domingo, agosto 30, 2009

"VOCÊS NÃO ENTENDEM A CHINA"

http://veja.abril.com.br/220709/voces-nao-entendem-china-p-017.shtml
REVISTA VEJA - Edição 2122 / 22 de julho de 2009

Entrevista XINRAN XUE
"Vocês não entendem a China"
A escritora que criou um programa de rádio para mostrar os problemas das mulheres chinesas diz que o mundo critica seu país sem levar em conta suas raízes culturais

Thaís Oyama
Ernani d’Almeida

"Os ocidentais cometem o mesmo erro do governo chinês: acham que é só modernizar as ruas para modernizar o país"

Por quase uma década, Xinran Xue, hoje com 51 anos, recebeu mais de uma centena de cartas tristes por dia. Apresentadora de um programa de rádio voltado para mulheres, ela tornou-se depositária de ouvintes que lhe confiaram suas pequenas e grandes tragédias – abafadas, quando não provocadas, pelos anos de totalitarismo comunista. Algumas dessas experiências, Xinran havia sofrido na própria pele: seus pais foram presos durante a Revolução Cultural e ela passou a infância num quartel da Guarda Vermelha. Em 2002, publicou seu primeiro livro: As Boas Mulheres da China (lançado no Brasil pela editora Companhia das Letras), que reúne histórias que não puderam ir ao ar e outras que ela colheu em entrevistas – sempre feitas com uma única unha pintada de vermelho. "As chinesas não gostam de falar de sua vida. Mas são curiosas, e a unha vermelha sempre inicia uma conversa", explica. De passagem pelo Brasil, Xinran falou a VEJA.

Para escrever seu mais recente livro, Testemunhas da China, a senhora esteve diversas vezes na província de Xinjiang, onde quase 200 pessoas morreram nas últimas semanas em decorrência de conflitos étnicos. Como é a convivência entre os han (etnia majoritária na China) e os uigures (etnia majoritária em Xinjiang)? Atualmente, há muitos casais han-uigur, como resultado da política de governo que estimulou a migração de chineses han para a região. Mas as duas etnias são culturalmente muito diferentes. Os uigures sentem-se mais identificados com os muçulmanos dos países vizinhos do que com o resto da China. Têm uma mentalidade tribal, enquanto os han estão mais conectados à família. Honestamente, nós não os entendemos muito bem. Acho que nunca tentamos. É um pouco parecido com a maneira como o Ocidente enxerga o Oriente.


"Pergunte a um japonês se ele pode questionar o imperador ou a um sul-coreano se a filha pode contrariar o pai. Também na China há aspectos que não são políticos, mas culturais"

Não seria a maneira como o Ocidente enxerga a China? Não estou falando só da China. Acho que há desconhecimento também em relação ao Japão, à Coreia do Sul, a Cingapura, à Malásia – lugares que têm as mesmas raízes culturais que a China. Ainda que em países como o Japão e a Coreia do Sul você enxergue um verniz ocidental, se você entrar nas casas dos japoneses e dos coreanos, verá que não existe igualdade de direitos entre homens e mulheres e que eles não assimilaram preceitos democráticos.

Pergunte a um japonês se é possível questionar o imperador. Pergunte a um sul-coreano se uma filha pode contrariar o pai. Pergunte em Cingapura se alguém pode contestar o governo. Também no regime chinês, há aspectos que não são políticos, mas culturais.

Mas em nenhum desses países tais comportamentos implicam as consequências que têm na China. Concordo. Não existe liberdade de religião na China, não existe liberdade de expressão, não existe liberdade de imprensa. Nosso sistema jurídico está longe de ser independente e os direitos individuais mais básicos são desrespeitados. Mas não se pode esquecer que a China perdeu 100 anos por causa da guerra civil e do ideário comunista. Não podemos simplificar a história. Quando vemos uma árvore cujas folhas estão machucadas e cujos galhos estão doentes, não basta dizer: vamos limpar as folhas e os galhos. É preciso lembrar que essa árvore tem raízes, ainda que não possamos vê-las. É preciso tempo para que as coisas mudem.

A senhora quer dizer que é cedo demais para que a democracia chegue à China? Vou repetir uma lição que recebi de uma camponesa de Hunan, região onde nasceu Mao Tsé-tung. Entrevistei-a em 1995, quando já era jornalista, achava que sabia tudo, mas na verdade era ainda muito ingênua. A mulher trabalhava num campo de arroz. Perguntei a ela o que escolheria se eu lhe oferecesse três coisas: liberdade e democracia; marido e filhos; ou terra e dinheiro. Ela me olhou como quem diz: "Ah, você está tentando me enganar!". Respondeu que terra e dinheiro pertencem aos homens, não às mulheres. Sobre marido e filhos, disse: "Marido é quem manda em tudo e os filhos são a minha rotina", querendo dizer que aquilo ela já tinha. Então, perguntou: "Mas quanto é a garrafa de liberdade?". Eu fiquei atônita: "Como assim?". Ela repetiu: "Quanto custa essa garrafa de óleo que você quer vender?". Foi aí que eu entendi: em chinês, a pronúncia da palavra óleo (you) é muito parecida com a de liberdade (ziyou). Ela achou que eu estava querendo lhe vender óleo.

Quando ela entendeu que a senhora se referia a liberdade, o que achou da oferta? Mas ela não entendia essa palavra! Eu tive de explicar-lhe o que era e o fiz da forma que considerei mais simples. Disse algo como: "Bem, liberdade é você ter o direito de contrariar o seu marido quando você acha que ele fez algo errado. Liberdade é você ter o direito de dizer: ‘Eu quero algo para mim, não para o meu marido ou para os meus filhos – um vestido bonito, uma comida gostosa ou um dia de descanso’". Achei que, colocando desse modo, ela fosse entender. Em vez disso, olhou para mim e respondeu: "Que mulher tola você é! Isso não existe". Eu falei sobre liberdade, que é uma palavra muito mais fácil. Imagine se eu tivesse
falado sobre democracia...

Dito assim, parece que a democracia é algo que o Ocidente tenta impingir aos chineses, sem que eles queiram. Não, não. Eu concordo totalmente com a ideia ocidental de liberdade e democracia e sei que nós precisamos disso. Mas a questão é que há trinta anos esse conceito não existia na China. Os atuais governantes não foram educados à luz desse conceito. O mesmo se pode dizer dos professores. É ainda muito recente a geração de professores que aprendeu inglês e, portanto, tem acesso a pontos de vista do Ocidente. Acredito que, às vezes, os ocidentais cometem o mesmo erro que os governantes chineses, que pensam que basta modernizar as ruas para modernizar o país.

"A Guarda Vermelha entrou em casa e fez uma fogueira com tudo o que dizia ser ‘reacionário’: livros, brinquedos e até minhas tranças, ‘um penteado burguês’. A guarda cortou-as e jogou-as no fogo"

A senhora mora desde 1997 na Inglaterra. Não tem problemas para entrar na China? Tenho muitos problemas. Recentemente, eles deram um visto de dois anos a meu marido, que é inglês, e negaram o visto para mim. Isso me doeu muito. Quando finalmente consegui o visto, em novembro do ano passado, uma oficial chinesa tentou me barrar na alfândega. Ela abriu meu passaporte e disse: "Por que você é contra a China? Eu vi você na BBC, e a BBC odeia a China". Eu lhe perguntei se havia entendido o que eu dissera na TV e ela respondeu que isso não importava: o que importava é que eu não deveria ter falado com pessoas que odeiam a China.

A senhora resolveu deixar seu país num momento em que apresentava um programa de rádio de enorme sucesso, no qual era permitido que centenas de chinesas falassem pela primeira vez de seus problemas. O que motivou a decisão? Ouvir aquelas mulheres e acompanhar o desenrolar de suas histórias, muitas vezes trágico, deixou-me emocionalmente exaurida. Fiquei doente, tinha de tomar remédios para dormir. Os telefonemas, os relatos de abusos, os suicídios, as cartas de suicídio que elas deixavam para mim... Eu me sentia tão impotente! Ainda tenho aquelas vozes na minha cabeça. Aqui no Brasil, encenaram capítulos do meu livro As Boas Mulheres da China. Apesar de as atrizes falarem em português, uma língua que não entendo, o que eu ouvia eram as mulheres chinesas chorando. Isso me aniquila. Sei que é porque eu misturo o sofrimento delas com a minha própria história. Diante da encenação, não consegui me controlar. Normalmente, consigo – ao menos durante o dia. Mas, à noite, os pesadelos voltam.

Que tipo de pesadelo a atormenta? São tantos... Durante a Revolução Cultural, meus pais foram presos, acusados de ser capitalistas porque haviam trabalhado com estrangeiros e falavam inglês. Os guardas vermelhos entraram em casa e fizeram uma fogueira com tudo o que diziam ser "reacionário" ou "burguês": livros do meu pai, meus brinquedos e até minhas tranças. Eu usava duas tranças, amarradas com fitas. A guarda gritou que era um penteado burguês. Cortou-as e jogou-as no fogo também. Depois disso, fui levada, com meu irmão mais novo, para um quartel da Guarda Vermelha. Vivi lá por seis anos e meio. Como nossos pais eram considerados reacionários, éramos chamados de "crianças negras" e não podíamos brincar com as outras. Dormíamos no chão. Muitas noites, os guardas vinham, no escuro, pegavam uma criança e a levavam para o quarto ao lado. Era a hora dos abusos, dos espancamentos... Eu ouvia o choro e os gritos e ficava tão assustada que meu corpo todo tremia. A cada noite eu achava que seria a minha vez. Era aterrorizante. Acho que escapei porque era muito pequena. Até hoje, quando meu marido está viajando, não durmo sem colocar minha bolsa, minhas chaves, tíquetes de avião, qualquer coisa assim, ao lado da cama. Faço isso para não entrar em pânico quando acordar no meio da noite – para lembrar que não estou mais lá e quem eu sou agora. Não consigo me livrar disso. Procurei psicólogos, mas não funcionou. Acho que eles eram ocidentais demais para me entender.

O que, por exemplo, eles não entendiam? Bem, faz parte do tratamento você falar tudo. E isso eu ainda não consigo. Nem ao meu filho contei tudo o que aconteceu comigo durante a Revolução Cultural.

Por quê? Porque acho que, se eu contar, não terei mais condição de continuar vivendo.
Seu irmão passou pela mesma experiência na infância. Como ele vive hoje? Sinto que ele desistiu de tudo. Vive em Pequim, não tem confiança nele, não faz nada. Sei que sofre muito, embora não fale. Nunca mais o vi chorar desde aquele episódio do frango. (Ela relata a história em seu primeiro livro: o irmão tinha pouco mais de 2 anos quando, por ocasião de uma celebração nacional, serviram frango assado no quartel da Guarda Vermelha em que ambos viviam. Ao ver os outros comendo, o irmão começou a chorar, gritando que também queria. Alguém, furtivamente, deu-lhe um pedaço, mas um guarda viu a cena, arrancou a carne das suas mãos, atirou-a ao chão e pisoteou-a. Gritou: "Filhotes de cachorros imperialistas não comem frango!")
Seus pais já leram seus livros? Não. E minha mãe nunca perguntou o que aconteceu comigo durante esse período em que ficamos separadas. Não tem coragem, e eu também não tenho. Em 2004, sentamos uma diante da outra durante horas, mas não conseguimos falar sobre isso. Sei que esse silêncio se repete em muitas famílias. E é um dos motivos pelos quais muitos jovens chineses não sabem sequer o que foi a Revolução Cultural.

O regime comunista de Mao Tsé-tung teve efeitos devastadores na vida de muitas pessoas, como a senhora. E na China, que marcas ele deixou? Acho que a China, hoje, é como um quadro de Picasso: tem nariz, olhos, boca, mas tudo está fora do lugar. Ficou isolada por tanto tempo e, agora, tudo está surgindo de uma vez. Talvez uma resposta melhor seja esta: antes dos anos 80, a China era um garoto sujo e esfomeado. Nunca teve a chance de tomar um banho quente, de vestir uma roupa limpa, de forrar o estômago. Se você oferece a esse menino, em uma mão, um pão duro e velho, e na outra mão, um cardápio com nomes de pratos desconhecidos e maravilhosos, qual dos dois ele vai preferir?

O primeiro? Certamente. Ele está faminto! O cardápio pode ter comidas deliciosas, mas ele não entende o que está escrito lá e não consegue esperar para que aquele papel se transforme em comida. E não adianta alguém dizer que ele tem de comer um prato do cardápio porque é melhor para ele. Antes de dizer isso, as pessoas têm de entender a urgência dos chineses.

sábado, agosto 29, 2009

POR DENTRO DO COFRE DO MST

REPOTAGEM DA REVISTA VEJA, Edição 2128 / 2 de setembro de 2009
http://veja.abril.com.br/020909/por-dentro-cofre-mst-p-64.shtml

POR DENTRO DO COFRE DO MST

VEJA teve acesso às movimentações bancárias de quatro entidades
ligadas aos sem-terra. Elas revelam como o governo e organizações
internacionais acabam financiando atividades criminosas do movimento

Policarpo Junior e Sofia Krause

Assertivos do ponto de vista ideológico, os líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra são evasivos quan-do perguntados de onde vêm os recursos que sustentam as invasões de fazendas e manifestações que o MST promove em todo o Brasil. Em geral, respondem que o dinheiro é proveniente de doações de simpatizantes, da colaboração voluntária dos camponeses e da ajuda de organismos humanitários. Mentira. O cofre da organização começa a ser aberto e, dentro dele, já foram encontradas as primeiras provas concretas daquilo de que sempre se desconfiou e que sempre foi negado: o MST é movido por dinheiro, muito dinheiro, captado basicamente nos cofres públicos e junto a entidades internacionais. Em outras palavras, ao ocupar um ministério, invadir uma fazenda, patrocinar um confronto com a polícia, o MST o faz com dinheiro de impostos pagos pelos brasileiros e com o auxílio de estrangeiros que não deveriam imiscuir-se em assuntos do país.

VEJA teve acesso às informações bancárias de quatro organizações não governamentais (ONGs) apontadas como as principais caixas-fortes do MST. A análise dos dados financeiros da Associação Nacional de Cooperação Agrícola (Anca), da Confederação das Coo-perativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab), do Centro de Formação e Pesquisas Contestado (Cepatec) e do Instituto Técnico de Estudos Agrários e Cooperativismo (Itac) revela que o MST montou, controla e tem a seu dispor uma gigantesca e intrincada rede de abastecimento e distribuição de recursos, públicos e privados, que transitam por dezenas de ONGs espalhadas pelo Brasil:
• As quatro entidades-cofre receberam 20 milhões de reais em doações do exterior entre 2003 e 2007. A contabilização desses recursos não foi devidamente informada à Receita Federal.

• As quatro entidades-cofre repassaram uma parte considerável do dinheiro a empresas de transporte, gráficas e editoras vinculadas a partidos políticos e ao MST. Há coincidências entre as datas de transferência do dinheiro ao Brasil e as campanhas eleitorais de 2004 e 2006.

• As quatro entidades-cofre receberam 43 milhões de reais em convênios com o governo federal de 2003 a 2007. Existe uma grande concentração de gastos às vésperas de manifestações estridentes do MST.

• As quatro entidades-cofre promovem uma recorrente interação financeira com associações e cooperativas de trabalhadores cujos dirigentes são ligados ao MST.
• As quatro entidades-cofre registram movimentações ban-cárias estranhas, com vul-tosos saques na boca do caixa, indício de tentativa de ocultar desvios de dinheiro.
Entre 2003 e 2008, segundo levantamentos oficiais, cerca de trinta entidades de trabalhadores rurais receberam do governo federal o equivalente a 145 milhões de reais. O dinheiro é repassado em forma de convênios, normalmente para cursos de treinamento. O Tribunal de Contas da União já identificou irregularidades em vários desses cursos. São desvios como cadastros de pessoas que não participaram de aula alguma e despesas que não existiram justificadas com notas frias. A Anca, por exemplo, teve os bens bloqueados pela Justiça após a constatação de que uma parte dos recursos de um convênio milionário assinado com o Ministério da Educação, para alfabetizar jovens, foi parar nos cofres do MST. Teoricamente, a Anca, a Concrab, o Cepatec e o Itac são organizações independentes, sem nenhum vínculo oficial entre si ou com o MST. Mas só teoricamente. A quebra dos sigilos bancário, fiscal e telefônico das entidades-cofre mostra que elas fazem parte de um mesmo corpo, são uma coisa só, bem organizada e estruturada para dificultar o rastreamento do dinheiro que recebem e administram sem controle legal algum.

Eis um exemplo da teia que precisa ser vencida para tentar entender como os recursos deixam o cofre da entidade e viajam por caminhos indiretos ao MST. Uma das beneficiárias de repasses da Anca é a gráfica Expressão Popular. Seus sócios são todos ligados ao MST, como Suzana Angélica Paim Figueiredo, advogada do escritório do ex-deputado Luiz Eduardo Greenhalgh, que atua em causas de interesse do MST. Suzana faz parte da banca que defende o terrorista italiano Cesare Battisti, preso no Brasil. A advogada ainda é presidente de uma segunda editora, a Brasil de Fato, que também recebe recursos da Anca, também presta serviços ao MST e tem como conselheiro ninguém menos que João Pedro Stedile, líder-mor do MST, um dos principais defensores da não extradição de Battisti. Anca, Brasil de Fato e MST, embora sem vínculos aparentes, funcionavam no mesmo conjunto de salas em São Paulo. Procurada, a advogada Suzana não quis esclarecer que tipo de serviço as gráficas prestaram à Anca. Indagadas, o máximo que as três entidades admitem é que existe uma parceria entre elas. Essa parceria, ao que tudo indica, serve inclusive para ocultar as atividades do departamento financeiro do movimento sem-terra.

Além de funcionarem nos mesmos endereços, como é o caso da Itac e da Concrab, e de dividirem os mesmos assessores e telefones, como a Anca e a gráfica, as entidades curiosamente recorrem aos mesmos contadores e advogados – eles também, ressalte-se, integrantes de cooperativas ligadas ao MST. A análise dos dados sigilosos revela que Ilton Vieira Flores, o contador da Anca, o cofre principal do MST, é um dos responsáveis pelo Cepatec, outra fonte de arrecadação de dinheiro do movimento. O contador também é diretor da Cooperbio – um excelente exemplo, aliás, de como as ONGs ligadas ao MST se entranharam no governo. A cooperativa, que tem como função intermediar recursos para associações de trabalhadores rurais que se dedicam à fabricação de matéria-prima para a produção de biocombustíveis, assinou convênios milionários com a Petrobras. O presidente da Cooperbio, Romário Rossetto, é primo do presidente da Petrobras Biocombustível, o petista Miguel Rossetto, ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, uma das principais fontes de recursos da Anca, do Cepatec, da Concrab e do Itac.

Há muito que desvendar a respeito do verdadeiro uso pelo MST do dinheiro público e das verbas provenientes do exterior. A Anca, por exemplo, é investigada desde 2005 por suas ligações com o movimento. A quebra do sigilo mostra que funcionários da entidade realizaram saques milionários em dinheiro em datas que coincidem com manifestações promovidas pelo MST e também com períodos eleitorais. Outra coincidência: tabulando os gastos das entidades, resta evidente que parte expressiva dos recursos é destinada a pessoas físicas ou jurídicas vinculadas ao MST. Há também transferências bancárias suspeitíssimas. Em agosto de 2007, 153 000 reais do Cepatec foram parar na conta de Márcia Carvalho Sales, uma vendedora de cosméticos residente na periferia de Brasília. "Não sei do que se trata, não sei o que é Cepatec e não movimento a conta no banco há mais de três anos", diz a comerciária. O Cepatec também não quis se pronunciar.

Para fugir a responsabilidades legais, o MST, embora seja onipresente, não existe juridicamente. Não tem cadastro na Receita Federal, e, portanto, não pode receber verbas oficiais. "Por isso, eles usam essas entidades como fachada", diz o senador Alvaro Dias, do PSDB do Paraná, que presidiu a CPI da Terra há quatro anos e, apesar de quebrar o sigilo das ONGs suspeitas, nunca conseguiu ter acesso aos dados bancários. Aliados históricos do PT, os sem-terra encontraram no governo Lula uma fonte inesgotável de recursos para subsidiar suas atividades. Uma parcela grande dos convênios com as entidades ligadas ao MST destina-se, no papel, à qualificação de mão de obra. Mas é quase impossível averiguar se esse é mesmo o fim da dinheirama. "Hoje o MST só sobrevive para parasitar o estado e conseguir meios para se sustentar", diz o historiador Marco Antonio Villa.

O MST sempre utilizou o enfrentamento como peça de marketing do movimento. No governo passado, os sem-terra chegaram a organizar uma marcha que reuniu 100 000 pessoas em um protesto em Brasília, além de invadirem a fazenda do presidente da República com direito a transmissão televisiva. No governo Lula, a relação começou tensa, mas foi se acalmando à medida que aumentavam os repasses de dinheiro e pessoas ligadas ao movimento eram nomeadas para chefiar os escritórios regionais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O MST passou, então, a concentrar os ataques à iniciativa privada, especialmente ao agronegócio. Os escritórios do Incra se tornaram suporte para ações contra produtores rurais, muitos deles personagens influentes na base aliada do governo. Além disso, os assentamentos contribuíram para aumentar a taxa de desmatamento e as ONGs ligadas à reforma agrária se tornaram um ralo pelo qual o dinheiro público é desviado. Esse estado de coisas levou à instalação de uma CPI no Senado e, ato contínuo, a um recuo do Planalto nos afagos aos sem-terra. A pretexto da crise econômica mundial, o governo cortou mais de 40% da verba prevista para os programas de reforma agrária. Cedendo à pressão de ruralistas, tirou das mãos do MST o comando de escritórios estratégicos do Incra, como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Pernambuco, e colocou no lugar pessoas indicadas por ruralistas. Por fim, o golpe mais dolorido: fechou a milionária torneira dos convênios.


As ONGs ligadas ao MST chegaram a receber quase 40 milhões de reais em um único ano. No início do governo Lula, em 2003, esses repasses não alcançavam 15 milhões de reais. No ano seguinte, cresceram substancialmente, ultrapassando os 23 milhões de reais. Em 2005, o valor aumentou novamente, atingindo 38 milhões de reais. No segundo mandato, as denúncias de irregularidades envolvendo entidades ligadas aos sem-terra ganharam força. E o dinheiro federal para elas foi minguando. Em 2007, ano de abertura da CPI, os repasses às ONGs ficaram em 28 milhões de reais. No ano passado, as entidades receberam 13 milhões. E, nos oito primeiros meses deste ano, os cofres das ONGs do MST acolheram menos de 7 milhões de reais em convênios com o governo federal. Como reação, a trégua com o governo também minguou. No início de agosto, 3 000 militantes invadiram a sede do Ministério da Fazenda. A ação em Brasília foi comandada pela nova coordenadora nacional do MST, Marina dos Santos, vinculada a setores mais radicais do movimento. No protesto, o MST exigiu o assentamento imediato de famílias que estão acampadas. Nos bastidores, negocia a retomada dos repasses para as ONGs e a recuperação do comando das unidades do Incra. Em conversas reservadas, existem até ameaças de criar problemas para a candidatura presidencial da ministra Dilma Rousseff. O governo Lula agora experimenta o gosto da chantagem de uma organização bandida que cresceu sob seus auspícios.

Com reportagem de Otávio Cabral

quinta-feira, agosto 20, 2009

CAIO PRADO JÚNIOR: A CONSTRUÇÃO DE UM MITO.

Claudinei Magno Magre Mendes (UNESP – C. de Assis)


INTRODUÇÃO

Criou-se um mito em torno de Caio Prado Júnior. Os anos 80 podem ser assinalados como o início desse processo, embora seus contornos definitivos tenham surgido apenas na década de 90, quando o autor passou a ser caracterizado, de maneira hegemônica, como revolucionário. É interessante observar que, até então, ele não havia sido objeto de estudos e que, quando foi caracterizado, isso se verificou nas polêmicas travadas, principalmente, no interior do Partido Comunista. Foi somente a partir da década de 80 e, particularmente, da seguinte que ele tornou objeto de estudo, vindo a predominar sua caracterização como autor revolucionário. Antes disso, temos notícia de apenas dois autores que o analisaram com mais vagar, mesmo ele não sendo o tema central dos estudos: Dante Moreira Leite, em O caráter nacional brasileiro, tese defendida em 1954 e publicada, com modificações, em 1969, e Carlos Guilherme Mota, em Ideologia da cultura brasileira (1977).

É verdade que sua biografia presta-se bastante a esse propósito. Membro de tradicional família de São Paulo ligada à cafeicultura e com grande participação na vida política brasileira, teve uma educação em tudo parecida com a dos membros de sua classe. Estudou em casa com professores particulares, depois, no Colégio São Luís e, em 1923, foi à Inglaterra, onde, em Londres, frequentou o Chelmsford College de Eastborn. Formou-se pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (1924-1928), desenvolvendo no período uma grande atividade política. Ingressou no Partido Democrático em 1928. Ainda como membro desse partido, apoiou a candidatura de Getúlio Vargas: foi preso por lhe dar vivas em uma recepção ao candidato oficial, Júlio Prestes. Desiludiu-se, todavia, com os rumos tomados pela Revolução Liberal e, em uma atitude que é considerada como sua grande travessia ou ruptura radical, rompeu com sua classe, abraçando a causa revolucionária (FERNANDES, 1991; REIS, 1999, p. 173-174). Filiou-se, em 1931, ao Partido Comunista Brasileiro e se tornou marxista. Em 1933, com 26 anos, fez uma viagem à União Soviética, experiência que resultou na obra URSS, um novo mundo, publicada no ano seguinte. Ainda em 1933, publicou Evolução Política do Brasil, livro considerado um marco na historiografia brasileira pelo fato de, pela primeira vez, introduzir as classes sociais e seus conflitos em uma interpretação da história do Brasil (MOTA, 1977, p. 28). Tornou-se, de acordo com a historiografia, um intelectual orgânico da classe operária, valendo-se do instrumental teórico marxista de maneira criativa, isto é, adaptando-o às condições particulares do Brasil (RICUPERO, 2000, p. 58) Foi um dos fundadores da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), em 1934 (SEABRA, 2008, p. 18). No ano seguinte, participou da Aliança Nacional Libertadora (ANL), como vice-presidente da secção de São Paulo (IUMATTI, 2007, p. 31). Produziu uma vasta obra, transitando por vários campos do conhecimento (história, economia, filosofia) e lançando as bases, na opinião dos estudiosos, para a compreensão da história do Brasil com o livro Formação do Brasil contemporâneo, publicado em 1942. Foi preso diversas vezes e viveu no exílio. Eleito deputado estadual pelo Partido Comunista, em 1947, foi cassado no ano seguinte. Fundou uma editora, a Brasiliense, em 1943, e uma revista, a Revista Brasiliense, em 1955. Além disso, ao longo da sua trajetória política, foi um crítico do Partido Comunista Brasileiro e da sua interpretação da história do Brasil. Apesar disso, não rompeu com o partido, nele permanecendo como militante disciplinado.
Como se pode verificar, sua biografia tem os componentes necessários para, além de se tornar nome de destaque no cenário intelectual e político do Brasil, ser caracterizado como autor revolucionário. Entretanto, ainda que sua história de vida forneça elementos para tal, não pode, evidentemente, explicá-la. Isso constituiria uma simplificação, já que a explicação não se encontra no autor, mas, na historiografia que assim o caracterizou. Por conseguinte, o foco não deve incidir sobre ele, mas, fundamentalmente, sobre as condições históricas e políticas que deu origem a esse modo de concebê-lo. Em outras palavras, a atenção deve estar voltada para a historiografia e para as questões políticas que lhe dizem respeito.
Para explicar esse processo de mitificação dividimos nossa análise em duas partes. Na primeira parte, examinamos e procuramos apreender o ponto de partida da sua obra, isto é, o móvel de sua elaboração. Pretendemos destacar as razões que o levaram a fazer semelhante interpretação da história do Brasil. Na segunda, centrada nas questões políticas da atualidade, nosso propósito é assinalar os motivos que conduziram a historiografia a caracterizá-lo como um autor revolucionário. Em outras palavras, consideramos o uso político dessa caracterização.

1. CAIO PRADO E O SENTIDO DA HISTÓRIA DO BRASIL

Em Formação do Brasil contemporâneo, como o próprio título indica, Caio Prado preocupou-se em explicar o Brasil do século XX, mostrando como ele havia se constituído.

Analisou, inicialmente, a colonização, observando que ela foi marcada pela organização de uma produção que atendesse às necessidades do mercado externo ou europeu. A esse tipo de organização denominou colônia de exploração, em oposição às colônias de povoamento, voltadas, essencialmente, para o mercado interno. Em razão de sua finalidade, a economia brasileira foi estruturada por meio da grande propriedade, da produção em larga escala, da monocultura e do trabalho escravo. De seu ponto de vista, uma economia se definia como colonial quando produzia para o mercado externo, para a satisfação de necessidades alheias.

Essa situação começou a se modificar em fins do século XVIII e início do XIX, quando o setor da economia destinado ao abastecimento do mercado interno, que denominou de agricultura de subsistência, passou a se desenvolver em decorrência, fundamentalmente, do crescimento da população e do fato de a sociedade se tornar cada vez mais complexa.

Por esse motivo, o autor escolheu esse período como momento estratégico para analisar a história brasileira. Era o momento em que a obra colonizadora dos portugueses havia esgotado suas possibilidades e o Brasil começava a se renovar (PRADO JR., 1981, p. 9-10). Seu propósito era chamar a atenção para o sentido da história do Brasil, assinalando que a linha mestra de seu desenvolvimento, conforme expressão sua, era a transição da economia colonial para a economia nacional (PRADO JR., 1977, p. 83). Portanto, retratou o Brasil contemporâneo como um organismo em transição, definido pelo “(...) passado colonial que se balanceia (...) mais as transformações que se sucederam no decorrer do centênio anterior a este e no atual” (1981, p. 10). Mais adiante completou: “Mas este novo processo histórico se dilata, se arrasta até hoje. E ainda não chegou a seu termo” (1981, p. 10).

A historiografia explicou sua interpretação como resultante da aplicação criativa do marxismo à análise da história brasileira. Em virtude disso, costuma destacar que Caio Prado foi um crítico da tese feudal do Partido Comunista, considerando que o confronto entre ele e o partido constitui a melhor maneira para se compreender sua obra. Nesse confronto, contrapõe seu marxismo ao marxismo mecanicista e esquemático dos comunistas.

No entanto, consideramos que isso não basta para explicar o modo como o autor interpretou a história brasileira. É preciso examinar essa interpretação, sobretudo, de uma perspectiva política.

É verdade que, em algumas oportunidades, Caio Prado apresentou sua interpretação por meio da crítica ao Partido Comunista. Tem-se, com isso, a impressão de que o móvel da sua elaboração foi a oposição à interpretação do Partido a respeito da história do Brasil. Assim, afirmando que a interpretação do Partido era um decalque da experiência europeia, colocou como necessário buscar a especificidade do Brasil. Recusou-se, por isso, a se valer de conceitos como feudalismo para caracterizar as relações sociais no Brasil. Ao se recusar a isso, no entanto, desconsiderou, também, outros conceitos, nunca destacados pela historiografia, como os de capitalismo e socialismo. Não podemos, infelizmente, desenvolver esta questão com a profundidade que merece. Mas, ainda que brevemente, faremos algumas considerações.

Opondo-se à interpretação do Partido Comunista, Caio Prado formulou, na verdade, outra linha de desenvolvimento para a história brasileira, a qual teria dois momentos básicos, a economia colonial e a economia nacional. Fundamentalmente, de seu ponto de vista, a história brasileira era o processo de transição de uma para outra; seu sentido era, por conseguinte, a constituição de uma economia nacional. Desse modo, lançava os pilares da tese que o Brasil contemporâneo era ainda uma economia com características coloniais que, no entanto, caminhava para a estruturação de uma economia voltada para o mercado interno e para o atendimento das necessidades da população brasileira, uma economia nacional.

A historiografia brasileira não compreendeu essa formulação de Caio Prado. Não considerou, com efeito, que, por economia colonial e economia nacional, esse autor considerava duas formas de organização social, social, da mesma maneira que o eram o feudalismo, capitalismo e socialismo. De sua perspectiva, esses dois conceitos correspondiam às formas de organização social próprias da história de países como o Brasil, assim, substituindo aquelas que eram próprias dos países europeus. A historiografia, por seu turno, entendeu que esse autor tratava da “(...) passagem da colônia para a nação, da estrutura colonial para a estrutura nacional” (NOVAES, 1986, p. 17), “(...) da transição entre a situação colonial e a situação nacional” (RICUPERO, 2000, p. 161).

Por meio da formulação de que a história do Brasil se caracterizava pela passagem da economia colonial para a economia nacional, Caio Prado chegou a duas conclusões acerca da tarefa política dos brasileiros. Primeiro, que a solução não estava na revolução democrático-burguesa, como pretendia o Partido Comunista, promovendo o desenvolvimento das relações capitalistas. Este aspecto é sempre destacado pela historiografia. Segundo, que a luta política não era em torno da revolução socialista, aspecto nunca assinalado pelos seus estudiosos. Para ele, o Brasil não era um país capitalista, mas uma economia com características coloniais. Sua superação, em razão disso, dar-se-ia pelo seu oposto ou contrário, a economia nacional. Entretanto, não são poucos os autores que concluíram que Caio Prado supunha que o Brasil poderia se desenvolver em moldes capitalistas antes de encetar uma luta contra o socialismo (SANTOS, 2001, p. 123). Diga-se de passagem, também está longe dos propósitos desse autor caracterizar a colonização do Brasil como capitalista.

À primeira vista, poder-se-ia supor a afirmação de que o Brasil tendia para o estabelecimento da economia nacional e não do socialismo decorreu da sua interpretação da história do Brasil. No entanto, é o inverso que se verifica. Foi sua posição política contrária ao socialismo e às soluções radicais que o levou a interpretar a história do Brasil dessa maneira. Foi sua oposição ao socialismo e a conseqüente busca de uma alternativa a ele que constitui o elemento gerador da sua obra, seu impulso vital, sua razão de ser. Assim, ao elaborar sua interpretação Caio Prado não teve em conta simplesmente se contrapor à interpretação do Partido Comunista. Seu propósito ia além: oferecer uma resposta à proposta de socialismo (Ver MENDES, 2008).

É importante ressaltar também que Caio Prado não se opôs ao socialismo de maneira direta e explícita. Sua oposição se fez de modo indireto e oblíquo, por meio da afirmação, retomada em várias oportunidades, que a proposta de socialismo era prematura nas condições existentes no Brasil. Não negou, portanto, em tese, a luta pelo socialismo. Apenas postergou-a para um futuro incerto, posterior ao estabelecimento da economia nacional. Acrescente-se não se tratar de uma opinião conjuntural, mas da formulação que norteou a elaboração da sua obra.

Essas observações não têm por intenção criticar ou polemizar com Caio Prado. De nosso ponto de vista, a maneira de superar sua interpretação não é confrontando-a com outra, mas considerando-a historicamente. Isso significa assinalar que sua interpretação foi formulada no interior de um contexto histórico e com uma motivação política clara. Sua atuação política, lastreada por essa interpretação, faz parte do passado e, dessa perspectiva, a crítica e a polêmica não têm sentido. Vivemos, de fato, um momento histórico distinto, quando o socialismo não constitui uma alternativa histórica, graças, inclusive, à sua obra e à de outros autores que conjuraram a ameaça do socialismo. Sob esse aspecto, Caio Prado foi vitorioso.

Se, dessa perspectiva, sua atuação política e sua obra fazem parte do passado, no entanto, sua interpretação da história do Brasil, em suas linhas gerais, permanece dominante, especialmente seu fundamento: a caracterização de colônia como produção voltada para o mercado externo. Entretanto, as razões da sua permanência não são as mesmas que lhe deram origem. Ao contrário, são circunstâncias históricas novas que prolongam sua existência. Atualmente, a questão não se refere ao socialismo. Agora, trata-se de examinar a historiografia e buscar entender as razões que a levaram a caracterizá-lo como um autor revolucionário. O destaque é, então, o uso político de Caio Prado. Ou seja, não estamos diante de uma interpretação equivocada da sua obra, mas de uma caracterização que está em consonância com as questões do nosso tempo.

2. A HISTORIOGRAFIA SOBRE CAIO PRADO

Chamamos a atenção para o fato de que, ao longo da trajetória política e intelectual de Caio Prado, o socialismo constituiu uma questão real, que ele enfrentou, fundamentalmente, por meio dos seus escritos. Neles combateu o socialismo, colocando, em seu lugar, o que denominou economia nacional. Diversos autores interpretaram essa formulação afirmando que pretendia a estruturação da nação. Todavia, acreditamos ter ficado claro que, para ele, economia nacional constituía uma forma de organização econômica e social. Também não cabe debater se o Brasil se encontrava ou não preparado para o socialismo no período compreendido entre as décadas de 30 a 60, quando grande parte da sua obra foi produzida. Independentemente disso, o socialismo era uma questão da sua época e que impunha uma resposta, que o apoiasse ou se lhe opusesse. Também destacamos que, atualmente, o socialismo não constitui mais uma perspectiva histórica. Sob este aspecto, a obra de Caio Prado perdeu sua razão de ser. Entretanto, curiosamente, precisamente quando isso ocorreu, verificou-se um grande interesse por sua obra. Ao mesmo tempo, sua caracterização como autor revolucionário adquiriu contornos definitivos, tornando-se hegemônica. Mais do que hegemônica, única.

Evidentemente, Caio Prado sempre foi considerado um autor marxista e comunista. Entretanto, sua figura como autor revolucionário nem sempre sobressaiu nas análises anteriores à década de 90. É fato que essa caracterização apareceu em 1982 (IGLÉSIAS), aliás, título do seu texto: “Um historiador revolucionário”. Mas, de um modo geral, predominou a figura do historiador (NOVAIS, 1986).

Duas questões devem ser observadas. A primeira: ao longo da sua trajetória política, a obra de Caio Prado não foi analisada. A nosso ver, isso se explica pelo fato de que o papel que então desempenhava nas lutas políticas era o ponto principal, tornando-se, nesse momento, irrelevante o seu estudo. A segunda: a partir de um dado momento, surgiu um grande interesse por seus escritos. Sem dúvida alguma, em grande parte, sua morte despertou esse interesse, mas ela é insuficiente para explicar sua caracterização como autor revolucionário.

Esse crescente interesse diz respeito às novas circunstâncias históricas do final da década de 80 e início da seguinte. Com efeito, com a derrocada do socialismo, uma nova questão se colocou: enfrentar o capitalismo, única forma social então vigente. Liberto das ameaças do socialismo, o capitalismo entrara em uma nova etapa. Teve início uma ruptura dos controles criados pela intervenção do Estado e o capital passou a buscar as preocupações que haviam limitado sua ação desde, ao menos, a crise de 29, a construção do Estado do Bem-Estar e a guerra fria. Nesse momento, a crítica ao capitalismo adquiriu uma nova feição, agora em função de uma nova circunstância: sem a possibilidade de sua transformação revolucionária. A crítica resume-se, em última instância, à proposição de instrumentos que limitassem a ação do capital. Decorre disso o fato de a crítica ao capitalismo ter assumido a forma de crítica ao neoliberalismo e à globalização, que passaram a encarnar as novas tendências do capitalismo. Surgiu, então, uma reação a esse impulso do capital e, por isso, não é casual que, a partir dessa época, tenha se acentuado na sociedade uma posição que se poderia definir como “de esquerda”. Pode-se mesmo afirmar que a sociedade, como um todo, inclinou-se “para a esquerda”. Esta constitui sua característica mais recente. Assim, fica patente que a sociedade brasileira, se não desejava o socialismo, também não queria o capitalismo, ao menos em sua forma liberal.

Foi precisamente nesse momento que ganhou corpo a caracterização de Caio Prado como um autor revolucionário. Tendo cumprido seu papel no combate ao socialismo, ele passou a ser destacado como um crítico do capitalismo. Tratava-se de atualizá-lo, transformá-lo em um autor revolucionário, cuja vida esteve dedica à transformação da sociedade. Este foi o papel desempenhado pela historiografia: adequar esse autor às novas demandas políticas. O historiador que havia lançado as bases para a compreensão da colonização, por exemplo, foi suplantado pelo revolucionário. Desse modo, o combate ao capitalismo em sua forma liberal foi levado adiante pela historiografia por meio da construção de uma imagem de Caio Prado adequada aos novos tempos. A partir de então, não é sua interpretação da história do Brasil que desempenhou um papel político, mas a imagem que dele se criou. Com isso, sua obra se converteu em objeto de estudos e ele se tornou um dos autores mais analisados nas duas últimas décadas.

Todavia, ainda que a imagem que se criou de Caio Prado esteja em completa oposição ao papel que desempenhou ao longo da sua trajetória, sua obra possui um componente que a torna atual e, sob certos aspectos, faz com que não se encontre em desacordo com seu uso político atualmente, por paradoxal que possa parecer. Existe, com efeito, uma faceta em sua obra, bastante descurada por seus estudiosos: sua oposição ao capitalismo. Não se trata, ressalte-se, de um autor que, crítico do capitalismo, fosse partidário do socialismo. Sua crítica ao capitalismo decorria da sua posição contrária ao socialismo, mas, como adversário do socialismo, não necessariamente defendia o capitalismo. Ele foi, assim, adversário, ao mesmo tempo, do socialismo e do capitalismo. Poder-se-ia caracterizar sua posição como uma oposição ao socialismo vinda da esquerda. Talvez seu texto de 1947, “Fundamentos econômicos da revolução brasileira”, seja aquele que melhor ilustra esse ponto de vista.

2.1. “FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA”: o anticapitalismo via antisocialismo.

Em “Fundamentos”, Caio Prado afirmou que a revolução brasileira não seria feita por meio do “fomento do capitalismo” ou por intermédio de uma “revolução democrático-burguesa”. Para ele, a situação em que o país se encontrava e o atraso da sua economia não derivavam da debilidade do capitalismo brasileiro, mas de suas características coloniais. A seu ver, a burguesia capitalista não tinha interesse em livrar a economia brasileira de suas contingências coloniais por se beneficiar dessa situação. Além disso, entendia que a livre concorrência e a iniciativa privada, elementos fundamentais do capitalismo, não eram “(...) de modo algum fatores capazes de dar conta da tarefa de reestruturação da economia brasileira nos moldes em que isto se faz necessário”, pois implicavam em uma perda considerável de esforços e um desperdício de energias e convulsões periódicas que o país estava longe de poder suportar. Acrescentou que os tempos eram outros (PRADO JR., 1947, p. 6).


Não é nesse novo mundo da árdua luta inter-imperialista, em que o Brasil já ficou tão para trás, que se repetirá aqui a epopéia do capitalismo norte-americano com que tantas vezes nos acenam as forças conservadoras desejosas de nos iludir com miragens tentadoras. O mundo liberal do século XIX está definitivamente morto; e não será no Brasil que ele ressuscitará. As molas propulsoras do capitalismo (o enérgico individualismo e o forte estímulo da iniciativa privada) não funcionam mais no mundo moderno; nem cabem mais nele. Não será agora no Brasil, onde nunca existiram, que irão se constituir para realizar a grande tarefa de reestruturação e transformação da face do país (PRADO JR., 1947, p. 6).


Evitou, no entanto, cair no extremo oposto, alertando que não estava afirmando que havia soado a última hora do capitalismo no Brasil. Segundo ele, a iniciativa privada tinha ainda muito a realizar. No entanto, destacou que não se poderia deixar a livre iniciativa ao seu arbítrio. Antes, deveria ser “(...) estritamente regularizada e encaminhada para aqueles setores da atividade onde a necessidade dela se faça mais sentir frente aos interesses gerais do país. E complementada e substituída sempre que convier e pela ação direta do Estado ou de seus órgãos representativos dos interesses da coletividade” (PRADO JR., 1947, p. 6). Concluiu: “Em suma, trata-se de aproveitar o capitalismo naquilo que ele ainda oferece de positivo nas condições atuais do Brasil; e contê-lo, e o suprimir mesmo no que possa se opor às reformas que o país necessita. E ao mesmo tempo, ir preparando os elementos necessários para a futura construção do socialismo brasileiro” (PRADO JR., 1947, p. 6. Grifos nossos).

Como se pode perceber, Caio Prado não apenas afirmou que o capitalismo era inviável nas condições históricas existentes como também entendeu que a livre iniciativa deveria, no Brasil, ser controlada, dirigida, no sentido de subordiná-la aos parâmetros estabelecidos pela economia nacional. Assim, a iniciativa privada continuaria existindo, mas seu móvel não seria o lucro e sim o atendimento das necessidades da população brasileira. Em última análise, pretendia uma sociedade baseada, ao menos parcialmente, na iniciativa privada, mas funcionando como uma economia nacional.

Acreditamos residir nesse ponto o grande sucesso de Caio Prado; essa parece ser a razão pela qual é considerado o mais importante historiador brasileiro. No entanto, reside também aí o fato de ele ter se tornado um autor bastante estudado recentemente e de ser caracterizado, na maioria das vezes, como um autor revolucionário. Em suma, seu sucesso deriva do fato de ele ter se oposto tanto ao socialismo quanto ao capitalismo.

CONCLUSÃO

Ao longo do texto, chamamos a atenção para dois momentos distintos da trajetória de Caio Prado. Quanto ao primeiro, representado pela época em que ele elaborou sua obra e desenvolveu uma grande atividade política, procuramos ressaltar que esta foi concebida enquanto oposição ao socialismo e, portanto, sua interpretação da história do Brasil tem nesse posicionamento sua razão de ser. Foi uma luta foi vitoriosa, já que o socialismo tornou uma coisa do passado. É então que tem início o segundo momento, aquele em que a historiografia atualiza sua obra. A questão já não é a oposição ao socialismo, com a qual, sem que isso ficasse explícito, amplos setores da população se identificassem. Caso contrário, não se tornaria a maior referência entre os historiadores e demais cientistas sociais. A partir desse momento, sua biografia se torna o elemento central, e sua obra, interpretada como revolucionária, assume a comprovação de sua caracterização como autor revolucionário. Isso explica a necessidade de se insistir em caracterizá-la como uma obra marxista, cujo autor estaria interessado na transformação da sociedade.

No entanto, como procuramos salientar, Caio Prado talvez tenha sido o autor que melhor expressou a sociedade brasileira. Sob este aspecto, pode-se afirmar que o que se verifica atualmente com ele não deixa de ser um desdobramento da sua posição política e da sua obra. Justamente por isso, dos autores que tiveram uma atuação com estes componentes, ninguém melhor do que ele soube expressar os impasses de uma nação que, tendo chegado atrasada ao capitalismo na sua forma industrial, considerou tanto o socialismo quanto o capitalismo como ameaças.

REFERÊNCIAS

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