições existentes no Brasil, sua evolução histórica caracterizava-se pela
transformação da economia colonial em economia nacional.

Desse modo, para Caio Prado, a economia nacional era uma forma de
estruturação da sociedade, fato que seus estudiosos não perceberam. Ao contrário,
interpretaram esta proposição como se ele estivesse tratando da constituição da Nação,
da organização da economia brasileira (nacional) e assim por diante. Por economia
nacional, Caio Prado entendia uma forma específica de organização da economia:
aquela fundada na produção voltada para o atendimento das necessidades da
população brasileira.

Por conseguinte, segundo a maneira de Caio Prado compreender a história
brasileira, o Brasil havia conhecido, ou estava conhecendo, basicamente, duas formas
de estruturação ou organização da sua economia ou sociedade. A primeira, a colonial,
que havia sido estabelecida por meio da colonização e que, ainda à época da
publicação do livro Formação, era a dominante. A segunda, a nacional, que estava em
vias de se constituir, mediante a superação da forma colonial.

Por isso, Formação do Brasil contemporâneo é um marco decisivo na trajetória
política e intelectual de Caio Prado. Neste livro de ruptura, encontramos todos os
elementos e motivos que o levaram a alcançar um grande sucesso e a exercer uma
imensa influência sobre os estudos históricos: uma nova concepção de história, que
substituía a luta de classes por uma política de conciliação entre amplos setores sociais;
a concepção de que a libertação almejada era a da nação, ao invés de uma classe; a
concepção de que o foco e o estímulo da transformação era o mercado interno; por fim,
a concepção de que a transformação social decorreria da ação do Estado.

Estas considerações preliminares expressam o fio condutor dos seis textos que
compõem o livro e que são resultantes do estudo que, ao menos desde 1996, estamos
realizando, de modo sistemático, sobre o pensamento político de Caio Prado Jr. Três
deles já foram publicados, mas temos pelo menos dois motivos para incluí-los neste
volume. O primeiro é que, com exceção da resenha, eles tiveram uma circulação
restrita. O segundo, e o mais importante, é que, de certa maneira, eles deixam mais
claros os escritos posteriores.

O primeiro texto para o qual queremos chamar a atenção é “Caio Prado Jr. e a
história do Brasil. A colonização como produção para o mercado externo”. Ainda que
elaborado alguns anos atrás - foi redigido em 1996, como parte de um capítulo da
nossa tese de doutorado, e publicado separadamente em 1997 –, esse artigo é
fundamental para a compreensão das questões tratadas nos demais, uma vez que, nele,
assinalamos a estreita ligação entre a interpretação da história do Brasil contida em
Formação e a proposta política do autor. Basicamente, essa proposta consiste na
afirmação de que a superação das características coloniais da economia brasileira se
faria por meio do estabelecimento de uma economia nacional. A nosso ver, essa ligação
é essencial para a compreensão do pensamento político de Caio Prado.

Outro texto que consideramos fundamental para se compreender as questões
tratadas neste livro diz respeito ao marxismo e foi escrito por ocasião das
comemorações dos cento e cinqüenta anos de publicação de O Manifesto do Partido
Comunista. Embora não seja específico sobre Caio Prado, ele contém reflexões que
orientaram nossos estudos sobre seu pensamento político, especialmente o papel,
decisivo do nosso ponto de vista, desempenhado por partidos e intelectuais que, no
seio da esquerda e, freqüentemente, no interior do próprio marxismo, combateram
tanto a proposta de socialismo como a própria doutrina marxista. Destacamos também
nossa concepção de que, atualmente, menos do que fazer uma crítica, é fundamental
realizar uma avaliação histórica do papel desempenhado pelos partidos e intelectuais
de esquerda em todo esse processo.

É exatamente isso que procuramos fazer com relação a Caio Prado. Não
estamos interessados em fazer uma crítica de seus textos ou mesmo da sua atuação
política. Sua produção e sua atuação fazem parte de um processo que pertence ao
passado e, por isso, já não cabe fazer uma crítica ou travar uma polêmica com o
historiador ou o homem político. Inclusive, cabe aqui uma passagem de Spinoza que
orienta nosso estudo: “Não rir, não lamentar, não odiar. Compreender.” Entretanto,
apesar de serem parte de um processo que pertence a uma outra época histórica, suas
formulações têm enorme repercussão na atualidade. Portanto, o interesse em
compreender historicamente Caio Prado implica entender também a razão pela qual,
ainda hoje, suas formulações continuam a usufruir de um enorme prestígio entre os
historiadores. Por isso, no conjunto das questões abordadas, colocamos para o debate
nossas reflexões não apenas sobre o papel histórico desempenhado por ele, mas
também sobre a abrangência de sua trajetória política e intelectual.

Quanto aos textos que estamos publicando pela primeira vez, queremos
destacar que, em “Considerações sobre o estudo do pensamento político de Caio Prado
Jr.”, procuramos fazer, a um só tempo, uma crítica da historiografia a ele relativa e uma
reflexão sobre as questões metodológicas que envolvem o estudo do seu pensamento
político. Com efeito, nas considerações sobre qualquer historiografia e, no caso
específico, sobre os estudos acerca de Caio Prado, é preciso investigar seus aspectos
metodológicos, de forma a compreender o ponto de partida dos estudiosos. Ao mesmo
tempo, ao examinar essa historiografia, com especial atenção para o seu ponto de
partida metodológico, cabe um debate acerca do caminho mais adequado para o seu
entendimento. Por conseguinte, as considerações feitas são resultantes tanto da análise
que fizemos de sua obra com o objetivo de apreender o seu pensamento político como
do confronto com a forma como os demais autores o abordaram.

No texto “Reflexões sobre a Independência do Brasil na obra de Caio Prado Jr.”
abordamos as várias questões que têm se colocado para nós no estudo do seu
pensamento político. A primeira delas diz respeito à mudança verificada na concepção de história deCaio Prado quando comparamos os livros Evolução política do Brasil e Formação do Brasil
contemporâneo. Ou seja, diz respeito à inflexão radical no posicionamento político de
Caio Prado, expressa no seu modo de conceber a história e, consequentemente, na sua
maneira de interpretar a história do Brasil.

Poder-se-ia abordar esta questão de várias maneiras. Optamos por examinar
como a Independência do Brasil aparece nas duas obras, mas sem nos limitamos a uma
simples comparação. De uma forma mais abrangente, centramos a análise dessa
mudança no fato de que a Independência desempenha um papel estratégico na
interpretação da história do Brasil em Evolução e em Formação. Nosso objetivo é
examinar qual é a posição estratégica que esse acontecimento ocupa em cada uma das
duas obras. Esse exame confirma a existência de duas maneiras distintas de se conceber
a história, com todas as suas implicações. A maneira diferenciada com que o autor
aborda a Independência decorre da própria avaliação que ele fez desse fato nas duas
obras, ou seja, de sua atitude para com a Independência nos livros Evolução e Formação.
Na origem dessa diferença, encontramos precisamente a mudança de posicionamento
político de Caio Prado.

A segunda questão abordada em “Reflexões sobre a Independência do Brasil na
obra de Caio Prado Jr.”, também decisiva do nosso ponto de vista, relaciona-se ao fato
de que, com Formação, ele estabelece um padrão no modo de conceber a história e que
se expressa, por exemplo, na maneira própria de ele compreender a Independência.
Essa maneira, por seu turno, acabou por determinar o enfoque dado a esse tema por
grande parte da historiografia brasileira. Mais interessante ainda é que esta maneira de
conceber a Independência foi compartilhada por historiadores das mais diferentes
tendências, o que, para nós, põe em evidência, mais uma vez, a grande preponderância
exercida – e que ainda exerce - por Caio Prado nos estudos históricos brasileiros.

Ressalte-se que nem sempre se trata de uma influência direta e imediata, mas de uma
adesão à sua maneira de conceber a história do Brasil.
Quanto à resenha e à palestra, embora menores no que diz respeito à sua
dimensão, são textos importantes para figurarem no livro. Neles procuramos
estabelecer o confronto entre nossa maneira de abordar o pensamento político de Caio
Prado e a de outros estudiosos. No texto “Caio Prado e a Revolução Russa”, ainda que
rapidamente, abordamos também a relação entre autor e sociedade, tal como a
entendemos. Evidentemente, o estudo da produção intelectual de qualquer autor
coloca sempre essa questão, mas a análise levou-nos à conclusão de que, no caso de
Caio Prado, a relação se coloca de uma maneira bastante intensa e, porque não dizer,
sintomática. A nosso ver, ao considerarmos a questão por este ângulo estamos dando
um peso também àqueles aos quais o autor se dirigia. Sob este aspecto, o estudo de
Caio Prado significa, igualmente, desvendar os homens de sua época. Afinal, como
justificar o êxito desse autor senão pelo fato de que parcela significativa dos seus
contemporâneos tenha se identificado com suas formulações?

Ao final, julgamos necessário precisar melhor algumas das constatações que se
tornaram o fio condutor da análise do pensamento político de Caio Prado.
A primeira delas diz respeito à diferença fundamental entre Evolução política,
primeiro livro de Caio Prado, e os escritos subseqüentes no que diz respeito à
concepção da história, à interpretação da história do Brasil e ao seu posicionamento
político. Embora estejamos tratando aqui de uma única mudança, entendemos que ela
se expressa nesses três aspectos, dos quais o último é o determinante. Trata-se de uma
questão fundamental, por isso nunca é demais reiterá-la. Por meio da comparação
entre Evolução e Formação poderemos compreender melhor em que consiste o
pensamento político de Caio Prado e o papel histórico por ele desempenhado.

A segunda constatação é que foi nos artigos de 1935 acerca do programa da
Aliança Nacional Libertadora, mas, principalmente, no livro Formação, que Caio Prado
elaborou a maneira própria de interpretar a história do Brasil que o caracterizou e o
levou ao reconhecimento público. Note-se, além disso, que esse autor não modificou,
ao longo da sua trajetória política e intelectual, na sua essência, esse modo de
interpretar a história do Brasil. A rigor, a única modificação substancial que se verifica
em suas formulações ao longo desse período, mas que não alterou, de maneira alguma,
as linhas mestras de sua interpretação, diz respeito à questão agrária. Com efeito, de
1935, pelo menos, quando trata explicitamente dessa questão, até 1960, Caio Prado foi
partidário da reforma agrária, isto é, do parcelamento e posterior distribuição da terra.
É apenas nos textos publicados entre 1960 e 1962, na Revista Brasiliense, que ele critica a
reforma agrária. Em 1966, quando publica A Revolução Brasileira, ele aprofunda essa
crítica. Evidentemente, esta mudança no enfoque da reforma agrária deve ser
considerada em um estudo sobre seu pensamento político, já que traz consigo
conseqüências importantes. Entretanto, deixamo-la para uma outra oportunidade, pois,
como chamamos a atenção, não implica uma mudança nas linhas gerais da sua
interpretação da história do Brasil, nem da sua proposta política.

Queremos frisar, ainda, que os textos ora publicados foram elaborados ao longo
de nossa pesquisa sobre o pensamento político de Caio Prado. Além de trazerem para
o debate algumas de nossas conclusões, eles testemunham nosso esforço para
compreender o significado histórico desse autor, ou seja, o papel que desempenhou ele
na cultura e na política brasileiras