Claudinei Magno Magre Mendes (UNESP – C. de Assis)
INTRODUÇÃO
Criou-se um mito em torno de Caio Prado Júnior. Os anos 80 podem ser assinalados como o início desse processo, embora seus contornos definitivos tenham surgido apenas na década de 90, quando o autor passou a ser caracterizado, de maneira hegemônica, como revolucionário. É interessante observar que, até então, ele não havia sido objeto de estudos e que, quando foi caracterizado, isso se verificou nas polêmicas travadas, principalmente, no interior do Partido Comunista. Foi somente a partir da década de 80 e, particularmente, da seguinte que ele tornou objeto de estudo, vindo a predominar sua caracterização como autor revolucionário. Antes disso, temos notícia de apenas dois autores que o analisaram com mais vagar, mesmo ele não sendo o tema central dos estudos: Dante Moreira Leite, em O caráter nacional brasileiro, tese defendida em 1954 e publicada, com modificações, em 1969, e Carlos Guilherme Mota, em Ideologia da cultura brasileira (1977).
É verdade que sua biografia presta-se bastante a esse propósito. Membro de tradicional família de São Paulo ligada à cafeicultura e com grande participação na vida política brasileira, teve uma educação em tudo parecida com a dos membros de sua classe. Estudou em casa com professores particulares, depois, no Colégio São Luís e, em 1923, foi à Inglaterra, onde, em Londres, frequentou o Chelmsford College de Eastborn. Formou-se pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (1924-1928), desenvolvendo no período uma grande atividade política. Ingressou no Partido Democrático em 1928. Ainda como membro desse partido, apoiou a candidatura de Getúlio Vargas: foi preso por lhe dar vivas em uma recepção ao candidato oficial, Júlio Prestes. Desiludiu-se, todavia, com os rumos tomados pela Revolução Liberal e, em uma atitude que é considerada como sua grande travessia ou ruptura radical, rompeu com sua classe, abraçando a causa revolucionária (FERNANDES, 1991; REIS, 1999, p. 173-174). Filiou-se, em 1931, ao Partido Comunista Brasileiro e se tornou marxista. Em 1933, com 26 anos, fez uma viagem à União Soviética, experiência que resultou na obra URSS, um novo mundo, publicada no ano seguinte. Ainda em 1933, publicou Evolução Política do Brasil, livro considerado um marco na historiografia brasileira pelo fato de, pela primeira vez, introduzir as classes sociais e seus conflitos em uma interpretação da história do Brasil (MOTA, 1977, p. 28). Tornou-se, de acordo com a historiografia, um intelectual orgânico da classe operária, valendo-se do instrumental teórico marxista de maneira criativa, isto é, adaptando-o às condições particulares do Brasil (RICUPERO, 2000, p. 58) Foi um dos fundadores da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), em 1934 (SEABRA, 2008, p. 18). No ano seguinte, participou da Aliança Nacional Libertadora (ANL), como vice-presidente da secção de São Paulo (IUMATTI, 2007, p. 31). Produziu uma vasta obra, transitando por vários campos do conhecimento (história, economia, filosofia) e lançando as bases, na opinião dos estudiosos, para a compreensão da história do Brasil com o livro Formação do Brasil contemporâneo, publicado em 1942. Foi preso diversas vezes e viveu no exílio. Eleito deputado estadual pelo Partido Comunista, em 1947, foi cassado no ano seguinte. Fundou uma editora, a Brasiliense, em 1943, e uma revista, a Revista Brasiliense, em 1955. Além disso, ao longo da sua trajetória política, foi um crítico do Partido Comunista Brasileiro e da sua interpretação da história do Brasil. Apesar disso, não rompeu com o partido, nele permanecendo como militante disciplinado.
Como se pode verificar, sua biografia tem os componentes necessários para, além de se tornar nome de destaque no cenário intelectual e político do Brasil, ser caracterizado como autor revolucionário. Entretanto, ainda que sua história de vida forneça elementos para tal, não pode, evidentemente, explicá-la. Isso constituiria uma simplificação, já que a explicação não se encontra no autor, mas, na historiografia que assim o caracterizou. Por conseguinte, o foco não deve incidir sobre ele, mas, fundamentalmente, sobre as condições históricas e políticas que deu origem a esse modo de concebê-lo. Em outras palavras, a atenção deve estar voltada para a historiografia e para as questões políticas que lhe dizem respeito.
Para explicar esse processo de mitificação dividimos nossa análise em duas partes. Na primeira parte, examinamos e procuramos apreender o ponto de partida da sua obra, isto é, o móvel de sua elaboração. Pretendemos destacar as razões que o levaram a fazer semelhante interpretação da história do Brasil. Na segunda, centrada nas questões políticas da atualidade, nosso propósito é assinalar os motivos que conduziram a historiografia a caracterizá-lo como um autor revolucionário. Em outras palavras, consideramos o uso político dessa caracterização.
1. CAIO PRADO E O SENTIDO DA HISTÓRIA DO BRASIL
Em Formação do Brasil contemporâneo, como o próprio título indica, Caio Prado preocupou-se em explicar o Brasil do século XX, mostrando como ele havia se constituído.
Analisou, inicialmente, a colonização, observando que ela foi marcada pela organização de uma produção que atendesse às necessidades do mercado externo ou europeu. A esse tipo de organização denominou colônia de exploração, em oposição às colônias de povoamento, voltadas, essencialmente, para o mercado interno. Em razão de sua finalidade, a economia brasileira foi estruturada por meio da grande propriedade, da produção em larga escala, da monocultura e do trabalho escravo. De seu ponto de vista, uma economia se definia como colonial quando produzia para o mercado externo, para a satisfação de necessidades alheias.
Essa situação começou a se modificar em fins do século XVIII e início do XIX, quando o setor da economia destinado ao abastecimento do mercado interno, que denominou de agricultura de subsistência, passou a se desenvolver em decorrência, fundamentalmente, do crescimento da população e do fato de a sociedade se tornar cada vez mais complexa.
Por esse motivo, o autor escolheu esse período como momento estratégico para analisar a história brasileira. Era o momento em que a obra colonizadora dos portugueses havia esgotado suas possibilidades e o Brasil começava a se renovar (PRADO JR., 1981, p. 9-10). Seu propósito era chamar a atenção para o sentido da história do Brasil, assinalando que a linha mestra de seu desenvolvimento, conforme expressão sua, era a transição da economia colonial para a economia nacional (PRADO JR., 1977, p. 83). Portanto, retratou o Brasil contemporâneo como um organismo em transição, definido pelo “(...) passado colonial que se balanceia (...) mais as transformações que se sucederam no decorrer do centênio anterior a este e no atual” (1981, p. 10). Mais adiante completou: “Mas este novo processo histórico se dilata, se arrasta até hoje. E ainda não chegou a seu termo” (1981, p. 10).
A historiografia explicou sua interpretação como resultante da aplicação criativa do marxismo à análise da história brasileira. Em virtude disso, costuma destacar que Caio Prado foi um crítico da tese feudal do Partido Comunista, considerando que o confronto entre ele e o partido constitui a melhor maneira para se compreender sua obra. Nesse confronto, contrapõe seu marxismo ao marxismo mecanicista e esquemático dos comunistas.
No entanto, consideramos que isso não basta para explicar o modo como o autor interpretou a história brasileira. É preciso examinar essa interpretação, sobretudo, de uma perspectiva política.
É verdade que, em algumas oportunidades, Caio Prado apresentou sua interpretação por meio da crítica ao Partido Comunista. Tem-se, com isso, a impressão de que o móvel da sua elaboração foi a oposição à interpretação do Partido a respeito da história do Brasil. Assim, afirmando que a interpretação do Partido era um decalque da experiência europeia, colocou como necessário buscar a especificidade do Brasil. Recusou-se, por isso, a se valer de conceitos como feudalismo para caracterizar as relações sociais no Brasil. Ao se recusar a isso, no entanto, desconsiderou, também, outros conceitos, nunca destacados pela historiografia, como os de capitalismo e socialismo. Não podemos, infelizmente, desenvolver esta questão com a profundidade que merece. Mas, ainda que brevemente, faremos algumas considerações.
Opondo-se à interpretação do Partido Comunista, Caio Prado formulou, na verdade, outra linha de desenvolvimento para a história brasileira, a qual teria dois momentos básicos, a economia colonial e a economia nacional. Fundamentalmente, de seu ponto de vista, a história brasileira era o processo de transição de uma para outra; seu sentido era, por conseguinte, a constituição de uma economia nacional. Desse modo, lançava os pilares da tese que o Brasil contemporâneo era ainda uma economia com características coloniais que, no entanto, caminhava para a estruturação de uma economia voltada para o mercado interno e para o atendimento das necessidades da população brasileira, uma economia nacional.
A historiografia brasileira não compreendeu essa formulação de Caio Prado. Não considerou, com efeito, que, por economia colonial e economia nacional, esse autor considerava duas formas de organização social, social, da mesma maneira que o eram o feudalismo, capitalismo e socialismo. De sua perspectiva, esses dois conceitos correspondiam às formas de organização social próprias da história de países como o Brasil, assim, substituindo aquelas que eram próprias dos países europeus. A historiografia, por seu turno, entendeu que esse autor tratava da “(...) passagem da colônia para a nação, da estrutura colonial para a estrutura nacional” (NOVAES, 1986, p. 17), “(...) da transição entre a situação colonial e a situação nacional” (RICUPERO, 2000, p. 161).
Por meio da formulação de que a história do Brasil se caracterizava pela passagem da economia colonial para a economia nacional, Caio Prado chegou a duas conclusões acerca da tarefa política dos brasileiros. Primeiro, que a solução não estava na revolução democrático-burguesa, como pretendia o Partido Comunista, promovendo o desenvolvimento das relações capitalistas. Este aspecto é sempre destacado pela historiografia. Segundo, que a luta política não era em torno da revolução socialista, aspecto nunca assinalado pelos seus estudiosos. Para ele, o Brasil não era um país capitalista, mas uma economia com características coloniais. Sua superação, em razão disso, dar-se-ia pelo seu oposto ou contrário, a economia nacional. Entretanto, não são poucos os autores que concluíram que Caio Prado supunha que o Brasil poderia se desenvolver em moldes capitalistas antes de encetar uma luta contra o socialismo (SANTOS, 2001, p. 123). Diga-se de passagem, também está longe dos propósitos desse autor caracterizar a colonização do Brasil como capitalista.
À primeira vista, poder-se-ia supor a afirmação de que o Brasil tendia para o estabelecimento da economia nacional e não do socialismo decorreu da sua interpretação da história do Brasil. No entanto, é o inverso que se verifica. Foi sua posição política contrária ao socialismo e às soluções radicais que o levou a interpretar a história do Brasil dessa maneira. Foi sua oposição ao socialismo e a conseqüente busca de uma alternativa a ele que constitui o elemento gerador da sua obra, seu impulso vital, sua razão de ser. Assim, ao elaborar sua interpretação Caio Prado não teve em conta simplesmente se contrapor à interpretação do Partido Comunista. Seu propósito ia além: oferecer uma resposta à proposta de socialismo (Ver MENDES, 2008).
É importante ressaltar também que Caio Prado não se opôs ao socialismo de maneira direta e explícita. Sua oposição se fez de modo indireto e oblíquo, por meio da afirmação, retomada em várias oportunidades, que a proposta de socialismo era prematura nas condições existentes no Brasil. Não negou, portanto, em tese, a luta pelo socialismo. Apenas postergou-a para um futuro incerto, posterior ao estabelecimento da economia nacional. Acrescente-se não se tratar de uma opinião conjuntural, mas da formulação que norteou a elaboração da sua obra.
Essas observações não têm por intenção criticar ou polemizar com Caio Prado. De nosso ponto de vista, a maneira de superar sua interpretação não é confrontando-a com outra, mas considerando-a historicamente. Isso significa assinalar que sua interpretação foi formulada no interior de um contexto histórico e com uma motivação política clara. Sua atuação política, lastreada por essa interpretação, faz parte do passado e, dessa perspectiva, a crítica e a polêmica não têm sentido. Vivemos, de fato, um momento histórico distinto, quando o socialismo não constitui uma alternativa histórica, graças, inclusive, à sua obra e à de outros autores que conjuraram a ameaça do socialismo. Sob esse aspecto, Caio Prado foi vitorioso.
Se, dessa perspectiva, sua atuação política e sua obra fazem parte do passado, no entanto, sua interpretação da história do Brasil, em suas linhas gerais, permanece dominante, especialmente seu fundamento: a caracterização de colônia como produção voltada para o mercado externo. Entretanto, as razões da sua permanência não são as mesmas que lhe deram origem. Ao contrário, são circunstâncias históricas novas que prolongam sua existência. Atualmente, a questão não se refere ao socialismo. Agora, trata-se de examinar a historiografia e buscar entender as razões que a levaram a caracterizá-lo como um autor revolucionário. O destaque é, então, o uso político de Caio Prado. Ou seja, não estamos diante de uma interpretação equivocada da sua obra, mas de uma caracterização que está em consonância com as questões do nosso tempo.
2. A HISTORIOGRAFIA SOBRE CAIO PRADO
Chamamos a atenção para o fato de que, ao longo da trajetória política e intelectual de Caio Prado, o socialismo constituiu uma questão real, que ele enfrentou, fundamentalmente, por meio dos seus escritos. Neles combateu o socialismo, colocando, em seu lugar, o que denominou economia nacional. Diversos autores interpretaram essa formulação afirmando que pretendia a estruturação da nação. Todavia, acreditamos ter ficado claro que, para ele, economia nacional constituía uma forma de organização econômica e social. Também não cabe debater se o Brasil se encontrava ou não preparado para o socialismo no período compreendido entre as décadas de 30 a 60, quando grande parte da sua obra foi produzida. Independentemente disso, o socialismo era uma questão da sua época e que impunha uma resposta, que o apoiasse ou se lhe opusesse. Também destacamos que, atualmente, o socialismo não constitui mais uma perspectiva histórica. Sob este aspecto, a obra de Caio Prado perdeu sua razão de ser. Entretanto, curiosamente, precisamente quando isso ocorreu, verificou-se um grande interesse por sua obra. Ao mesmo tempo, sua caracterização como autor revolucionário adquiriu contornos definitivos, tornando-se hegemônica. Mais do que hegemônica, única.
Evidentemente, Caio Prado sempre foi considerado um autor marxista e comunista. Entretanto, sua figura como autor revolucionário nem sempre sobressaiu nas análises anteriores à década de 90. É fato que essa caracterização apareceu em 1982 (IGLÉSIAS), aliás, título do seu texto: “Um historiador revolucionário”. Mas, de um modo geral, predominou a figura do historiador (NOVAIS, 1986).
Duas questões devem ser observadas. A primeira: ao longo da sua trajetória política, a obra de Caio Prado não foi analisada. A nosso ver, isso se explica pelo fato de que o papel que então desempenhava nas lutas políticas era o ponto principal, tornando-se, nesse momento, irrelevante o seu estudo. A segunda: a partir de um dado momento, surgiu um grande interesse por seus escritos. Sem dúvida alguma, em grande parte, sua morte despertou esse interesse, mas ela é insuficiente para explicar sua caracterização como autor revolucionário.
Esse crescente interesse diz respeito às novas circunstâncias históricas do final da década de 80 e início da seguinte. Com efeito, com a derrocada do socialismo, uma nova questão se colocou: enfrentar o capitalismo, única forma social então vigente. Liberto das ameaças do socialismo, o capitalismo entrara em uma nova etapa. Teve início uma ruptura dos controles criados pela intervenção do Estado e o capital passou a buscar as preocupações que haviam limitado sua ação desde, ao menos, a crise de 29, a construção do Estado do Bem-Estar e a guerra fria. Nesse momento, a crítica ao capitalismo adquiriu uma nova feição, agora em função de uma nova circunstância: sem a possibilidade de sua transformação revolucionária. A crítica resume-se, em última instância, à proposição de instrumentos que limitassem a ação do capital. Decorre disso o fato de a crítica ao capitalismo ter assumido a forma de crítica ao neoliberalismo e à globalização, que passaram a encarnar as novas tendências do capitalismo. Surgiu, então, uma reação a esse impulso do capital e, por isso, não é casual que, a partir dessa época, tenha se acentuado na sociedade uma posição que se poderia definir como “de esquerda”. Pode-se mesmo afirmar que a sociedade, como um todo, inclinou-se “para a esquerda”. Esta constitui sua característica mais recente. Assim, fica patente que a sociedade brasileira, se não desejava o socialismo, também não queria o capitalismo, ao menos em sua forma liberal.
Foi precisamente nesse momento que ganhou corpo a caracterização de Caio Prado como um autor revolucionário. Tendo cumprido seu papel no combate ao socialismo, ele passou a ser destacado como um crítico do capitalismo. Tratava-se de atualizá-lo, transformá-lo em um autor revolucionário, cuja vida esteve dedica à transformação da sociedade. Este foi o papel desempenhado pela historiografia: adequar esse autor às novas demandas políticas. O historiador que havia lançado as bases para a compreensão da colonização, por exemplo, foi suplantado pelo revolucionário. Desse modo, o combate ao capitalismo em sua forma liberal foi levado adiante pela historiografia por meio da construção de uma imagem de Caio Prado adequada aos novos tempos. A partir de então, não é sua interpretação da história do Brasil que desempenhou um papel político, mas a imagem que dele se criou. Com isso, sua obra se converteu em objeto de estudos e ele se tornou um dos autores mais analisados nas duas últimas décadas.
Todavia, ainda que a imagem que se criou de Caio Prado esteja em completa oposição ao papel que desempenhou ao longo da sua trajetória, sua obra possui um componente que a torna atual e, sob certos aspectos, faz com que não se encontre em desacordo com seu uso político atualmente, por paradoxal que possa parecer. Existe, com efeito, uma faceta em sua obra, bastante descurada por seus estudiosos: sua oposição ao capitalismo. Não se trata, ressalte-se, de um autor que, crítico do capitalismo, fosse partidário do socialismo. Sua crítica ao capitalismo decorria da sua posição contrária ao socialismo, mas, como adversário do socialismo, não necessariamente defendia o capitalismo. Ele foi, assim, adversário, ao mesmo tempo, do socialismo e do capitalismo. Poder-se-ia caracterizar sua posição como uma oposição ao socialismo vinda da esquerda. Talvez seu texto de 1947, “Fundamentos econômicos da revolução brasileira”, seja aquele que melhor ilustra esse ponto de vista.
2.1. “FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA”: o anticapitalismo via antisocialismo.
Em “Fundamentos”, Caio Prado afirmou que a revolução brasileira não seria feita por meio do “fomento do capitalismo” ou por intermédio de uma “revolução democrático-burguesa”. Para ele, a situação em que o país se encontrava e o atraso da sua economia não derivavam da debilidade do capitalismo brasileiro, mas de suas características coloniais. A seu ver, a burguesia capitalista não tinha interesse em livrar a economia brasileira de suas contingências coloniais por se beneficiar dessa situação. Além disso, entendia que a livre concorrência e a iniciativa privada, elementos fundamentais do capitalismo, não eram “(...) de modo algum fatores capazes de dar conta da tarefa de reestruturação da economia brasileira nos moldes em que isto se faz necessário”, pois implicavam em uma perda considerável de esforços e um desperdício de energias e convulsões periódicas que o país estava longe de poder suportar. Acrescentou que os tempos eram outros (PRADO JR., 1947, p. 6).
Não é nesse novo mundo da árdua luta inter-imperialista, em que o Brasil já ficou tão para trás, que se repetirá aqui a epopéia do capitalismo norte-americano com que tantas vezes nos acenam as forças conservadoras desejosas de nos iludir com miragens tentadoras. O mundo liberal do século XIX está definitivamente morto; e não será no Brasil que ele ressuscitará. As molas propulsoras do capitalismo (o enérgico individualismo e o forte estímulo da iniciativa privada) não funcionam mais no mundo moderno; nem cabem mais nele. Não será agora no Brasil, onde nunca existiram, que irão se constituir para realizar a grande tarefa de reestruturação e transformação da face do país (PRADO JR., 1947, p. 6).
Evitou, no entanto, cair no extremo oposto, alertando que não estava afirmando que havia soado a última hora do capitalismo no Brasil. Segundo ele, a iniciativa privada tinha ainda muito a realizar. No entanto, destacou que não se poderia deixar a livre iniciativa ao seu arbítrio. Antes, deveria ser “(...) estritamente regularizada e encaminhada para aqueles setores da atividade onde a necessidade dela se faça mais sentir frente aos interesses gerais do país. E complementada e substituída sempre que convier e pela ação direta do Estado ou de seus órgãos representativos dos interesses da coletividade” (PRADO JR., 1947, p. 6). Concluiu: “Em suma, trata-se de aproveitar o capitalismo naquilo que ele ainda oferece de positivo nas condições atuais do Brasil; e contê-lo, e o suprimir mesmo no que possa se opor às reformas que o país necessita. E ao mesmo tempo, ir preparando os elementos necessários para a futura construção do socialismo brasileiro” (PRADO JR., 1947, p. 6. Grifos nossos).
Como se pode perceber, Caio Prado não apenas afirmou que o capitalismo era inviável nas condições históricas existentes como também entendeu que a livre iniciativa deveria, no Brasil, ser controlada, dirigida, no sentido de subordiná-la aos parâmetros estabelecidos pela economia nacional. Assim, a iniciativa privada continuaria existindo, mas seu móvel não seria o lucro e sim o atendimento das necessidades da população brasileira. Em última análise, pretendia uma sociedade baseada, ao menos parcialmente, na iniciativa privada, mas funcionando como uma economia nacional.
Acreditamos residir nesse ponto o grande sucesso de Caio Prado; essa parece ser a razão pela qual é considerado o mais importante historiador brasileiro. No entanto, reside também aí o fato de ele ter se tornado um autor bastante estudado recentemente e de ser caracterizado, na maioria das vezes, como um autor revolucionário. Em suma, seu sucesso deriva do fato de ele ter se oposto tanto ao socialismo quanto ao capitalismo.
CONCLUSÃO
Ao longo do texto, chamamos a atenção para dois momentos distintos da trajetória de Caio Prado. Quanto ao primeiro, representado pela época em que ele elaborou sua obra e desenvolveu uma grande atividade política, procuramos ressaltar que esta foi concebida enquanto oposição ao socialismo e, portanto, sua interpretação da história do Brasil tem nesse posicionamento sua razão de ser. Foi uma luta foi vitoriosa, já que o socialismo tornou uma coisa do passado. É então que tem início o segundo momento, aquele em que a historiografia atualiza sua obra. A questão já não é a oposição ao socialismo, com a qual, sem que isso ficasse explícito, amplos setores da população se identificassem. Caso contrário, não se tornaria a maior referência entre os historiadores e demais cientistas sociais. A partir desse momento, sua biografia se torna o elemento central, e sua obra, interpretada como revolucionária, assume a comprovação de sua caracterização como autor revolucionário. Isso explica a necessidade de se insistir em caracterizá-la como uma obra marxista, cujo autor estaria interessado na transformação da sociedade.
No entanto, como procuramos salientar, Caio Prado talvez tenha sido o autor que melhor expressou a sociedade brasileira. Sob este aspecto, pode-se afirmar que o que se verifica atualmente com ele não deixa de ser um desdobramento da sua posição política e da sua obra. Justamente por isso, dos autores que tiveram uma atuação com estes componentes, ninguém melhor do que ele soube expressar os impasses de uma nação que, tendo chegado atrasada ao capitalismo na sua forma industrial, considerou tanto o socialismo quanto o capitalismo como ameaças.
REFERÊNCIAS
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REIS, José Carlos. Anos 60: Caio Prado Jr. A reconstrução crítica do sonho de emancipação e autonomia nacional. In: As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 2ª edição. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
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