Texto extraído do blog do Reinaldão.
Terça-feira, Março 27, 2007
Agora o rinoceronte arrombou a porta.
A BBC Brasil entrevista a ministra Matilde Ribeiro, da Secretatia Especial de Política da Promoção da Igualdade. Lá pelas tantas, travou-se o seguinte diálogo:BBC Brasil - E no Brasil tem racismo também de negro contra branco, como nos Estados Unidos?Matilde Ribeiro - Eu acho natural que tenha. Mas não é na mesma dimensão que nos Estados Unidos. Não é racismo quando um negro se insurge contra um branco. Racismo é quando uma maioria econômica, política ou numérica coíbe ou veta direitos de outros. A reação de um negro de não querer conviver com um branco, ou não gostar de um branco, eu acho uma reação natural, embora eu não esteja incitando isso. Não acho que seja uma coisa boa. Mas é natural que aconteça, porque quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou.Para ler a íntegra da entrevista, clique aqui.
Vejam só. Se eu arrumasse uma desculpa qualquer pra dizer que “é natural” haver racismo de brancos contra negros, seria preso. E permaneceria. É crime inafiançável. Mas eu não diria isso por vários motivos. Em primeiro lugar, porque não é o que penso. Em segundo, porque, conforme está claro, se pensasse, não seria idiota de me expor ao risco de ser punido. Raça? O que é isso? Eu gosto é de mistura. Eu vivo a mistura. As minhas filhas são objetivamente bonitas — tanto quanto se pode acreditar na objetividade de um pai. Bem, sei olhar, comparar, reconhecer a harmonia do conjunto. Os traços que nelas mais me agradam, admito, são os árabes, que herdaram da mãe. Do pai, receberam as características da boa gente vira-lata brasileira, que é o que sou. Sem pedigree.
Não é difícil demonstrar que a ministra Matilde Ribeiro cometeu crime de racismo e de incitamento ao ódio racial, ainda que faça questão de dizer que “não”. Numa democracia corriqueira, seria demitida e processada. No Brasil, vão passar a mão na cabeça dela, afirmar que ela se expressou mal, que não quis dizer exatamente o que disse. Vale dizer: no fim das contas, será protegida de si mesma por conta de dois preconceitos às avessas: porque é negra e porque é mulher, duas “minorias” de manual, que excitam os instintos mais primitivos da baixa sociologia brasileira.
No fim de muitas misturas, resulta que minha pele é branca. E nunca açoitei negros. Ah, calma aí: conheço a cascata. Não se trata de individualizar a responsabilidade, dizem eles. O “branco” é culpado como uma “categoria”, assim como o “negro” seria discriminado enquanto tal. É mesmo? A ministra Matilde Ribeiro tem muitas idéias na cabeça, mas nenhuma bibliografia. A escravidão do negro nas Américas, minha senhora, no que respeita à cor da pele — e não à raça — é obra conjunta de brancos e negros. Antes que os europeus escravizassem os africanos, estes se escravizaram a si mesmos. Antes que um mercador de escravos vendesse a sua “mercadoria” no Brasil, ele a comprava na África: e a comprava de outros negros.Isso livra a cara “dos brancos”? É claro que não. Mas também não tira a responsabilidade dos negros. Se a madame quer justificar o racismo do presente fazendo justiça retroativa, vamos parar todos no banco dos réus: tanto os “meus” ancestrais europeus quando os “seus” tataravós negros. A menos que ela pretenda tratar as tribos africanas que escravizavam seus adversários como ingênuos seduzidos pelo grau superior de consciência do europeu. Mas aí indago: a consciência de uma época não é sempre a consciência possível? Olhar o passado com o que sabemos hoje é matéria de sabedoria; julgá-lo com esses instrumentos é produzir obscurantismo.
Não dá. Esta senhora é ministra de Estado. Está no governo para pensar medidas de integração, não para justificar qualquer forma de discriminação, considerando-a, o que é pior, “natural”. Mas vai ficar no cargo, é claro. Porque, afinal, não se demite uma negra por mais bobagens que diga. Também ela reivindica a sua condição de herdeira das vítimas, o que lhe franquearia o direito de dizer asneiras.Vocês sabem que sou adversário de primeira hora da chamada política de cotas raciais, o que eles costumam chamar de “discriminação positiva”. Por quê? Entre outras razões porque era a porta de entrada disso que faz a ministra: a discriminação negativa. Os números que justificam as cotas no Brasil são todos perturbados. Já escrevi isso algumas vezes. Nem voou aqui entrar no detalhe, não neste texto, para não espichar demais o artigo. Lembro o óbvio: com freqüência, fala-se por aí na “maioria negra” do Brasil. A maioria é branca: 52%; negros são 6% da população; há menos de 2% de amarelos e índios, e os demais são mestiços. Um mestiço é branco ou é negro? Também conheço a resposta deles: é negro se for pobre. É? E um branco pobre é o quê? Negro? Quer dizer que o verdadeiro “negro” é o pobre? Então aposentem essa conversa mole de raça e vamos falar de renda.
Mas a ministra não precisa dedicar seu tempo à história ou à estatística. Poderia ao menos ler jornal. Pelo visto, ela tem muitas idéias na cabeça, mas nenhuma disposição para a leitura. Um dos maiores massacres — atenção! — da história da humanidade se deu no fim do século passado na África: a guerra entre hutus e tutsis. Negros matando negros. Um milhão de mortos. Mais de dois milhões de refugiados. Hutus, de mais baixa estatura do que tutsis, cortavam os pés dos adversários a facão para, à sua maneira, fazer justiça... Ah, mas não será difícil encontrar quem diga que também este conflito é de responsabilidade dos brancos, desdobramento perverso e tardio da colonização do século 19. É mesmo? Quer dizer que os negros viviam numa realidade edênica, até que chegassem os brancos para instaurar a discórdia? Tenham paciência! É a mesma lenga-lenga dos muçulmanos. Não fosse o colonialismo europeu, seriam todos pacíficos... Perguntem ao século VII. E o massacre de Darfur, neste século? Aquele que o Brasil se negou a condenar na ONU, sob o silêncio cúmplice da ministra Matilde Ribeiro — se é que ela sabe do que estou falando? Um tutsi não vê um “negro” num hutu (e vice-versa): eles vêem um inimigo. Aquela, sim, é uma luta pautada não pela raça, mas pelo racismo.Numa dimensão, vá lá, filosófica, as lideranças negras estarão prestando um enorme serviço à igualdade de pele (já que não se trata de uma questão racial) quando conseguirem ver a si mesmos também como opressores. Enquanto só se enxergarem como vítimas — sei que esse discurso é útil à militância —, estarão dizendo a seus eventuais liderados que eles continuam escravos, não de um senhor branco, mas de uma falsa história.
terça-feira, março 27, 2007
quinta-feira, março 22, 2007
ATMOSFERA QUENTE
ATMOSFERA QUENTE – PARTE I
por Thomas Sowell em 01 de março de 2007 .
© 2007 MidiaSemMascara.org
O argumento favorito da esquerda é o de que não há argumento. A sua cruzada atual é a de tornar o “aquecimento global” uma daquelas coisas de que ninguém honesto e decente pode discordar, como eles já fizeram com a “diversidade” e com o conceito de “open space” (1)
O nome da “ciência” é invocado pela esquerda hoje, como tem sido feito por mais de dois séculos. Afinal, a ideologia de Karl Marx foi chamada de “socialismo científico” no século XIX. No século XVIII, Condorcet chamava de engenharia o seu plano para uma sociedade melhor e a engenharia social tem sido a agenda desde então.
Nem todos os que advogam o “aquecimento global” são esquerdistas, claro. Cruzadas não são só para cruzados. Há sempre os companheiros de viagem que podem transformar os crentes verdadeiros em votos ou dinheiro, ou então, pelo menos, notoriedade.
Se o planeta está realmente se aquecendo é uma questão sobre fatos – e sobre onde estes fatos são medidos: na terra, no ar ou no fundo do mar. Não há dúvida de que há um efeito estufa. Não fosse isso, metade do planeta congelaria toda noite quando não houvesse a luz do sol nela incidindo.
Não há também dúvida de que nosso planeta possa aquecer ou esfriar. Um ou outro efeito tem acontecido por milhares de anos, mesmo antes das SUV’s [veículo utilitário esportivo]. Se não tivesse havido aquecimento global antes, não seríamos capazes, hoje, de desfrutar do Vale Yosemite, pois ele já foi coberto por milhares de metros de gelo.
Nos anos 1970, a histeria ambientalista era sobre os perigos de uma nova era glacial. Essa histeria foi difundida por muitos dos indivíduos ou grupos que, hoje, promovem a histeria sobre o aquecimento global.
Não é somente o céu que está caindo. Dinheiro do governo está caindo sobre aqueles que procuram financiamento para estudos que produzam “soluções” para o aquecimento global. Mas esse dinheiro dificilmente cairia sobre aqueles, na comunidade científica, que são céticos e que se recusam a se juntar ao alarido.
Sim, nobres senhores, há céticos sobre o aquecimento global dentre os cientistas que estudam o clima. Há argumentos de ambos os lados – razão pela qual tantos na política e na mídia estão tão ocupados vendendo a noção de que não há argumentos.
Ouvindo ambos os argumentos, você poderá não ficar tão desejoso de acompanhar aqueles que estão preparados para arruinar a economia, sacrificando postos de trabalho e o padrão de vida nacional no altar da mais recente de uma série infindável de cruzadas, conduzidas por políticos e outras pessoas ansiosas para dizer como todo mundo deve viver.
O que dizer de todos aqueles cientistas mencionados, referidos ou citados pelos cruzados globalistas?
Há todo tipo de cientistas, de químicos a físicos nucleares e a pessoas que estudam insetos, vulcões e glândulas endócrinas – nenhum dos quais é especialista em clima, mas todos podem ser listados como cientistas para impressionar as pessoas que não analisam a lista mais profundamente. Esse truque é velho.
Há, contudo, especialistas genuínos em meteorologia e clima. A Academia Nacional de Ciências apresentou um relatório sobre o aquecimento global em 2001 que contém uma lista de muitos dos mais eminentes especialistas. O problema é que nenhum deles realmente escreveu o relatório – ou mesmo o leu antes dele ser publicado.
Um desses eminentes climatologistas – Richard S. Lindzen do MIT – repudiou publicamente as conclusões do relatório, apesar de seu nome constar de ornamento ao documento. Mas a mídia pode não ter lhe informado disso.
Em resumo, tem havido uma pressão tremenda para convencer o público que “todo mundo sabe” que um catastrófico aquecimento global nos espreita, que os seres humanos são a sua causa e que a única solução é dar mais dinheiro e poder ao governo a fim de ele nos proteger de nossos perigosos modos de vida.
Dentre os especialistas em clima que não são parte desse “todo mundo” não há apenas o Professor Lindzen mas também Fred Singer e Dennis Avery, cujo livro “Unstoppable Global Warming: Every 1500 Years” [Inevitável Aquecimento Global: A Cada 1500 anos], fura o balão de ar quente dos cruzados do aquecimento global. É o que faz também o livro “Shattered Consencus” [Consenso Destruído], editado por Patrick J. Micheals, professor de ciências ambientais da Universidade de Virgínia, que contém ensaios de outros que não são parte do “todo mundo”.
Nota:
[*] Ver o artigo Socialismo dos ricos, de Sowell. (N. do T.)
ATMOSFERA QUENTE – PARTE II
por Thomas Sowell em 14 de março de 2007.
© 2007 MidiaSemMascara.org
Campanhas publicitárias usualmente ganham vida própria. Políticos cujos cargos se devem ao “aquecimento global” não podem admitir nenhum debate público sobre o tema.
O mesmo acontece com os cruzados ambientalistas – cuja auto-imagem é a de salvadores do planeta ameaçado – quando tentam destruir qualquer visão contrária às suas.
Um exemplo recente e revelador da impiedosa tentativa de silenciar aqueles que se atrevem a questionar o aquecimento global começou com a “notícia” que apareceu no jornal britânico “The Guardian”. Ela rapidamente encontrou eco nos senadores americanos de esquerda – Bernard Sanders, um declarado socialista, e os não-declarados John Kerry, Pat Leahy e Dianne Feinstein.
A manchete da “notícia” já dizia tudo: “Dinheiro é oferecido aos cientistas para que se oponham a estudo sobre o clima”. De acordo com o “The Guardian”, um grupo lobista mantido por uma das maiores companhias petrolíferas do mundo “ofereceu dinheiro a cientistas e economistas para que eles criticassem um importante relatório sobre mudanças climáticas”.
Há uma noção clássica na esquerda em geral, e entre os fanáticos ambientalistas em particular, de que ninguém pode discordar deles, a menos que seja por desinformação ou desonestidade. Aqui eles agruparam os cientistas céticos quanto à histeria do aquecimento global, descrevendo-os como sendo subornados por lobistas de companhias petrolíferas.
Enquanto tais alegações podem ser suficientes para que os fanáticos cruzados se cubram ainda mais plenamente com o manto da virtude, alguns de nós somos fora de moda o suficiente para querermos saber algo mais sobre os fatos reais.
Neste caso, o fato é que o Instituto Empresarial Americano (AEI) – um think tank, não um grupo de lobistas – fez tudo o que os think tanks fazem, independentemente de suas tendências políticas e independente do estado ou país em que se encontram.
O AEI planejou uma mesa-redonda de discussão sobre o aquecimento global, da qual participaram pessoas de diferentes visões sobre o assunto. Este foi seu principal pecado, aos olhos do pessoal do aquecimento global. O AEI tratou o problema como uma questão a ser discutida, não como um dogma.
Como outros think tanks, esquerdistas ou conservadores, o Instituto Empresarial Americano paga estudiosos por artigos acadêmicos preparados para a apresentação em suas mesa-redondas. Dez mil dólares não é uma quantia incomum e muitos têm recebido quantias similares de outros think tanks por trabalhos similares.
Entram em cena os senadores Sanders, Kerry, Leahy e Feinstein. Numa carta conjunta ao diretor do Instituto Empresarial Americano, eles se dizem chocados – chocados como o policial corrupto em “Casablanca”.
Esses senadores expressam “nossas mais sérias preocupações” sobre os relatos de que o AEI “ofereceu até US$10.000 a cientistas para questionarem os descobrimentos” de outros cientistas. Os quatro senadores disseram ainda o quão “desapontados” eles ficariam se os relatos fossem verdadeiros, “pelas profundezas em que alguém poderia se afundar para subverter o consenso científico” a respeito do aquecimento global.
Se os relatos são verdadeiros, os senadores continuam, “eles enfatizariam a extensão em que interesses financeiros distorcem honestas discussões científicas e de políticas públicas” por meio “do suborno a cientistas a fim de se apoiar uma agenda pré-determinada”.
Os senadores perguntam: “Será que o interesse de seus doadores vale mais que uma honesta discussão sobre o bem-estar do planeta?” Eles exigem que “o AEI se desculpe publicamente pela sua conduta”.
Como o falecido Art Buchwald uma vez disse a respeito da comédia e da farsa em Washington, “Você não pode nem imaginar!”
Se for suborno pagar pessoas pelo seu trabalho, então estamos todos sendo subornados cotidianamente, a não ser aqueles que herdaram dinheiro suficiente para não trabalhar. Dentre aqueles convidados pelo AEI para participar da mesa-redonda estão os mesmos cientistas que produziram o recente relatório que políticos, ambientalistas e a mídia alardeiam como a última palavra sobre o aquecimento global.
O trunfo dos esquerdistas é que uma das grandes companhias petrolíferas contribuiu financeiramente para o AEI – contribuição sequer suficiente para atingir um por cento de seu orçamento, mas suficiente o bastante para a difamação.
Todos os think tanks têm financiadores, ou eles não sobreviveriam. Mas os fatos têm pouco significado nas campanhas de difamação, mesmo para políticos que questionam a honestidade dos outros.
ATMOSFERA QUENTE – Final
por Thomas Sowell em 22 de março de 2007.
© 2007 MidiaSemMascara.orgSe você se atém aos principais veículos de comunicação, você poderia imaginar que todos os importantes cientistas acreditam que o "aquecimento global" é uma grande ameaça e que precisamos empreender drásticas alterações no nosso modo de vida, a fim de evitar catástrofes ao ambiente, às várias espécies e a nós mesmos.
A mídia tem um papel preponderante na perpetuação de tais crenças. Freqüentemente ela usa qualquer onda de calor para alardear o aquecimento global, mas não vê nenhuma implicação nos recordes de baixas temperaturas, tais como as que muitos lugares estão experimentando ultimamente.
Você se lembra como o número usualmente grande de furacões de alguns anos atrás foi alardeado na mídia como sendo um resultado do aquecimento global, com mais furacões sendo previstos para os anos seguintes?
Mas, quando nem um único furacão atingiu os EUA no ano passado, a mídia teve pouco a dizer sobre as falsas previsões que ela tinha alardeado. Se for cara eu ganho, se for coroa você perde.
Há cientistas sérios que são especialistas em clima e que são céticos sobre os cenários catastróficos construídos pelos que advogam o aquecimento global? Sim, há.
Há o Dr. S. Fred Singer, que montou o sistema americano de satélites meteorológicos e que publicou alguns anos atrás um livro intitulado "Hot Talk, Cold Science". [1] Mais recentemente, ele foi co-autor de um outro livro sobre ao mesmo assunto, "Unstoppable Global Warming: Every 1500 Years" [Inevitável Aquecimento Global: A cada 1500 anos]. [2]
Houve períodos de aquecimento global que duraram séculos – e períodos de esfriamento global que também duraram séculos. Assim, a questão não é se o mundo está mais quente agora do que em algum tempo no passado, mas o quanto desse aquecimento é devido aos seres humanos e o quanto podemos reduzir o aquecimento futuro, mesmo se reduzirmos drasticamente, nesta tentativa, nosso padrão de vida.
Dentre outros cientistas sérios que não estão no barco do aquecimento global inclui-se um professor do MIT, Richard S. Lindzen.
Seu nome é suficientemente importante para que a Academia Nacional de Ciências o listasse entre os nomes de outros especialistas em seu relatório de 2001, que supostamente poria fim ao debate, declarando que os perigos do aquecimento global estavam provados cientificamente.
O professor Lindzen então objetou e observou que nem ele nem qualquer dos outros cientistas listados viram o relatório antes dele ser publicado. [3] Ele foi, de fato, escrito por burocratas do governo – como o foi o mais recente sumário do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) que também é alardeado como a prova final e o fim da discussão.
Você quer mais especialistas que pensam de outra forma? Tente o professor de ciências ambientais da Universidade de Virgínia, Patrick J. Michaels, que se refere ao clamoroso sumário do IPCC de 2001 como possuindo "falsidades e erros" que ele chama de "notórios".
Um professor de climatologia da Universidade de Delaware, David R. Legates, da mesma forma se refere ao sumário do IPCC como estando "freqüente e frontalmente contra o relatório que o acompanha". Foi o sumário que a mídia alardeou. O relatório completo de 2007 ainda não foi publicado.
Dentre os especialistas céticos em outros países incluem-se Duncan Wingham, um professor de física do clima no University College de Londres e Nigel Weiss da Universidade de Cambridge.
A própria tentativa de silenciar todos que discordam do aquecimento global há de levantar suspeitas.
Qualquer um que lembre da década de 1970 deve se lembrar do relatório do Clube de Roma que foi acolhido como a última palavra sobre crescimento econômico, crescimento este que teria atingido um obstáculo intransponível, ou seja, "superpopulação" e uma era de fome generalizada nos aguardava na década de 1980.
Na realidade, os anos 1980 presenciaram um crescimento econômico em todo o mundo e, longe da fome generalizada, houve um crescimento da obesidade e de excedentes agrícolas em muitos países. Mas a maior parte da mídia entrou na onda do Clube de Roma e alardeou a histeria.
Muitos na mídia se ofendem com qualquer sugestão de que eles estão ou vendendo uma agenda ideológica ou alardeando qualquer coisa que venda jornais ou que atinja altos níveis de audiência.
Aqui está a chance deles de checar o que pensam alguns cientistas pesos-pesados, especialistas em meteorologia e clima, em vez de considerar o filme de Al Gore e os pronunciamentos de políticos e burocratas como a última palavra sobre o assunto.
Tradução de Antônio Emílio Angueth de Araújo
*Thomas Sowell é doutor em Economia pela Universidade de Chicago e autor de mais de uma dezena de livros e inúmeros artigos, abordando tópicos como teoria econômica clássica e ativismo judicial. Atualmente é colaborador do Hoover Institute.
por Thomas Sowell em 01 de março de 2007 .
© 2007 MidiaSemMascara.org
O argumento favorito da esquerda é o de que não há argumento. A sua cruzada atual é a de tornar o “aquecimento global” uma daquelas coisas de que ninguém honesto e decente pode discordar, como eles já fizeram com a “diversidade” e com o conceito de “open space” (1)
O nome da “ciência” é invocado pela esquerda hoje, como tem sido feito por mais de dois séculos. Afinal, a ideologia de Karl Marx foi chamada de “socialismo científico” no século XIX. No século XVIII, Condorcet chamava de engenharia o seu plano para uma sociedade melhor e a engenharia social tem sido a agenda desde então.
Nem todos os que advogam o “aquecimento global” são esquerdistas, claro. Cruzadas não são só para cruzados. Há sempre os companheiros de viagem que podem transformar os crentes verdadeiros em votos ou dinheiro, ou então, pelo menos, notoriedade.
Se o planeta está realmente se aquecendo é uma questão sobre fatos – e sobre onde estes fatos são medidos: na terra, no ar ou no fundo do mar. Não há dúvida de que há um efeito estufa. Não fosse isso, metade do planeta congelaria toda noite quando não houvesse a luz do sol nela incidindo.
Não há também dúvida de que nosso planeta possa aquecer ou esfriar. Um ou outro efeito tem acontecido por milhares de anos, mesmo antes das SUV’s [veículo utilitário esportivo]. Se não tivesse havido aquecimento global antes, não seríamos capazes, hoje, de desfrutar do Vale Yosemite, pois ele já foi coberto por milhares de metros de gelo.
Nos anos 1970, a histeria ambientalista era sobre os perigos de uma nova era glacial. Essa histeria foi difundida por muitos dos indivíduos ou grupos que, hoje, promovem a histeria sobre o aquecimento global.
Não é somente o céu que está caindo. Dinheiro do governo está caindo sobre aqueles que procuram financiamento para estudos que produzam “soluções” para o aquecimento global. Mas esse dinheiro dificilmente cairia sobre aqueles, na comunidade científica, que são céticos e que se recusam a se juntar ao alarido.
Sim, nobres senhores, há céticos sobre o aquecimento global dentre os cientistas que estudam o clima. Há argumentos de ambos os lados – razão pela qual tantos na política e na mídia estão tão ocupados vendendo a noção de que não há argumentos.
Ouvindo ambos os argumentos, você poderá não ficar tão desejoso de acompanhar aqueles que estão preparados para arruinar a economia, sacrificando postos de trabalho e o padrão de vida nacional no altar da mais recente de uma série infindável de cruzadas, conduzidas por políticos e outras pessoas ansiosas para dizer como todo mundo deve viver.
O que dizer de todos aqueles cientistas mencionados, referidos ou citados pelos cruzados globalistas?
Há todo tipo de cientistas, de químicos a físicos nucleares e a pessoas que estudam insetos, vulcões e glândulas endócrinas – nenhum dos quais é especialista em clima, mas todos podem ser listados como cientistas para impressionar as pessoas que não analisam a lista mais profundamente. Esse truque é velho.
Há, contudo, especialistas genuínos em meteorologia e clima. A Academia Nacional de Ciências apresentou um relatório sobre o aquecimento global em 2001 que contém uma lista de muitos dos mais eminentes especialistas. O problema é que nenhum deles realmente escreveu o relatório – ou mesmo o leu antes dele ser publicado.
Um desses eminentes climatologistas – Richard S. Lindzen do MIT – repudiou publicamente as conclusões do relatório, apesar de seu nome constar de ornamento ao documento. Mas a mídia pode não ter lhe informado disso.
Em resumo, tem havido uma pressão tremenda para convencer o público que “todo mundo sabe” que um catastrófico aquecimento global nos espreita, que os seres humanos são a sua causa e que a única solução é dar mais dinheiro e poder ao governo a fim de ele nos proteger de nossos perigosos modos de vida.
Dentre os especialistas em clima que não são parte desse “todo mundo” não há apenas o Professor Lindzen mas também Fred Singer e Dennis Avery, cujo livro “Unstoppable Global Warming: Every 1500 Years” [Inevitável Aquecimento Global: A Cada 1500 anos], fura o balão de ar quente dos cruzados do aquecimento global. É o que faz também o livro “Shattered Consencus” [Consenso Destruído], editado por Patrick J. Micheals, professor de ciências ambientais da Universidade de Virgínia, que contém ensaios de outros que não são parte do “todo mundo”.
Nota:
[*] Ver o artigo Socialismo dos ricos, de Sowell. (N. do T.)
ATMOSFERA QUENTE – PARTE II
por Thomas Sowell em 14 de março de 2007.
© 2007 MidiaSemMascara.org
Campanhas publicitárias usualmente ganham vida própria. Políticos cujos cargos se devem ao “aquecimento global” não podem admitir nenhum debate público sobre o tema.
O mesmo acontece com os cruzados ambientalistas – cuja auto-imagem é a de salvadores do planeta ameaçado – quando tentam destruir qualquer visão contrária às suas.
Um exemplo recente e revelador da impiedosa tentativa de silenciar aqueles que se atrevem a questionar o aquecimento global começou com a “notícia” que apareceu no jornal britânico “The Guardian”. Ela rapidamente encontrou eco nos senadores americanos de esquerda – Bernard Sanders, um declarado socialista, e os não-declarados John Kerry, Pat Leahy e Dianne Feinstein.
A manchete da “notícia” já dizia tudo: “Dinheiro é oferecido aos cientistas para que se oponham a estudo sobre o clima”. De acordo com o “The Guardian”, um grupo lobista mantido por uma das maiores companhias petrolíferas do mundo “ofereceu dinheiro a cientistas e economistas para que eles criticassem um importante relatório sobre mudanças climáticas”.
Há uma noção clássica na esquerda em geral, e entre os fanáticos ambientalistas em particular, de que ninguém pode discordar deles, a menos que seja por desinformação ou desonestidade. Aqui eles agruparam os cientistas céticos quanto à histeria do aquecimento global, descrevendo-os como sendo subornados por lobistas de companhias petrolíferas.
Enquanto tais alegações podem ser suficientes para que os fanáticos cruzados se cubram ainda mais plenamente com o manto da virtude, alguns de nós somos fora de moda o suficiente para querermos saber algo mais sobre os fatos reais.
Neste caso, o fato é que o Instituto Empresarial Americano (AEI) – um think tank, não um grupo de lobistas – fez tudo o que os think tanks fazem, independentemente de suas tendências políticas e independente do estado ou país em que se encontram.
O AEI planejou uma mesa-redonda de discussão sobre o aquecimento global, da qual participaram pessoas de diferentes visões sobre o assunto. Este foi seu principal pecado, aos olhos do pessoal do aquecimento global. O AEI tratou o problema como uma questão a ser discutida, não como um dogma.
Como outros think tanks, esquerdistas ou conservadores, o Instituto Empresarial Americano paga estudiosos por artigos acadêmicos preparados para a apresentação em suas mesa-redondas. Dez mil dólares não é uma quantia incomum e muitos têm recebido quantias similares de outros think tanks por trabalhos similares.
Entram em cena os senadores Sanders, Kerry, Leahy e Feinstein. Numa carta conjunta ao diretor do Instituto Empresarial Americano, eles se dizem chocados – chocados como o policial corrupto em “Casablanca”.
Esses senadores expressam “nossas mais sérias preocupações” sobre os relatos de que o AEI “ofereceu até US$10.000 a cientistas para questionarem os descobrimentos” de outros cientistas. Os quatro senadores disseram ainda o quão “desapontados” eles ficariam se os relatos fossem verdadeiros, “pelas profundezas em que alguém poderia se afundar para subverter o consenso científico” a respeito do aquecimento global.
Se os relatos são verdadeiros, os senadores continuam, “eles enfatizariam a extensão em que interesses financeiros distorcem honestas discussões científicas e de políticas públicas” por meio “do suborno a cientistas a fim de se apoiar uma agenda pré-determinada”.
Os senadores perguntam: “Será que o interesse de seus doadores vale mais que uma honesta discussão sobre o bem-estar do planeta?” Eles exigem que “o AEI se desculpe publicamente pela sua conduta”.
Como o falecido Art Buchwald uma vez disse a respeito da comédia e da farsa em Washington, “Você não pode nem imaginar!”
Se for suborno pagar pessoas pelo seu trabalho, então estamos todos sendo subornados cotidianamente, a não ser aqueles que herdaram dinheiro suficiente para não trabalhar. Dentre aqueles convidados pelo AEI para participar da mesa-redonda estão os mesmos cientistas que produziram o recente relatório que políticos, ambientalistas e a mídia alardeiam como a última palavra sobre o aquecimento global.
O trunfo dos esquerdistas é que uma das grandes companhias petrolíferas contribuiu financeiramente para o AEI – contribuição sequer suficiente para atingir um por cento de seu orçamento, mas suficiente o bastante para a difamação.
Todos os think tanks têm financiadores, ou eles não sobreviveriam. Mas os fatos têm pouco significado nas campanhas de difamação, mesmo para políticos que questionam a honestidade dos outros.
ATMOSFERA QUENTE – Final
por Thomas Sowell em 22 de março de 2007.
© 2007 MidiaSemMascara.orgSe você se atém aos principais veículos de comunicação, você poderia imaginar que todos os importantes cientistas acreditam que o "aquecimento global" é uma grande ameaça e que precisamos empreender drásticas alterações no nosso modo de vida, a fim de evitar catástrofes ao ambiente, às várias espécies e a nós mesmos.
A mídia tem um papel preponderante na perpetuação de tais crenças. Freqüentemente ela usa qualquer onda de calor para alardear o aquecimento global, mas não vê nenhuma implicação nos recordes de baixas temperaturas, tais como as que muitos lugares estão experimentando ultimamente.
Você se lembra como o número usualmente grande de furacões de alguns anos atrás foi alardeado na mídia como sendo um resultado do aquecimento global, com mais furacões sendo previstos para os anos seguintes?
Mas, quando nem um único furacão atingiu os EUA no ano passado, a mídia teve pouco a dizer sobre as falsas previsões que ela tinha alardeado. Se for cara eu ganho, se for coroa você perde.
Há cientistas sérios que são especialistas em clima e que são céticos sobre os cenários catastróficos construídos pelos que advogam o aquecimento global? Sim, há.
Há o Dr. S. Fred Singer, que montou o sistema americano de satélites meteorológicos e que publicou alguns anos atrás um livro intitulado "Hot Talk, Cold Science". [1] Mais recentemente, ele foi co-autor de um outro livro sobre ao mesmo assunto, "Unstoppable Global Warming: Every 1500 Years" [Inevitável Aquecimento Global: A cada 1500 anos]. [2]
Houve períodos de aquecimento global que duraram séculos – e períodos de esfriamento global que também duraram séculos. Assim, a questão não é se o mundo está mais quente agora do que em algum tempo no passado, mas o quanto desse aquecimento é devido aos seres humanos e o quanto podemos reduzir o aquecimento futuro, mesmo se reduzirmos drasticamente, nesta tentativa, nosso padrão de vida.
Dentre outros cientistas sérios que não estão no barco do aquecimento global inclui-se um professor do MIT, Richard S. Lindzen.
Seu nome é suficientemente importante para que a Academia Nacional de Ciências o listasse entre os nomes de outros especialistas em seu relatório de 2001, que supostamente poria fim ao debate, declarando que os perigos do aquecimento global estavam provados cientificamente.
O professor Lindzen então objetou e observou que nem ele nem qualquer dos outros cientistas listados viram o relatório antes dele ser publicado. [3] Ele foi, de fato, escrito por burocratas do governo – como o foi o mais recente sumário do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) que também é alardeado como a prova final e o fim da discussão.
Você quer mais especialistas que pensam de outra forma? Tente o professor de ciências ambientais da Universidade de Virgínia, Patrick J. Michaels, que se refere ao clamoroso sumário do IPCC de 2001 como possuindo "falsidades e erros" que ele chama de "notórios".
Um professor de climatologia da Universidade de Delaware, David R. Legates, da mesma forma se refere ao sumário do IPCC como estando "freqüente e frontalmente contra o relatório que o acompanha". Foi o sumário que a mídia alardeou. O relatório completo de 2007 ainda não foi publicado.
Dentre os especialistas céticos em outros países incluem-se Duncan Wingham, um professor de física do clima no University College de Londres e Nigel Weiss da Universidade de Cambridge.
A própria tentativa de silenciar todos que discordam do aquecimento global há de levantar suspeitas.
Qualquer um que lembre da década de 1970 deve se lembrar do relatório do Clube de Roma que foi acolhido como a última palavra sobre crescimento econômico, crescimento este que teria atingido um obstáculo intransponível, ou seja, "superpopulação" e uma era de fome generalizada nos aguardava na década de 1980.
Na realidade, os anos 1980 presenciaram um crescimento econômico em todo o mundo e, longe da fome generalizada, houve um crescimento da obesidade e de excedentes agrícolas em muitos países. Mas a maior parte da mídia entrou na onda do Clube de Roma e alardeou a histeria.
Muitos na mídia se ofendem com qualquer sugestão de que eles estão ou vendendo uma agenda ideológica ou alardeando qualquer coisa que venda jornais ou que atinja altos níveis de audiência.
Aqui está a chance deles de checar o que pensam alguns cientistas pesos-pesados, especialistas em meteorologia e clima, em vez de considerar o filme de Al Gore e os pronunciamentos de políticos e burocratas como a última palavra sobre o assunto.
Tradução de Antônio Emílio Angueth de Araújo
*Thomas Sowell é doutor em Economia pela Universidade de Chicago e autor de mais de uma dezena de livros e inúmeros artigos, abordando tópicos como teoria econômica clássica e ativismo judicial. Atualmente é colaborador do Hoover Institute.
domingo, março 18, 2007
A TENTAÇÃO TOTALITÁRIA
Observem como os ovos da serpente já se partiu e as serpentinhas já estão preparando o bote.
Os petistas não conseguem se segurar diante da tentação totalitária. A criação da rede de tv estatal é a tentativa de criar a infraestrutua para a propagação ideológica de uma sociedade totalitária.
Aqueles que não acreditam nesta hipótese terão oportunidade de ver a aplicação do modelo de sociedade que os petistas tanto sonharam.
Para os preocupados com o futuro, sugiro a leitura da seguinte matéria publicada pela Veja sobre a rede de tv do lullismo.
"VEJA, Edição 2000, 21 de março de 2007
COM A FACA E O QUEIJO
Nas democracias, o governo faz e a imprensa critica. O governo brasileiroquer fazer e ele mesmo se auto-avaliar
Marcelo Marthe
A anunciada criação de um Ministério da Comunicação Social e de uma rede nacional de televisão estatal dedicada a fazer propaganda do Executivo sinaliza uma visão de mundo equivocada e, potencialmente, perigosa. A iniciativa do governo Lula tem defeitos graves. O principal é subverter a ordem posta de pé pela democracia grega sobre o papel da liberdade de expressão nas sociedades abertas. O governo pretende fazer políticas e, ao mesmo tempo, se auto-elogiar através de sua imprensa estatal. Os gregos já ensinavam que não se pode colocar a faca e o queijo nas mãos dos governantes. Um governo legítimo tem o poder de fazer guerras, usinas nucleares, pontes, programas sociais, nomear ministros, definir o comércio exterior, determinar o que as escolas devem ensinar e muito mais. Perfeito. A imprensa tem total liberdade para criticá-lo. Ponto.
Em Atenas, no século de Péricles, o quinto antes de Cristo, esse princípio foi enunciado por diversos dos muitos sábios daquele período áureo. Ele pode ser resumido na frase: "Algumas poucas pessoas atingem o poder de fazer políticas públicas. Todos podem criticá-las". Os gregos desconheciam, por elitistas, a parte vital dessa equação: a opinião pública. Hoje em dia, nas grandes democracias, o princípio grego teria uma formulação diferente: "O governo faz, a imprensa avalia e o público julga". É cegueira acreditar que o governo possa fazer, avaliar e julgar os próprios atos. É mistificação vender a idéia de que o governo fará e o público julgará – sem os olhos e os ouvidos da imprensa.
Com seu ministério do jornalismo e sua rede estatal de televisão, o Executivo brasileiro segue o rastro de governos que se deram muito mal, acabaram em tragédia, bancarrota, humilhação pela história ou simplesmente no anacronismo e na irrelevância. Os exemplos são os de sempre. São ditadores que inflaram suas máquinas de propaganda governamental ao tempo em que reprimiam, inviabilizavam ou simplesmente destruíam a imprensa livre. Eles foram Adolf Hitler, Josef Stalin e Mao Tsé-tung. Exemplares liberticidas prosperam nos trópicos. Casos de Fidel Castro e de Hugo Chávez.
França e Itália têm redes de rádio e televisão estatais não-educativas. Elas competem com as redes privadas e oferecem uma programação eclética, com shows, eventos esportivos e notícias. Na Itália, elas são loteadas pelos partidos, mais ou menos como na partilha dos ministérios. Seguem levemente a linha partidária. Nenhuma obedece caninamente ao governo.
Na França funcionam mais como cabides de emprego para jornalistas. A Inglaterra é exceção. Tem a British Broadcasting Corporation (BBC), emissora estatal mas não do governo. Ela tem seu próprio orçamento (pago direta e voluntariamente pelos cidadãos ingleses). A BBC é subordinada a uma agência composta de doze pessoas indicadas pelo governo com a aprovação do Parlamento. A cada ano, duas delas saem e entram outras duas, de modo que um determinado governante precisaria de seis anos para colocar apenas indicados seus na agência que manda na BBC. Os membros dessa agência – que não podem ser demitidos pelo governo – nomeiam o diretor da BBC. Isso garante liberdade de ação.
No passado, a BBC fazia apenas propaganda das políticas do governo. Até o grande Winston Churchill foi censurado pela BBC no começo dos anos 30, quando, fora do governo e do Parlamento, pregava a guerra contra Hitler. O governo inglês ainda preferia a política do apaziguamento. Em 1934, depois de quase dois anos de censura, Churchill conseguiu furar o bloqueio. Ele se vingou dizendo no ar que imaginava como o diretor da BBC devia estar suando frio, com as mãos nos interruptores, com medo de que ele dissesse "alguma coisa desagradável contra Hitler". Arrematou com humor: "Fosse pelo governo e sua BBC, São Jorge (santo padroeiro da Inglaterra) não teria matado o dragão, mas o convidado para uma conferência de paz".
Com todos os amplos recursos informativos que já possui, como a Radiobrás, o governo brasileiro precisa de uma estrutura nova de 250 milhões de reais para fazer propaganda de si mesmo? Luiz Dulci, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, incentivador da idéia, acha que sim. "O presidente decidiu que vamos ter uma rede. Para mim, está claro que será uma rede pública, que tratará com destaque questões que canais privados não tratam, como fazem as principais TVs públicas do mundo, da RAI à BBC", diz Dulci.
Jorge da Cunha Lima, presidente da Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), discorda: "É mais uma tentativa de aparelhamento do estado bem de acordo com as idéias da ala radical do governo petista". Bons são os governos que garantem o bom funcionamento da sociedade, e não aqueles que querem substituí-la – seja na economia, seja na imprensa. O exemplo a evitar existe e é clássico – 1984, de George Orwell. Está lá, todo pimpão, o Ministro da Verdade, encarregado de fazer com que tudo que não esteja de acordo com o governo seja suprimido como mentira."
Os petistas não conseguem se segurar diante da tentação totalitária. A criação da rede de tv estatal é a tentativa de criar a infraestrutua para a propagação ideológica de uma sociedade totalitária.
Aqueles que não acreditam nesta hipótese terão oportunidade de ver a aplicação do modelo de sociedade que os petistas tanto sonharam.
Para os preocupados com o futuro, sugiro a leitura da seguinte matéria publicada pela Veja sobre a rede de tv do lullismo.
"VEJA, Edição 2000, 21 de março de 2007
COM A FACA E O QUEIJO
Nas democracias, o governo faz e a imprensa critica. O governo brasileiroquer fazer e ele mesmo se auto-avaliar
Marcelo Marthe
A anunciada criação de um Ministério da Comunicação Social e de uma rede nacional de televisão estatal dedicada a fazer propaganda do Executivo sinaliza uma visão de mundo equivocada e, potencialmente, perigosa. A iniciativa do governo Lula tem defeitos graves. O principal é subverter a ordem posta de pé pela democracia grega sobre o papel da liberdade de expressão nas sociedades abertas. O governo pretende fazer políticas e, ao mesmo tempo, se auto-elogiar através de sua imprensa estatal. Os gregos já ensinavam que não se pode colocar a faca e o queijo nas mãos dos governantes. Um governo legítimo tem o poder de fazer guerras, usinas nucleares, pontes, programas sociais, nomear ministros, definir o comércio exterior, determinar o que as escolas devem ensinar e muito mais. Perfeito. A imprensa tem total liberdade para criticá-lo. Ponto.
Em Atenas, no século de Péricles, o quinto antes de Cristo, esse princípio foi enunciado por diversos dos muitos sábios daquele período áureo. Ele pode ser resumido na frase: "Algumas poucas pessoas atingem o poder de fazer políticas públicas. Todos podem criticá-las". Os gregos desconheciam, por elitistas, a parte vital dessa equação: a opinião pública. Hoje em dia, nas grandes democracias, o princípio grego teria uma formulação diferente: "O governo faz, a imprensa avalia e o público julga". É cegueira acreditar que o governo possa fazer, avaliar e julgar os próprios atos. É mistificação vender a idéia de que o governo fará e o público julgará – sem os olhos e os ouvidos da imprensa.
Com seu ministério do jornalismo e sua rede estatal de televisão, o Executivo brasileiro segue o rastro de governos que se deram muito mal, acabaram em tragédia, bancarrota, humilhação pela história ou simplesmente no anacronismo e na irrelevância. Os exemplos são os de sempre. São ditadores que inflaram suas máquinas de propaganda governamental ao tempo em que reprimiam, inviabilizavam ou simplesmente destruíam a imprensa livre. Eles foram Adolf Hitler, Josef Stalin e Mao Tsé-tung. Exemplares liberticidas prosperam nos trópicos. Casos de Fidel Castro e de Hugo Chávez.
França e Itália têm redes de rádio e televisão estatais não-educativas. Elas competem com as redes privadas e oferecem uma programação eclética, com shows, eventos esportivos e notícias. Na Itália, elas são loteadas pelos partidos, mais ou menos como na partilha dos ministérios. Seguem levemente a linha partidária. Nenhuma obedece caninamente ao governo.
Na França funcionam mais como cabides de emprego para jornalistas. A Inglaterra é exceção. Tem a British Broadcasting Corporation (BBC), emissora estatal mas não do governo. Ela tem seu próprio orçamento (pago direta e voluntariamente pelos cidadãos ingleses). A BBC é subordinada a uma agência composta de doze pessoas indicadas pelo governo com a aprovação do Parlamento. A cada ano, duas delas saem e entram outras duas, de modo que um determinado governante precisaria de seis anos para colocar apenas indicados seus na agência que manda na BBC. Os membros dessa agência – que não podem ser demitidos pelo governo – nomeiam o diretor da BBC. Isso garante liberdade de ação.
No passado, a BBC fazia apenas propaganda das políticas do governo. Até o grande Winston Churchill foi censurado pela BBC no começo dos anos 30, quando, fora do governo e do Parlamento, pregava a guerra contra Hitler. O governo inglês ainda preferia a política do apaziguamento. Em 1934, depois de quase dois anos de censura, Churchill conseguiu furar o bloqueio. Ele se vingou dizendo no ar que imaginava como o diretor da BBC devia estar suando frio, com as mãos nos interruptores, com medo de que ele dissesse "alguma coisa desagradável contra Hitler". Arrematou com humor: "Fosse pelo governo e sua BBC, São Jorge (santo padroeiro da Inglaterra) não teria matado o dragão, mas o convidado para uma conferência de paz".
Com todos os amplos recursos informativos que já possui, como a Radiobrás, o governo brasileiro precisa de uma estrutura nova de 250 milhões de reais para fazer propaganda de si mesmo? Luiz Dulci, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, incentivador da idéia, acha que sim. "O presidente decidiu que vamos ter uma rede. Para mim, está claro que será uma rede pública, que tratará com destaque questões que canais privados não tratam, como fazem as principais TVs públicas do mundo, da RAI à BBC", diz Dulci.
Jorge da Cunha Lima, presidente da Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), discorda: "É mais uma tentativa de aparelhamento do estado bem de acordo com as idéias da ala radical do governo petista". Bons são os governos que garantem o bom funcionamento da sociedade, e não aqueles que querem substituí-la – seja na economia, seja na imprensa. O exemplo a evitar existe e é clássico – 1984, de George Orwell. Está lá, todo pimpão, o Ministro da Verdade, encarregado de fazer com que tudo que não esteja de acordo com o governo seja suprimido como mentira."
sexta-feira, março 16, 2007
A AMÉRICA E OS AMERICANOS
Vejam este interessante artigo de João Mellão Neto publicado em 16/03/07 no jornal O Estado de São Paulo, abordando um pouco sobre as causas da riqueza dos Estados Unidos.
Antes de sairmos as ruas com frases repudiando o chamado imperialismo americano, vale a pena nos informarmos de algumas coisas..
O ESTADO DE SÃO PAULO, Sexta-feira, 16 março de 2007
A AMÉRICA E OS AMERICANOS
João Mellão Neto
Alguns anos atrás, quando era deputado federal, ao desembarcar em Brasília, volta e meia me deparava com um gigantesco avião cargueiro C-5 Galaxy, com a bandeira dos Estados Unidos, estacionado na pista do aeroporto. Procurei saber o que ele fazia ali. Fui informado de que vinha da América a cada 15 dias para abastecer a Embaixada dos Estados Unidos. Trazia de tudo. Até mesmo papel higiênico e água mineral, porque os funcionários da representação americana, por questões de segurança, não podem comprar nada no mercado local. Indaguei se se tratava de alguma implicância com o Brasil ou mesmo com os países do Terceiro Mundo. Não. Esse é o padrão seguido por todas as Embaixadas americanas ao redor do mundo. Várias dezenas de aeronaves como aquela alçam vôo todas as semanas com destino a todas as nações com que os Estados Unidos mantêm relações diplomáticas. Achei um exagero. Os americanos me informaram que aquele era o custo que tinham de pagar pelo fato de sua nação ser a mais rica e poderosa do planeta. E isso foi bem antes do 11 de Setembro de 2001. Acredito que, atualmente, as precauções sejam ainda maiores.Muita gente, aqui, no Brasil, se queixou do imenso aparato de segurança montado para a visita do presidente George W. Bush a São Paulo. Para mim, não foi surpresa nenhuma.
Quando o então presidente Bill Clinton veio ao Rio de Janeiro, uns dez anos atrás, a imprensa, Rede Globo inclusive, também fez severas críticas ao esquema montado, quase gerando um incidente diplomático. Clinton, como Bush, tirou de letra. Jogou futebol com Pelé numa favela e foi aclamado por todos. Ocorre que, nos Estados Unidos, a pessoa do presidente é considerada propriedade do Estado. Mesmo que ele queira, não pode dar palpites na sua segurança e muito menos relaxá-la. Afinal, o que essa nação tem de especial? Por que ela é tão diferente das outras? Por que razão é tão odiada e, paradoxalmente, tão imitada, em todos os cantos do globo?É muito fácil ser antiamericano em qualquer lugar, principalmente quando a América é governada por alguém tão polêmico e belicoso como Bush. Em toda a História dos Estados Unidos, nunca antes a nação entrara em guerra sem ter sido atacada ou provocada. O caso do Iraque é diferente. Tratou-se de uma decisão isolada e unilateral do governo, contrariando, inclusive, o Conselho de Segurança da ONU. Bush, hoje, paga um alto preço, em popularidade interna e externa, por seu desastrado ato.
Embora deplore atitudes como essa, de Bush, jamais me perfilei ao lado dos que culpam os Estados Unidos por tudo de errado que acontece no mundo. Eu não odeio a América. Ao contrário. E, quanto melhor a conheço, mais aumenta a minha admiração.
O povo americano não chegou ao topo do mundo por acaso. Há inúmeras características, em sua sociedade, seu sistema de crenças, seus valores e suas convicções, que lhe permitiram ultrapassar todos os demais e erguer a maior nação da Terra. Para entender como tudo isso se deu é obrigatória a leitura de pelo menos três livros que retratam a saga e o caráter americanos em épocas distintas.O primeiro é o festejado A Democracia na América, escrito no início dos anos 1800 por um jovem e perspicaz filho da nobreza francesa, Alexis de Tocqueville. Acostumado com a cultura de privilégios de seu país, ele não esconde a sua estupefação ao conhecer a aparentemente caótica estrutura social da América, uma jovem nação onde todos eram absolutamente livres e ninguém portava nenhuma vantagem em razão de seu berço ou posição social.
Como a nação funcionava, então? Segundo Tocqueville observou, os americanos eram o povo mais individualista do mundo. Cada um cuidava de si, pouco se importando com os problemas ou desventuras de seus vizinhos. Mas, por outro lado, eles tinham um senso comunitário jamais visto. Quando surgiam problemas ou dificuldades que ameaçassem a todos, cada um sabia dar a sua cota de sacrifício e esforço para superar o problema “sem hipocrisia ou belas palavras”, notou o autor. Na Europa, ao contrário, muito se falava e se escrevia sobre a solidariedade e a fraternidade humanas, mas ninguém estava disposto a ceder em nada.
Outro livro, escrito cem anos depois, é A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de autoria do respeitado Max Weber e considerado pelos críticos “a obra mais importante do século 20”. O sociólogo alemão escreveu-o logo após a sua primeira visita à América, em 1904.
Para Weber, contrariando Marx, o capitalismo tinha sólidas bases morais e mesmo religiosas. Lembrando que o calvinismo, a tendência mais rígida do protestantismo, tinha presença muito marcante no sistema de crenças dos americanos, ele concluiu que o sistema capitalista só poderia funcionar a contento numa sociedade que cultuasse valores tais como o trabalho diligente, a palavra honrada a qualquer preço, a honestidade, a confiança no próximo e o fiel cumprimento dos tratos e contratos. Esses valores, por sua vez, criavam instituições confiáveis e com isso todos prosperavam. O logro, o engodo e a má-fé não tinham espaço para crescer, já que eram repudiados por todos.
Mais recentemente temos a brilhante obra de John Steinbeck, Prêmio Nobel de Literatura de 1962, A América e os Americanos. Steinbeck, o renomado autor de As Vinhas da Ira, é o norte-americano que melhor entendeu e decifrou o caráter de seu povo, as suas fraquezas, os seus valores e mesmo as suas contradições. Vale a pena ler esse ensaio. Segundo suas palavras, de tudo isso surgiu algo que é único no mundo: os Estados Unidos.Nós, latinos, podemos amar ou odiar a América. O que não podemos é menosprezá-la.
João Mellão Neto, jornalista, deputado estadual, foi deputado federal, secretário e ministro de EstadoE-mail: j.mellao@uol.com.br
Antes de sairmos as ruas com frases repudiando o chamado imperialismo americano, vale a pena nos informarmos de algumas coisas..
O ESTADO DE SÃO PAULO, Sexta-feira, 16 março de 2007
A AMÉRICA E OS AMERICANOS
João Mellão Neto
Alguns anos atrás, quando era deputado federal, ao desembarcar em Brasília, volta e meia me deparava com um gigantesco avião cargueiro C-5 Galaxy, com a bandeira dos Estados Unidos, estacionado na pista do aeroporto. Procurei saber o que ele fazia ali. Fui informado de que vinha da América a cada 15 dias para abastecer a Embaixada dos Estados Unidos. Trazia de tudo. Até mesmo papel higiênico e água mineral, porque os funcionários da representação americana, por questões de segurança, não podem comprar nada no mercado local. Indaguei se se tratava de alguma implicância com o Brasil ou mesmo com os países do Terceiro Mundo. Não. Esse é o padrão seguido por todas as Embaixadas americanas ao redor do mundo. Várias dezenas de aeronaves como aquela alçam vôo todas as semanas com destino a todas as nações com que os Estados Unidos mantêm relações diplomáticas. Achei um exagero. Os americanos me informaram que aquele era o custo que tinham de pagar pelo fato de sua nação ser a mais rica e poderosa do planeta. E isso foi bem antes do 11 de Setembro de 2001. Acredito que, atualmente, as precauções sejam ainda maiores.Muita gente, aqui, no Brasil, se queixou do imenso aparato de segurança montado para a visita do presidente George W. Bush a São Paulo. Para mim, não foi surpresa nenhuma.
Quando o então presidente Bill Clinton veio ao Rio de Janeiro, uns dez anos atrás, a imprensa, Rede Globo inclusive, também fez severas críticas ao esquema montado, quase gerando um incidente diplomático. Clinton, como Bush, tirou de letra. Jogou futebol com Pelé numa favela e foi aclamado por todos. Ocorre que, nos Estados Unidos, a pessoa do presidente é considerada propriedade do Estado. Mesmo que ele queira, não pode dar palpites na sua segurança e muito menos relaxá-la. Afinal, o que essa nação tem de especial? Por que ela é tão diferente das outras? Por que razão é tão odiada e, paradoxalmente, tão imitada, em todos os cantos do globo?É muito fácil ser antiamericano em qualquer lugar, principalmente quando a América é governada por alguém tão polêmico e belicoso como Bush. Em toda a História dos Estados Unidos, nunca antes a nação entrara em guerra sem ter sido atacada ou provocada. O caso do Iraque é diferente. Tratou-se de uma decisão isolada e unilateral do governo, contrariando, inclusive, o Conselho de Segurança da ONU. Bush, hoje, paga um alto preço, em popularidade interna e externa, por seu desastrado ato.
Embora deplore atitudes como essa, de Bush, jamais me perfilei ao lado dos que culpam os Estados Unidos por tudo de errado que acontece no mundo. Eu não odeio a América. Ao contrário. E, quanto melhor a conheço, mais aumenta a minha admiração.
O povo americano não chegou ao topo do mundo por acaso. Há inúmeras características, em sua sociedade, seu sistema de crenças, seus valores e suas convicções, que lhe permitiram ultrapassar todos os demais e erguer a maior nação da Terra. Para entender como tudo isso se deu é obrigatória a leitura de pelo menos três livros que retratam a saga e o caráter americanos em épocas distintas.O primeiro é o festejado A Democracia na América, escrito no início dos anos 1800 por um jovem e perspicaz filho da nobreza francesa, Alexis de Tocqueville. Acostumado com a cultura de privilégios de seu país, ele não esconde a sua estupefação ao conhecer a aparentemente caótica estrutura social da América, uma jovem nação onde todos eram absolutamente livres e ninguém portava nenhuma vantagem em razão de seu berço ou posição social.
Como a nação funcionava, então? Segundo Tocqueville observou, os americanos eram o povo mais individualista do mundo. Cada um cuidava de si, pouco se importando com os problemas ou desventuras de seus vizinhos. Mas, por outro lado, eles tinham um senso comunitário jamais visto. Quando surgiam problemas ou dificuldades que ameaçassem a todos, cada um sabia dar a sua cota de sacrifício e esforço para superar o problema “sem hipocrisia ou belas palavras”, notou o autor. Na Europa, ao contrário, muito se falava e se escrevia sobre a solidariedade e a fraternidade humanas, mas ninguém estava disposto a ceder em nada.
Outro livro, escrito cem anos depois, é A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de autoria do respeitado Max Weber e considerado pelos críticos “a obra mais importante do século 20”. O sociólogo alemão escreveu-o logo após a sua primeira visita à América, em 1904.
Para Weber, contrariando Marx, o capitalismo tinha sólidas bases morais e mesmo religiosas. Lembrando que o calvinismo, a tendência mais rígida do protestantismo, tinha presença muito marcante no sistema de crenças dos americanos, ele concluiu que o sistema capitalista só poderia funcionar a contento numa sociedade que cultuasse valores tais como o trabalho diligente, a palavra honrada a qualquer preço, a honestidade, a confiança no próximo e o fiel cumprimento dos tratos e contratos. Esses valores, por sua vez, criavam instituições confiáveis e com isso todos prosperavam. O logro, o engodo e a má-fé não tinham espaço para crescer, já que eram repudiados por todos.
Mais recentemente temos a brilhante obra de John Steinbeck, Prêmio Nobel de Literatura de 1962, A América e os Americanos. Steinbeck, o renomado autor de As Vinhas da Ira, é o norte-americano que melhor entendeu e decifrou o caráter de seu povo, as suas fraquezas, os seus valores e mesmo as suas contradições. Vale a pena ler esse ensaio. Segundo suas palavras, de tudo isso surgiu algo que é único no mundo: os Estados Unidos.Nós, latinos, podemos amar ou odiar a América. O que não podemos é menosprezá-la.
João Mellão Neto, jornalista, deputado estadual, foi deputado federal, secretário e ministro de EstadoE-mail: j.mellao@uol.com.br
quinta-feira, março 15, 2007
AQUECIMENTO É BOM PARA A FLORESTA
Folha de São Paulo, quinta-feira, 15 de março de 2007
Para geógrafo, estudos não consideram a importância das correntes marítimasHá 6.000 anos, condições climáticas que permitiram a "tropicalização" do Brasil se pareciam com as criadas pelas mudanças globais
EDUARDO GERAQUEDA REPORTAGEM LOCAL Atento aos estudos sobre os impactos das mudanças climáticas globais, o geógrafo Aziz Ab'Sáber, 83, concorda com a tese de que o homem está aquecendo o planeta. Mas, quando o assunto é o impacto da nova realidade climática nos biomas brasileiros, a tese do pesquisador contraria as previsões recentes dos cientistas."A tendência no caso das matas atlânticas e da Amazônia é que elas cresçam e não que sejam reduzidas", disse o pesquisador, em entrevista à Folha.Para ele, a região conhecida como mata atlântica na verdade é formada por três biomas: as matas, o planalto das araucárias e as pradarias mistas, que ocorrem apenas no Sul.
O geógrafo afirma ser impossível o fato de um estudo apresentado no Rio de Janeiro no início da semana ter previsto que o aquecimento global poderá reduzir em até 60% a mata atlântica brasileira.Para Ab'Sáber, muitos cientistas estão esquecendo de considerar as correntes marítimas brasileiras. "Elas vão continuar mais ou menos como hoje."Se isso ocorrer, explica Ab'Sáber, o chamado ótimo climático, registrado entre 5.000 e 6.000 anos atrás, vai se repetir, não de causa natural, mas por causa antrópica."Quem não conhece o conceito de ótimo climático vai inverter a situação.
Há 6.000 anos, a umidade mais alta nos mares foi fundamental para manter as florestas atlânticas."Para Ab"Sáber, as causas que permitiram a "retropicalização" do Brasil depois do último período de glaciação serão apenas reforçadas agora."As correntes marítimas de água quente, na atualidade, migram até o sul do Brasil a partir da região equatorial. Desconsiderar isso implica errar tudo".
Além disso, segundo o geógrafo, é preciso que as pessoas "leiam o passado". Principalmente no intervalo de tempo que começou há 11 mil anos."É preciso saber que, quando o mar esteve 95 metros mais baixo do que é hoje, no último período de glaciação, a corrente fria que nós chamamos das Malvinas (ou de Falklands também, para não brigar com os cartógrafos), vinha até além da Bahia. Ela não deixava passar os ventos úmidos para dentro do continente. Climas frios se estabeleceram. Ela era uma barragem para penetração de ventos marítimos", ressalta.
Segundo Ab'Sáber, o fenômeno era a semelhante ao que ocorre hoje na costa do Pacífico, entre o Chile e o Peru. "Lá a corrente é fria e toda a região costeira é semidesértica."Com o aumento do nível do mar -entre 5.000 e 6.000 anos ele esteve três metros acima do que está hoje-, a corrente quente chegou ao sul do Brasil, onde ainda está hoje."Ela levou consigo uma umidade que permitiu a formação de florestas costeiras até perto de Porto Alegre, que seguiu depois pela serra Gaúcha desde a cidade de Taquara até além da cidade de Santa Maria."No caso da Amazônia, principalmente na região oriental, as previsões dos cientistas, segundo o professor da USP, também estão erradas. "Todos falaram que a floresta vai diminuir e ganhar cerrado.
O aquecimento global não vai destruir floresta. No máximo, vai haver uma nova delimitação nos bordos da Amazônia. Novos minibiomas vão entrar, até pode ser o cerrado. É certo que vamos continuar com grandes florestas a oeste, porque o regime de chuvas não será muito alterado."Uma concordância com a maior parte dos estudos. Para o geógrafo da USP é realmente preciso ter cuidado com as zonas litorâneas, porque o mar de fato vai subir.
CIÊNCIA
Aquecimento é bom para a floresta, afirma Ab'Sáber
Aquecimento é bom para a floresta, afirma Ab'Sáber
Para geógrafo, estudos não consideram a importância das correntes marítimasHá 6.000 anos, condições climáticas que permitiram a "tropicalização" do Brasil se pareciam com as criadas pelas mudanças globais
O geógrafo afirma ser impossível o fato de um estudo apresentado no Rio de Janeiro no início da semana ter previsto que o aquecimento global poderá reduzir em até 60% a mata atlântica brasileira.Para Ab'Sáber, muitos cientistas estão esquecendo de considerar as correntes marítimas brasileiras. "Elas vão continuar mais ou menos como hoje."Se isso ocorrer, explica Ab'Sáber, o chamado ótimo climático, registrado entre 5.000 e 6.000 anos atrás, vai se repetir, não de causa natural, mas por causa antrópica."Quem não conhece o conceito de ótimo climático vai inverter a situação.
Há 6.000 anos, a umidade mais alta nos mares foi fundamental para manter as florestas atlânticas."Para Ab"Sáber, as causas que permitiram a "retropicalização" do Brasil depois do último período de glaciação serão apenas reforçadas agora."As correntes marítimas de água quente, na atualidade, migram até o sul do Brasil a partir da região equatorial. Desconsiderar isso implica errar tudo".
Além disso, segundo o geógrafo, é preciso que as pessoas "leiam o passado". Principalmente no intervalo de tempo que começou há 11 mil anos."É preciso saber que, quando o mar esteve 95 metros mais baixo do que é hoje, no último período de glaciação, a corrente fria que nós chamamos das Malvinas (ou de Falklands também, para não brigar com os cartógrafos), vinha até além da Bahia. Ela não deixava passar os ventos úmidos para dentro do continente. Climas frios se estabeleceram. Ela era uma barragem para penetração de ventos marítimos", ressalta.
Segundo Ab'Sáber, o fenômeno era a semelhante ao que ocorre hoje na costa do Pacífico, entre o Chile e o Peru. "Lá a corrente é fria e toda a região costeira é semidesértica."Com o aumento do nível do mar -entre 5.000 e 6.000 anos ele esteve três metros acima do que está hoje-, a corrente quente chegou ao sul do Brasil, onde ainda está hoje."Ela levou consigo uma umidade que permitiu a formação de florestas costeiras até perto de Porto Alegre, que seguiu depois pela serra Gaúcha desde a cidade de Taquara até além da cidade de Santa Maria."No caso da Amazônia, principalmente na região oriental, as previsões dos cientistas, segundo o professor da USP, também estão erradas. "Todos falaram que a floresta vai diminuir e ganhar cerrado.
O aquecimento global não vai destruir floresta. No máximo, vai haver uma nova delimitação nos bordos da Amazônia. Novos minibiomas vão entrar, até pode ser o cerrado. É certo que vamos continuar com grandes florestas a oeste, porque o regime de chuvas não será muito alterado."Uma concordância com a maior parte dos estudos. Para o geógrafo da USP é realmente preciso ter cuidado com as zonas litorâneas, porque o mar de fato vai subir.
terça-feira, março 13, 2007
A VOLTA DO IDIOTA
Domingo, 18 fevereiro de 2007- O ESTADO DE SÃO PAULO
A VOLTA DO IDIOTA
Há dez anos surgiu o Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano, no qual Plinio Apuleyo Mendoza, Carlos Alberto Montaner e Álvaro Vargas Llosa arremetiam com tanto humor quanto ferocidade contra os lugares-comuns, o dogmatismo ideológico e a cegueira política por trás do atraso da América Latina. O livro, que golpeava sem misericórdia, mas com sólidos argumentos e provas efetivas, a incapacidade quase genética da direita obstinada e da esquerda boba de aceitar uma evidência histórica - a de que o verdadeiro progresso é indissociável de uma aliança indestrutível entre duas liberdades, a política e a econômica, ou, em outras palavras, entre democracia e mercado -, teve um sucesso inesperado. Além de atingir um vasto público, provocou saudáveis polêmicas e as diatribes inevitáveis num continente 'idiotizado' pela pregação ideológica terceiro-mundista, em todas as suas aberrantes variações, do nacionalismo, do estatismo e do populismo até - como não - o ódio aos Estados Unidos e ao 'neoliberalismo'.Uma década depois, os três autores voltam a sacar das espadas e investir contra os exércitos de 'idiotas' que ultimamente, de um extremo a outro do continente latino-americano, em vez de diminuir, parecem reproduzir-se com a rapidez dos coelhos e baratas, animais de fecundidade proverbial. O humor está sempre presente, assim como a pugnacidade e a defesa em alto e bom som, sem o menor complexo de inferioridade, dessas idéias liberais que, nas atuais circunstâncias, parecem particularmente impopulares no referido continente.Mas é realmente assim? As melhores páginas de El Regreso del Idiota dedicam-se a demarcar as fronteiras entre o que os autores do livro chamam de 'esquerda vegetariana', com a qual quase simpatizam, e 'esquerda carnívora', que detestam. A primeira é representada pelos socialistas chilenos - Ricardo Lagos e Michelle Bachelet -, pelo brasileiro Lula da Silva, pelo uruguaio Tabaré Vásquez, pelo peruano Alan García e aparentemente - quem diria! - pelo nicaragüense Ortega, que agora abraça e comunga freqüentemente com seu velho arquiinimigo, o cardeal Obando y Bravo. Esta esquerda já deixou de ser socialista na prática e é hoje a mais firme defensora do capitalismo - mercados livres e empresa privada -, embora seus líderes, em seus discursos, ainda rendam homenagem à velha retórica e, da boca para fora, reverenciem Fidel Castro e o comandante Chávez. Esta esquerda parece ter entendido que as velhas receitas do socialismo jurássico - ditadura política e economia estatizada - só continuariam afundando seus países no atraso e na miséria. E felizmente resignou-se à democracia e ao mercado.Já a 'esquerda carnívora', que há alguns anos parecia uma antiqualha em vias de extinção que não sobreviveria ao mais longevo ditador da história da América Latina - Fidel Castro -, renasceu das cinzas com o 'idiota' que é a estrela do livro, o comandante Hugo Chávez. Num capítulo muito proveitoso, os autores radiografam Chávez em seu entorno privado e público, com suas desmesuras e palhaçadas, seu delírio messiânico e seu anacronismo, assim como a astuta estratégia totalitária que governa sua política. Discípulo e instrumento de Chávez, o boliviano Evo Morales representa, dentro da 'esquerda carnívora', a subespécie 'indigenista', que, pretendendo subverter cinco séculos de racismo 'branco', prega um racismo quíchua e aimará - idiotice que, embora careça totalmente de solvência conceitual em países como Bolívia, Peru, Equador, Guatemala e México, pois em todas essas sociedades o grosso da população já é mestiça e tanto os índios quanto os brancos 'puros' são minorias, causa grande furor entre os 'idiotas' europeus e americanos, sempre sensíveis a qualquer estereótipo relacionado à América Latina. Embora na 'esquerda carnívora' por enquanto figurem, de modo inequívoco, três trogloditas - Fidel, Chávez e Morales -, El Regreso del Idiota analisa com sutileza o caso do estreante presidente Correa, do Equador, tecnocrata grandiloqüente que poderá engordar suas fileiras. Os personagens inclassificáveis da lista são o presidente argentino Kirchner e sua bela esposa (e talvez sucessora), a senadora Cristina Fernández, mestres do camaleonismo político, pois podem passar de 'vegetarianos' a 'carnívoros' e vice-versa em questão de dias ou mesmo horas, embaralhando todos os esquemas racionais possíveis (como fez o peronismo ao longo de sua história).Uma novidade em El Regreso del Idiota em relação ao livro anterior é que agora o fenômeno da idiotice é examinado pelos autores não só na América Latina, mas também nos Estados Unidos e na Europa, onde, como demonstram estas páginas com exemplos que às vezes produzem gargalhadas, às vezes lágrimas, a idiotice ideológica também é representada por encarnações robustas e epônimas. Os exemplos foram bem escolhidos: a lista é encabeçada pelo inefável Ignacio Ramonet, diretor de Le Monde Diplomatique, tribuna insuperável de toda a espécie no velho continente, e autor do mais dócil e servil livro sobre Fidel Castro - façanha difícil, diga-se de passagem! Ramonet tem a companhia de Noam Chomsky, caso flagrante de esquizofrenia intelectual, que é inspirado e até genial quando limita-se à lingüística transformacional e um 'idiota' irredimível quando desata a falar de política. A Mãe Pátria espanhola é representada pelo dramaturgo Alfonso Sastre e suas toscas distinções entre o terrorismo bom e o terrorismo ruim; e os prêmios Nobel, por Harold Pinter, autor de densos dramas experimentais raramente inteligíveis, ao alcance apenas de públicos arquiburgueses e exóticos, e demagogo inapresentável quando vocifera contra a cultura democrática.No último capítulo, El Regreso del Idiota propõe uma pequena biblioteca para que as pessoas se desidiotizem e alcancem a lucidez política. A seleção é bastante heterogênea, pois inclui desde clássicos do pensamento liberal, como O Caminho da Servidão, de Hayek, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Popper, e A Ação Humana, de Von Mises, até romances como O Zero e o Infinito, de Koestler, e os grandes volumes narrativos de Ayn Rand A Nascente e Quem é John Galt? (a meu ver, teria sido preferível incluir qualquer um dos ensaios ou panfletos de Ayn Rand, cujo individualismo incandescente superava o liberalismo e beirava o anarquismo, em vez de seus romances, que, como toda literatura edificante e de propaganda, são ilegíveis). Por outro lado, não há nada a declarar contra a presença de Gary Becker, Jean François Revel, Milton Friedman e Carlos Rangel, o único autor de língua hispânica da seleção, cujo fantasma deve sofrer o indizível com o que acontece em sua terra, uma Venezuela que ele já não reconheceria.Apesar do bom humor, da insolência revigorante e da atitude positiva dos autores diante dos ventos ruins que correm pela América Latina, é impossível não perceber, nas páginas deste livro, um ar de desmoralização. Não é por menos. Pois o certo é que, apesar dos casos de modernização bem-sucedida assinalados - o já conhecido do Chile e o promissor de El Salvador, sobre o qual o livro oferece dados muito interessantes, assim como os triunfos eleitorais de Álvaro Uribe na Colômbia, Alan García no Peru e Felipe Calderón no México, que foram claras derrotas para o 'idiota' em questão -, o certo é que, em boa parte da América Latina, há um claro retrocesso da democracia liberal e um retorno do populismo, inclusive em sua variante mais cavernal: a do estatismo e do coletivismo comunistas.Esta é a angustiante conclusão implícita neste livro febril e combativo: na América Latina, pelo menos, existe uma certa forma de idiotice ideológica que parece irredutível. Pode-se derrotá-la em batalhas, mas não na guerra, porque, como a hidra mitológica, ela reproduz seus tentáculos de novo e de novo, imunizada contra os ensinamentos e desmentidos da História, cega, surda e impermeável a tudo que não seja sua própria escuridão.
TRADUÇÃO DE ALEXANDRE MOSCHELLA
sábado, março 10, 2007
OS QUATRO MITOS DA ESCOLA BRASILEIRA
VEJA, Edição 1998, 07 de março de 2007
Artigo de Gustavo Ioschpe
O Brasil tem se destacado há décadas na educação por uma razão incômoda: está entre os piores do mundo em sala de aula. Foi esse o tema de dois artigos do economista Gustavo Ioschpe, publicados por VEJA no ano passado. Especialista em economia da educação, com mestrado pela Universidade Yale, nos Estados Unidos, Ioschpe tornou-se referência no meio acadêmico ao abordar as questões do ensino com objetividade matemática. Reuniu suas conclusões no livro A Ignorância Custa um Mundo – O Valor da Educação no Desenvolvimento do Brasil, vencedor do Prêmio Jabuti em 2005. Um dos pilares de sua pesquisa causou controvérsia: Ioschpe afirma que os males da escola brasileira não têm relação com a escassez de dinheiro em sala de aula, tampouco com o baixo salário dos professores – idéias cristalizadas no Brasil –, mas sim se originam do despreparo dos docentes para o exercício da profissão. Neste artigo, Ioschpe se utiliza de comparações internacionais e estatísticas recentes para derrubar quatro dos mitos que, segundo ele, mais prejudicam a visão sobre os reais problemas da educação no país.
1º MITOO professor brasileiro é mal remunerado
Ao aceitar essa idéia como verdade absoluta, as pessoas estão cometendo pelo menos dois enganos. O primeiro erro é comparar os professores brasileiros aos colegas estrangeiros. Se um país tem renda dez vezes maior que a brasileira, é de esperar que não só seus professores como as outras categorias ganhem um salário dez vezes maior – e é exatamente isso que ocorre. A comparação apropriada não é, portanto, entre a remuneração dos professores de vários países, mas sim desses salários em relação à média nacional. E nessa conta os docentes brasileiros aparecem numa situação mais favorável: enquanto eles recebem salário 56% superior à média nacional, nos países mais ricos a remuneração dos professores é 15% menor. Outra maneira de ver a questão é esclarecer se, lado a lado com outros profissionais brasileiros – de escolaridade e experiência equivalentes –, os professores levam a pior.
É aí que surge o segundo engano sobre a situação dos professores no Brasil. A comparação entre o salário dos docentes e o de outras categorias costuma desconsiderar um conjunto objetivo de variáveis, como jornada de trabalho, férias e aposentadoria (ao contrário da idéia que vigora no país, o professor tem jornada de trabalho mais leve do que o restante da população: 70% trabalham até quarenta horas semanais). São equívocos matemáticos que alimentam o mito de que o professor no Brasil é um injustiçado. Dos estudos mais sérios sobre o assunto, depreende-se justamente o contrário: eles mostram que o professor brasileiro está longe de ser discriminado no mercado de trabalho. Esses profissionais recebem, no Brasil, o esperado para pessoas com as suas qualificações e com a mesma rotina de trabalho. Se a classe docente fosse realmente injustiçada, o magistério não seria uma das carreiras mais populares do país, com mais de 2 milhões de profissionais – número que só faz crescer.
2º MITO A educação só vai melhorar no dia em que os professores receberem salário mais alto
Essa é uma afirmação que não tem respaldo na experiência internacional – nem na brasileira. Ao avaliarem o efeito que o aumento no salário dos professores havia causado no desempenho dos estudantes, centenas de pesquisas chegaram a um consenso: elevar a remuneração não fez melhorar os resultados na sala de aula. Da própria experiência brasileira, é possível extrair conclusão semelhante. Basta analisar o que ocorreu depois da melhora no salário dos professores, proporcionada pelo antigo Fundef (o fundo para a educação que foi substituído pelo atual Fundeb), desde 1997. Nesse caso, enquanto a remuneração dos docentes melhorou, as notas dos alunos despencaram nos exames nacionais conduzidos pelo Ministério da Educação. Conclusão: ter mais dinheiro no bolso não é o fato determinante para transformar o professor num bom educador. O que mais prejudica a performance dos docentes no Brasil é um sistema que despreza talentos individuais e resultados acadêmicos e forma professores com uma mentalidade equivocada – enquanto apenas 9% consideram ser prioritário "proporcionar conhecimentos básicos" aos alunos, a maioria prefere "formar cidadãos conscientes", de acordo com uma pesquisa da Unesco. É preciso, portanto, redimensionar a questão dos salários. O aumento dos professores pode trazer benefício a eles – mas não aos alunos. O mais urgente é fazer com que o professor chegue à sala de aula sabendo ensinar.
3º MITO O Brasil investe pouco dinheiro em educação
Esse é um mito que não resiste a uma rápida consulta aos dados oficiais. De acordo com um recente relatório que comparou o volume de investimento de trinta países em educação, o Brasil não fica atrás das nações mais ricas. Eis os números: enquanto o Estado brasileiro destina 3,4% do PIB às escolas básicas, nos países da OCDE (organização formada por países da Europa e pelos Estados Unidos) esse gasto corresponde a 3,5% do PIB. O governo brasileiro também aparece como um investidor generoso no ensino superior: reserva às universidades 0,8% do PIB – a média da OCDE é de 1% do PIB (e olhe que no Brasil apenas 20% dos jovens estão na universidade, enquanto nos países mais desenvolvidos a média é de 50% de universitários). Conclusão: o Brasil gasta praticamente o mesmo que os países desenvolvidos – e obtém resultados muito piores.
Alguns especialistas consideram a comparação do Brasil com os países mais ricos inadequada e, por essa razão, continuam a bater na tecla da escassez de dinheiro. Eles argumentam que, ao contrário do que ocorre com os países da OCDE, o Brasil ainda precisa dar um enorme salto na educação, o que consumiria uma fatia bem maior de recursos. É a experiência internacional, mais uma vez, que os contradiz. O melhor exemplo vem da Coréia do Sul: entre 1970 e 1995, o governo coreano separou 3,5% do PIB para patrocinar uma revolução em sala de aula. A China também tem gasto pouco – apenas 2% do PIB ao ano – para alcançar resultados igualmente extraordinários. Pesquisas conduzidas em dezenas de países não cansam de demonstrar que o volume de investimento não tem relação com a qualidade em sala de aula. O problema da educação brasileira não é, portanto, a falta de dinheiro – mas sim o fato de o governo gastar mal o que tem.
Coréia do Sul: o governo promoveu uma revolução em sala de aula com orçamento moderado
4º MITO A escola particular é excelente
Os resultados dos exames realizados por estudantes de escolas públicas e particulares autorizam apenas a concluir que a rede privada é um pouco melhor do que os colégios municipais e estaduais. Esses exames estão longe de indicar que a escola particular brasileira é um modelo de excelência acadêmica. O dado mais esclarecedor sobre o assunto veio de uma prova aplicada pela OCDE, que mediu o conhecimento dos estudantes de 41 países e colocou o Brasil nas últimas posições em todas as disciplinas avaliadas. O teste mostrou que não apenas os alunos de escolas públicas haviam contribuído para o fiasco brasileiro: o resultado dos estudantes 25% mais ricos do Brasil foi inferior ao dos 25% mais pobres dos países mais desenvolvidos. Nossas deficiências educacionais são, portanto, visíveis nos alunos que supostamente cursam as melhores escolas particulares. O mito de que a escola particular oferta ensino de alto nível também não resiste ao diagnóstico que toma como base o resultado dos estudantes nos exames do MEC: o conhecimento dos alunos nesses colégios está aquém do desejado – e a anos-luz da excelência, segundo o próprio MEC.
As pesquisas chamam atenção ainda para outro fato que depõe contra a escola particular: 90% de sua superioridade em relação à rede pública deve-se à condição socioeconômica de seus estudantes, que vivem num ambiente mais favorável ao aprendizado. Apenas 10% são atribuídos ao maior brilhantismo acadêmico da escola. As escolas particulares, afinal, sofrem do mesmo problema que os colégios públicos: seus professores passaram por escolas ruins e cursaram faculdades precárias. Infelizmente, eles estão igualmente desqualificados para dar uma boa aula. O Brasil só vai deixar a lanterna na educação quando conseguir fazer um diagnóstico correto – e se livrar desse e dos demais mitos que rondam as escolas do país.
Artigo de Gustavo Ioschpe
O Brasil tem se destacado há décadas na educação por uma razão incômoda: está entre os piores do mundo em sala de aula. Foi esse o tema de dois artigos do economista Gustavo Ioschpe, publicados por VEJA no ano passado. Especialista em economia da educação, com mestrado pela Universidade Yale, nos Estados Unidos, Ioschpe tornou-se referência no meio acadêmico ao abordar as questões do ensino com objetividade matemática. Reuniu suas conclusões no livro A Ignorância Custa um Mundo – O Valor da Educação no Desenvolvimento do Brasil, vencedor do Prêmio Jabuti em 2005. Um dos pilares de sua pesquisa causou controvérsia: Ioschpe afirma que os males da escola brasileira não têm relação com a escassez de dinheiro em sala de aula, tampouco com o baixo salário dos professores – idéias cristalizadas no Brasil –, mas sim se originam do despreparo dos docentes para o exercício da profissão. Neste artigo, Ioschpe se utiliza de comparações internacionais e estatísticas recentes para derrubar quatro dos mitos que, segundo ele, mais prejudicam a visão sobre os reais problemas da educação no país.
1º MITOO professor brasileiro é mal remunerado
Ao aceitar essa idéia como verdade absoluta, as pessoas estão cometendo pelo menos dois enganos. O primeiro erro é comparar os professores brasileiros aos colegas estrangeiros. Se um país tem renda dez vezes maior que a brasileira, é de esperar que não só seus professores como as outras categorias ganhem um salário dez vezes maior – e é exatamente isso que ocorre. A comparação apropriada não é, portanto, entre a remuneração dos professores de vários países, mas sim desses salários em relação à média nacional. E nessa conta os docentes brasileiros aparecem numa situação mais favorável: enquanto eles recebem salário 56% superior à média nacional, nos países mais ricos a remuneração dos professores é 15% menor. Outra maneira de ver a questão é esclarecer se, lado a lado com outros profissionais brasileiros – de escolaridade e experiência equivalentes –, os professores levam a pior.
É aí que surge o segundo engano sobre a situação dos professores no Brasil. A comparação entre o salário dos docentes e o de outras categorias costuma desconsiderar um conjunto objetivo de variáveis, como jornada de trabalho, férias e aposentadoria (ao contrário da idéia que vigora no país, o professor tem jornada de trabalho mais leve do que o restante da população: 70% trabalham até quarenta horas semanais). São equívocos matemáticos que alimentam o mito de que o professor no Brasil é um injustiçado. Dos estudos mais sérios sobre o assunto, depreende-se justamente o contrário: eles mostram que o professor brasileiro está longe de ser discriminado no mercado de trabalho. Esses profissionais recebem, no Brasil, o esperado para pessoas com as suas qualificações e com a mesma rotina de trabalho. Se a classe docente fosse realmente injustiçada, o magistério não seria uma das carreiras mais populares do país, com mais de 2 milhões de profissionais – número que só faz crescer.
2º MITO A educação só vai melhorar no dia em que os professores receberem salário mais alto
Essa é uma afirmação que não tem respaldo na experiência internacional – nem na brasileira. Ao avaliarem o efeito que o aumento no salário dos professores havia causado no desempenho dos estudantes, centenas de pesquisas chegaram a um consenso: elevar a remuneração não fez melhorar os resultados na sala de aula. Da própria experiência brasileira, é possível extrair conclusão semelhante. Basta analisar o que ocorreu depois da melhora no salário dos professores, proporcionada pelo antigo Fundef (o fundo para a educação que foi substituído pelo atual Fundeb), desde 1997. Nesse caso, enquanto a remuneração dos docentes melhorou, as notas dos alunos despencaram nos exames nacionais conduzidos pelo Ministério da Educação. Conclusão: ter mais dinheiro no bolso não é o fato determinante para transformar o professor num bom educador. O que mais prejudica a performance dos docentes no Brasil é um sistema que despreza talentos individuais e resultados acadêmicos e forma professores com uma mentalidade equivocada – enquanto apenas 9% consideram ser prioritário "proporcionar conhecimentos básicos" aos alunos, a maioria prefere "formar cidadãos conscientes", de acordo com uma pesquisa da Unesco. É preciso, portanto, redimensionar a questão dos salários. O aumento dos professores pode trazer benefício a eles – mas não aos alunos. O mais urgente é fazer com que o professor chegue à sala de aula sabendo ensinar.
3º MITO O Brasil investe pouco dinheiro em educação
Esse é um mito que não resiste a uma rápida consulta aos dados oficiais. De acordo com um recente relatório que comparou o volume de investimento de trinta países em educação, o Brasil não fica atrás das nações mais ricas. Eis os números: enquanto o Estado brasileiro destina 3,4% do PIB às escolas básicas, nos países da OCDE (organização formada por países da Europa e pelos Estados Unidos) esse gasto corresponde a 3,5% do PIB. O governo brasileiro também aparece como um investidor generoso no ensino superior: reserva às universidades 0,8% do PIB – a média da OCDE é de 1% do PIB (e olhe que no Brasil apenas 20% dos jovens estão na universidade, enquanto nos países mais desenvolvidos a média é de 50% de universitários). Conclusão: o Brasil gasta praticamente o mesmo que os países desenvolvidos – e obtém resultados muito piores.
Alguns especialistas consideram a comparação do Brasil com os países mais ricos inadequada e, por essa razão, continuam a bater na tecla da escassez de dinheiro. Eles argumentam que, ao contrário do que ocorre com os países da OCDE, o Brasil ainda precisa dar um enorme salto na educação, o que consumiria uma fatia bem maior de recursos. É a experiência internacional, mais uma vez, que os contradiz. O melhor exemplo vem da Coréia do Sul: entre 1970 e 1995, o governo coreano separou 3,5% do PIB para patrocinar uma revolução em sala de aula. A China também tem gasto pouco – apenas 2% do PIB ao ano – para alcançar resultados igualmente extraordinários. Pesquisas conduzidas em dezenas de países não cansam de demonstrar que o volume de investimento não tem relação com a qualidade em sala de aula. O problema da educação brasileira não é, portanto, a falta de dinheiro – mas sim o fato de o governo gastar mal o que tem.
Coréia do Sul: o governo promoveu uma revolução em sala de aula com orçamento moderado
4º MITO A escola particular é excelente
Os resultados dos exames realizados por estudantes de escolas públicas e particulares autorizam apenas a concluir que a rede privada é um pouco melhor do que os colégios municipais e estaduais. Esses exames estão longe de indicar que a escola particular brasileira é um modelo de excelência acadêmica. O dado mais esclarecedor sobre o assunto veio de uma prova aplicada pela OCDE, que mediu o conhecimento dos estudantes de 41 países e colocou o Brasil nas últimas posições em todas as disciplinas avaliadas. O teste mostrou que não apenas os alunos de escolas públicas haviam contribuído para o fiasco brasileiro: o resultado dos estudantes 25% mais ricos do Brasil foi inferior ao dos 25% mais pobres dos países mais desenvolvidos. Nossas deficiências educacionais são, portanto, visíveis nos alunos que supostamente cursam as melhores escolas particulares. O mito de que a escola particular oferta ensino de alto nível também não resiste ao diagnóstico que toma como base o resultado dos estudantes nos exames do MEC: o conhecimento dos alunos nesses colégios está aquém do desejado – e a anos-luz da excelência, segundo o próprio MEC.
As pesquisas chamam atenção ainda para outro fato que depõe contra a escola particular: 90% de sua superioridade em relação à rede pública deve-se à condição socioeconômica de seus estudantes, que vivem num ambiente mais favorável ao aprendizado. Apenas 10% são atribuídos ao maior brilhantismo acadêmico da escola. As escolas particulares, afinal, sofrem do mesmo problema que os colégios públicos: seus professores passaram por escolas ruins e cursaram faculdades precárias. Infelizmente, eles estão igualmente desqualificados para dar uma boa aula. O Brasil só vai deixar a lanterna na educação quando conseguir fazer um diagnóstico correto – e se livrar desse e dos demais mitos que rondam as escolas do país.
sexta-feira, março 09, 2007
SOCIALISMO E NAZISMO
O Globo, 5 de novembro de 2000
A VERDADEIRA DIREITA
Olavo de Carvalho
Se nas coisas que escrevo há algo que irrita os comunas até à demência, é o contraste entre o vigor das críticas que faço à sua ideologia e a brandura das propostas que lhe oponho: as da boa e velha democracia liberal. Eles se sentiriam reconfortados se em vez disso eu advogasse um autoritarismo de direita, a monarquia absoluta ou, melhor ainda, um totalitarismo nazifascista. Isso confirmaria a mentira sobre a qual construíram suas vidas: a mentira de que o contrário do socialismo é ditadura, é tirania, é nazifascismo.
Um socialista não apenas vive dessa mentira: vive de forçar os outros a desempenhar os papéis que a confirmam no teatrinho mental que, na cabeça dele, faz as vezes de realidade. Quando encontra um oponente, ele quer porque quer que seja um nazista. Se o cidadão responde: "Não, obrigado, prefiro a democracia liberal", ele entra em surto e grita: "Não pode! Não pode! Tem de ser nazista! Confesse! Confesse! Você é nazista! É!" Se, não desejando confessar um crime que não cometeu, muito menos fazê-lo só para agradar a um acusador, o sujeito insiste: "Lamento, amigo, não posso ser nazista. No mínimo, não posso sê-lo porque nazismo é socialismo", aí o socialista treme, range os dentes, baba, pula e exclama: "Estão vendo? Eis a prova! É nazista! É nazista!"
Recentemente, cem professores universitários, subsidiados por verbas públicas, edificaram toda uma empulhação dicionarizada só para impingir ao público a lorota de que quem não gosta do socialismo deles é nazista. Não se trata, porém, de pura vigarice intelectual. A coisa tem um sentido prático formidável. Ajuda a preparar futuras perseguições. Consagrado no linguajar corrente o falso conceito geral, bastará aplicá-lo a um caso singular para produzir um arremedo de prova judicial. Para condenar um acusado de nazismo, será preciso apenas demonstrar que ele era contra o socialismo. Hoje esse raciocínio já vale entre os esquerdistas. Quando dominarem o Estado, valerá nos tribunais. Valerá nos daqui como valeu nos de todos os regimes socialistas do mundo.
Intimidados por essa chantagem, muitos liberais sentem-se compelidos a moderar suas críticas ao socialismo. Mas isso é atirar-se na armadilha por medo de cair nela. Já digo por que.
Socialismo é a eliminação da dualidade de poder econômico e poder político que, nos países capitalistas, possibilita - embora não produza por si -- a subsistência da democracia e da liberdade. Se no capitalismo há desigualdade social, ela se torna incomparavelmente maior no socialismo, onde o grupo que detém o controle das riquezas é, sem mediações, o mesmo que comanda a polícia, o exército, a educação, a saúde pública e tudo o mais. No capitalismo pode-se lutar contra o poder econômico por meio do poder político e vice-versa (a oposição socialista não faz outra coisa). No socialismo, isso é inviável: não há fortuna, própria ou alheia, na qual o cidadão possa apoiar-se contra o governo, nem poder político ao qual recorrer contra o detentor de toda riqueza. O socialismo é totalitário não apenas na prática, mas na teoria: é a teoria do poder sintético, do poder total, da total escravização do homem pelo homem.
A formação de uma "nomenklatura" onipotente, com padrão de vida nababesco, montada em cima de multidões reduzidas ao trabalho escravo, não foi portanto um desvio ou deturpação da idéia socialista, mas o simples desenrolar lógico e inevitável das premissas que a definem. É preciso ser visceralmente desonesto para negar que há uma ligação essencial e indissolúvel entre elitismo ditatorial e estatização dos meios de produção.
O socialismo não é mau apenas historicamente, por seus crimes imensuráveis. É mau desde a raiz, é mau já no pretenso ideal de justiça em que diz inspirar-se, o qual, tão logo retirado da sua névoa verbal e expresso conceitualmente, revela ser a fórmula mesma da injustiça: tudo para uns, nada para os outros.
Porém, no próprio capitalismo, qualquer fusão parcial e temporária dos dois poderes já se torna um impedimento à democracia e ameaça desembocar no fascismo. Não há fascismo ou nazismo sem controle estatal da economia, portanto sem algo de intrinsecamente socialista. Não foi à toa que o regime de Hitler se denominou "socialismo nacional". Stalin chamava-o, com razão, "o navio quebra-gelo da revolução". Por isso os socialistas, sempre alardeando hostilidade, tiveram intensos namoros com fascistas e nazistas, como nos acordos secretos entre Hitler e Stalin de 1933 a 1941, na célebre aliança Prestes-Vargas etc. Já com o liberalismo nunca aceitaram acordo, o que prova que sabem muito bem distinguir entre o meio-amigo e o autêntico inimigo.
Por isso mesmo, é uma farsa monstruosa situar nazismo e fascismo na extrema-direita, subentendendo que a democracia liberal está no centro, mais próxima do socialismo. Ao contrário: o que há de mais radicalmente oposto ao socialismo é a democracia liberal. Esta é a única verdadeira direita. É mesmo a extrema direita: a única que assume o compromisso sagrado de jamais se acumpliciar com o socialismo.
Nazismo e fascismo não são extrema-direita, pela simples razão de que não são direita nenhuma: são o maldito centro, são o meio-caminho andado, são o abre-alas do sangrento carnaval socialista. Os judeus, perseguidos em épocas anteriores, podiam usar do poder econômico para defender-se ou fugir: o socialismo alemão, estatizando seus bens, expulsou-os desse último abrigo. Isso seria totalmente impossível no liberal-capitalismo. Só o socialismo cria os meios da opressão perfeita.
segunda-feira, março 05, 2007
TRECHOS DA OBRA DE AYN RAND
Segue abaixo um trecho memorável de uma obra em que Ayn Rand mostra, de forma extremamente convincente, a inviabilidade de uma sociedade baseada no princípio marxista "De cada um, conforme sua capacidade, para cada um, conforme sua necessidade".
O trecho é longo -- é parte de Atlas Shrugged (1957; em Português: Quem é John Galt? [Editora Expressão e Cultura, 1987]), romance em que Ayn Rand conta, entre outras coisas, como uma fábrica de ponta e extremamente produtiva é destruída por idéias igualitárias. A transcrição é segundo o texto da tradução (pp. 510-517).
A maior parte do trecho é uma explicação, por parte de um ex-empregado, e dada a uma mulher que o entrevistava, de porque a fábrica faliu. Ironicamente, a fábrica se chamava Motores Século Vinte (Twentieth-Century Motors).
Trata-se de uma obra de ficção - ma non troppo. . . O livro foi recentemente votado pelos leitores, na Internet, a obra de ficção mais importante do século XX. Vide a página de referência. [Se preferir ler a passagem em Espanhol, clique aqui].
[p.510] Bem, foi uma coisa que aconteceu na fábrica onde eu trabalhei durante vinte anos. Foi quando o velho morreu e os herdeiros tomaram conta. Eles eram três, dois filhos e uma filha, e inventaram um novo plano para administrar a fábrica. Deixaram a gente votar, também, para aceitar ou não o plano, e todo mundo, quase todo mundo, votou a favor. A gente não sabia, pensava que fosse bom. Não, também não é bem isso, não. A gente pensavam que queriam que a gente achasse que era bom. O plano era o seguinte: cada um trabalhava conforme sua capacidade, e recebia conforme sua necessidade. . . .
Aprovamos o tal plano numa grande assembléia: nós éramos seis mil, todo mundo que trabalhava na fábrica. Os herdeiros do velho Starnes fizeram uns discursos compridos, e ninguém entendeu muito bem, mas ninguém fez nenhuma pergunta. Ninguém sabia como plano ia funcionar, mas cada um achava que o outro sabia. E quem tinha dúvida se sentia culpado e não dizia nada, porque do jeito como os herdeiros falavam, quem fosse contra era desumano e assassino de criancinha. Disseram que esse plano ia concretizar um nobre ideal. Como é que a gente podia saber? Não era isso que a gente ouvia a vida inteira dos pais, professores e pastores, em todos os jornais, filmes e discursos políticos? Não diziam sempre que isso é que era certo e justo? Bem, pode ser que a gente tenha alguma desculpa para o que fez naquela assembléia. O fato é que votamos a favor do plano, e o que aconteceu conosco depois foi merecido.
A senhora sabe, nós que trabalhamos lá na Século Vinte durante aqueles quatro anos, somos homens marcados. O que é que dizem que o inferno é? O mal, o mal puro, nu, absoluto, não é? Pois foi isso que a gente viu e ajudou a fazer, e acho que todos nós estamos malditos, e talvez nunca mais vamos ter perdão. . .
A senhora quer saber como funcionou o tal plano, e o que aconteceu com as pessoas? É como derramar água dentro de um tanque onde tem um cano no fundo puxando mais água do que entra, e cada balde que a senhora derrama lá dentro o cano alarga mais um bocado, e quanto mais a senhor trabalha, mais exigem da senhora, e no final a senhora está despejando balde quarenta horas por semana, depois quarenta e oito, depois cinqüenta e seis, para o jantar do vizinho, para a operação da mulher dele, para o sarampo do filho dele, para a cadeira de rodas da mãe dele, para a camisa do tio dele, para a escola do sobrinho dele, para o bebê do vizinho, para o bebê que ainda vai nascer, para todo mundo à sua volta, tudo é para eles, desde as fraldas até as dentaduras, e só o trabalho é seu, trabalhar da hora em que o sol nasce até escurecer, mês após mês, ano após ano, ganhando só suor, o prazer só deles, durante toda a sua vida, sem descansar, sem esperança, sem fim. . . .
De cada um, conforme sua capacidade, para cada um, conforme sua necessidade. . . .
Nós somos uma grande família, todo mundo, é o que nos diziam, estamos todos [p.511] no mesmo barco. Mas não é todo mundo que passa dez horas com um maçarico na mão, nem todo mundo que fica com dor de barriga ao mesmo tempo. Capacidade de quem? Necessidade de quem, quem tem prioridade? Quando é tudo uma coisa só, ninguém pode dizer quais são as suas necessidades, não é? Senão qualquer um pode dizer que necessita de um iate, e se só o que conta são os sentimentos dele, ele acaba até provando que tem razão. Por que não? Se eu só tenho o direito de ter carro depois que eu trabalhei tanto que fui parar no hospital, depois de garantir um carro para todo vagabundo e todo selvagem nu do mundo, por que ele não pode exigir de mim um iate também, se eu ainda tenho capacidade de trabalhar? Não pode? Então ele não pode exigir que eu tome meu café sem leite até ele conseguir pintar a sala de visitas dele? . . .
Pois é. . . . Mas aí decidiram que ninguém tinha direito de julgar suas próprias capacidades e necessidades. Tudo era resolvido na base da votação. Sim, senhora, tudo era votado em assembléia duas vezes por ano. Não tinha outro jeito, não é? E a senhora imagina o que acontecia nessas assembléias? Bastou a primeira para a gente descobrir que todo mundo tinha virado mendigo -- mendigos, esfarrapados, humilhados, todos nós, porque nenhum homem podia dizer que fazia jus a seu salário, não tinha direitos nem fazia jus a nada, não era dono de seu trabalho, o trabalho pertencia à 'família', e ele não lhe devia nada em troca, a única coisa que cada um tinha era a sua 'necessidade', e aí tinha que pedir em público que atendessem às suas necessidades, como qualquer parasita, enumerando todos os seus problemas, até os remendos na calça e os resfriados da esposa, na esperança de que a 'família' lhe jogasse uma esmola. O jeito era chorar miséria, porque era a sua miséria, e não o seu trabalho, que agora era a moeda corrente de lá.
Assim, a coisa virou um concurso de misérias disputado por seis mil pedintes, cada um chorando mais miséria que o outro. Não tinha outro jeito, não é? A senhora imagina o que aconteceu, que tipo de homem ficava calado, com vergonha, e que tipo de homem levava a melhor?
Mas tem mais. Mais uma coisa que a gente descobriu na mesma assembléia. A produção da fábrica tinha caído quarenta por cento naquele primeiro semestre, e aí concluiu-se que alguém não tinha usado toda a sua 'capacidade'. Quem? Como descobrir? A 'família' decidia isso no voto, também. Escolhiam no voto quais eram os melhores trabalhadores, e esses eram condenados a trabalhar mais, fazer hora extra todas as noites durante os próximos seis meses. E sem ganhar nada mais, porque a gente ganhava não por tempo nem por trabalho, e sim conforme a necessidade.
Será necessário explicar o que aconteceu depois disso? Explicar que tipo de criaturas nós fomos virando, nós que antes éramos seres humanos? Começamos a esconder toda a nossa capacidade, trabalhar mais devagar, ficar de olho para ter certeza de que a gente não trabalhava mais depressa nem melhor do que o colega ao nosso lado. Tinha que ser assim, pois a gente sabia que quem desse o melhor de si para a 'família' não ganhava elogio nem recompensa, mas castigo. Sabíamos que para cada imbecil que estragasse um motor e desse um prejuízo para a fábrica -- ou por desleixo, porque ele não tinha nenhum motivo para caprichar, ou por pura incompetência -- quem ia ter que pagar era a gente, trabalhando de noite e no domingo. Assim, a gente se esforçava o máximo para ser o pior possível.
Havia um garoto que começou todo empolgado com o nobre ideal, um garoto muito vivo, sem instrução, mas um crânio. No primeiro ano ele inventou um processo que economizava milhares de homens-hora. Deu de mão beijada a descoberta dele para a 'família', não pediu nada em troca, nem podia, mas não se incomodava com isso. Era tudo pelo ideal, dizia ele. Mas quando foi eleito um dos mais capazes e condenado a trabalhar de noite, ele fechou a boca e o cérebro. No ano seguinte, é claro, não teve nenhuma idéia brilhante.
A vida inteira nos ensinaram que os lucros e a competição tinham um efeito nefasto, que era terrível um competir com o outro para ver quem era melhor, não é? Nefasto? Pois deviam ver o que acontecia quando um competia com o outro para ver quem era o pior.
Não há maneira melhor de destruir um homem do que obrigá-lo a tentar NÃO fazer o melhor de que é capaz, a se esforçar por fazer o pior possível, dia após dia. Isso mata mais [p.512] depressa do que a bebida, a vadiagem, a vida de crime. Mas para nós a única saída era fingir incompetência. A única acusação que temíamos era a de que tínhamos capacidade. A capacidade era como uma hipoteca que não se termina de pagar.
E trabalhar para quê? A gente sabia que o mínimo para a sobrevivência era dado a todo mundo, quer trabalhasse quer não, a chamada 'ajuda de custo para moradia e alimentação', e mais do que isso não se tinha como ganhar, por mais que se esforçasse. Não se podia ter certeza de que seria possível comprar uma muda de roupas no ano seguinte -- a senhora podia ou não ganhar uma 'ajuda de custo para vestimentas', dependendo de quantas pessoas quebrassem a perna, precisassem ser operadas, ou tivessem mais filhos. E se não havia dinheiro para todo mundo comprar roupas, então a senhora também ficava sem roupa nova.
Havia um homem que tinha passado a vida toda trabalhando até não poder mais, porque queria que seu filho fizesse faculdade. Pois bem, o garoto terminou o secundário no segundo ano de vigência do plano, mas a 'família' não quis dar ao homem uma 'ajuda de custo' para pagar a faculdade do filho. Disseram que o filho só ia poder entrar para a faculdade quando houvesse dinheiro para os filhos de todos entrarem para a faculdade -- e, para isso, era preciso primeiro pagar a escola secundária dos filhos de todos, e não havia dinheiro nem para isso. O homem morreu no ano seguinte, numa briga de faca num bar, uma briga sem motivo; brigas desse tipo estavam se tornando cada vez mais comum entre nós.
Havia um sujeito mais velho, um viúvo sem família, que tinha um hobby: colecionar discos. Acho que era a única coisa de que ele gostava na vida. Antigamente, ele costumava ficar sem almoçar para ter dinheiro para comprar mais um disco clássico. Pois não lhe deram nenhuma 'ajuda de custo' para comprar discos -- disseram que aquilo era 'luxo pessoal'. Mas, naquela mesma assembléia, votaram a favor de dar para uma tal de Millie Bush, filha de alguém, uma garotinha de oito anos, feia e má, um aparelho de ouro para corrigir seus dentes -- isto era uma 'necessidade médica', porque o psicólogo da empresa disse que a coitadinha ia ficar com complexo de inferioridade se seus dentes não fossem endireitados. O velho que gostava de música passou a beber. Chegou a um ponto em que nunca mais era visto sóbrio. Mas parece que uma coisa ele nunca esqueceu. Uma noite, ele vinha cambaleando pela rua quando viu a tal da Millie Bush: deu-lhe um soco que lhe quebrou todos os dentes. Todos.
A bebida, naturalmente, era a solução para a qual todos nós apelávamos, uns mais, outros menos. Não me pergunte onde é que achávamos dinheiro para isso. Quando todos os prazeres decentes são proibidos, sempre se dá um jeito de gozar os prazeres que não prestam. Ninguém arromba mercearias à noite nem rouba o colega para comprar discos clássicos nem caniços de pesca, mas se é para tomar um porre e esquecer, faz-se de tudo. Caniços de pesca? Armas para caçar? Máquinas fotográficas? Hobbies? Não havia 'ajuda de custo de entretenimento' para ninguém. O 'entretenimento' foi a primeira coisa que eles cortaram. Pois a gente não deve ter vergonha de reclamar quando alguém pede para abrirmos mão de uma coisa que nos dá prazer? Até mesmo a nossa 'ajuda de custo de fumo' foi racionada a ponto de só recebermos dois maços de cigarro por mês -- e isso, diziam eles, porque o dinheiro estava indo para o fundo do leite dos bebês.
Os bebês eram o único produto que havia em quantidades cada vez maiores -- porque as pessoas não tinham outra coisa para fazer, imagino, e porque não tinham que se preocupar com os gastos da criação dos bebês, já que eram uma responsabilidade da 'família'. Aliás, a melhor maneira de conseguir um aumento e poder ficar mais folgado por uns tempos era ganhar uma 'ajuda de custo para bebês' -- ou isso ou arranjar uma doença séria.
Não demorou muito para a gente entender como a coisa funcionava. Todo aquele que resolvia fazer tudo certinho tinha que se abster de tudo. Tinha que perder toda a vontade de gozar qualquer prazer, não gostar de fumar um cigarro nem mascar um chiclete, porque alguém podia ter uma necessidade maior do dinheiro gasto naquele cigarro ou chiclete. Sentia vergonha cada vez que engolia uma garfada de comida, pensando em quem tinha tido que trabalhar de noite para [p.513] pagar aquela garfada, sabendo que a comida que comia não era sua por direito, sentindo a vontade infame de ser trapaceado ao invés de trapacear, ser um pato e não um sanguessuga. Não podia ajudar os pais, para não colocar um fardo mais pesado sobre os ombros da 'família'. Além disso, se ele tivesse um mínimo de senso de responsabilidade, não podia nem casar nem ter filhos, pois não podia planejar nada, prometer nada, contar com nada.
Mas os indolentes e irresponsáveis se deram bem. Arranjaram filhos, seduziram moças, trouxeram todos os parentes imprestáveis que tinham, todas as irmãs solteiras grávidas, para receber uma 'ajuda de custo de doença', inventaram todas as doenças possíveis, sem que os médicos pudessem provar a fraude, estragaram suas roupas, seus móveis, suas casas -- pois não era a 'família' que estava pagando? Descobriram muito mais 'necessidades' do que os outros -- desenvolveram um talento especial para isso, a única capacidade que demonstraram.
Deus me livre! A senhora entende? Compreendemos que nos tinham dado uma lei, uma lei MORAL, segundo eles, que punia aqueles que a observavam -- pelo fato de a observarem. Quanto mais a senhora tentava seguir essa lei, mais a senhora sofria; quanto mais a senhora a violava, mais lucrava. A sua honestidade era como um instrumento nas mãos da desonestidade do próximo. Os honestos pagavam, e os desonestos lucravam. Os honestos perdiam, os desonestos, ganhavam. Com esse tipo de padrão do que é certo e errado, por quanto tempo os homens poderiam permanecer honestos? No começo éramos pessoas bem honestas, e só havia uns poucos aproveitadores. Éramos competentes, orgulhávamo-nos do nosso trabalho, e éramos empregados da melhor fábrica do país, para a qual o velho Starnes só contratava a nata dos trabalhadores. Um ano depois da implantação do plano não havia mais um homem honesto entre nós. Era ISSO o mal, o horror infernal que os pregadores usavam para assustar os fiéis, mas que a gente nunca imaginava ver em vida.
A questão não foi que o plano estimulasse uns poucos corruptos, e sim que ele corrompia pessoas honestas, e o efeito não podia ser outro -- e era isso que chamavam de idéia moral!
Queriam que trabalhássemos em nome de quê? Do amor pelos nossos irmãos? Que irmãos? Os parasitas, os sanguessugas que víamos ao redor? E se eles eram desonestos ou se eram incompetentes, se não tinham vontade ou não tinham capacidade de trabalhar -- que diferença fazia para nós? Se estávamos presos para o resto da vida àquele nível de incompetência, fosse verdadeiro ou fingido, por quanto tempo nos daríamos o trabalho de seguir em frente? Não tínhamos como saber qual era a verdadeira capacidade deles, não tínhamos como controlar suas necessidades -- só sabíamos que éramos burros de carga lutando às cegas num lugar que era meio hospital, meio curral -- um lugar onde só incentivavam a incompetência, as catástrofes, as doenças - burros de carga que só serviam às necessidades que os outros afirmavam ter.
Amor fraternal? Foi aí que aprendemos, pela primeira vez na vida, a odiar nossos irmãos. Começamos a odiá-los por cada refeição que faziam, cada pequeno prazer que gozavam, a camisa nova de um, o chapéu da esposa do outro, o passeio que um dava com a família, a reforma que o outro fazia na sua casa -- tudo aquilo era tirado de nós, era pago pelas nossas privações, nossa renúncias, nossa fome.
Um começou a espionar o outro, cada um tentando flagrar o outro em alguma mentira sobre as suas necessidades, para cortar sua 'ajuda de custo' na próxima assembléia. começaram a surgir delatores, que descobriam que alguém tinha comprado clandestinamente um peru para a família num domingo qualquer, provavelmente com o dinheiro que ganhara no jogo. Começamos a nos meter um na vida do outro. Provocávamos brigas de família, para conseguir que os parentes de alguns saíssem da lista de beneficiados. Toda vez que víamos algum homem começando namorar uma moça, tornávamos a vida dele um inferno. Fizemos muitos noivados se romperem. Não queríamos que ninguém se casasse: não queríamos mais dependentes para alimentar.
Antigamente, comemorávamos quando alguém tinha filho, todo mundo contribuía para ajudar a pagar a conta do hospital, quando os pais estavam sem dinheiro no momento. Agora, quando nascia uma criança, ficávamos sem falar com os pais. Para nós, os bebês eram [p.514] agora o que os gafanhotos são para os fazendeiros.
Antigamente, ajudávamos quem tinha um doente na família. Agora . . . Vou contar só um caso para a senhora. Era a mãe de um homem que estava trabalhando conosco há quinze anos. Era uma senhora simpática, alegre e sábia, conhecia todos nós pelo primeiro nome, todos nós gostávamos dela, antes. Um dia ela escorregou na escada do porão, caiu e quebrou a bacia. Nós sabíamos o que isso representava para uma pessoa daquela idade. O médico disse que ela teria que ser hospitalizada, para fazer um tratamento caro e demorado. A velha morreu na véspera do dia em que ia ser removida para o hospital. Ninguém nunca explicou a causa da morte dela. Não, não sei se foi assassinada. Ninguém disse isso. Ninguém comentava nada sobre o assunto. A única coisa que eu sei -- e disso nunca vou me esquecer -- é que eu, também, quando dei por mim estava rezando para que ela morresse. Que Deus nos perdoe! Era essa a fraternidade, a segurança, a abundância que nos haviam prometido com a adoção do plano.
[p.515] E quando a gente via isso, entendia qual era a motivação verdadeira de todo mundo que já pregou o princípio "de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme sua necessidade". Era esse o segredo da coisa. De início, eu não entendia como é que os homens instruídos, cultos e famosos do mundo poderiam fazer um erro como esse e pregar que esse tipo de abominação era direita -- quando bastavam cinco minutos de reflexão para eles verem o que aconteceria quando alguém tentasse pôr em prática essa idéia. Agora eu sei que eles não defendiam isso por erro. Ninguém faz um erro desse tamanho inocentemente. Quando os homens defendem alguma loucura malévola, quando não têm como fazer essa idéia funcionar na prática e não têm um motivo que possa explicar essa sua escolha, então é porque não querem revelar o verdadeiro motivo.
E nós também não éramos tão inocentes assim, quando votamos a favor daquele plano na primeira assembléia. Não fizemos isso só porque acreditávamos naquelas besteiradas que eles vomitavam. Nós tínhamos outro motivo, mas as besteiradas nos ajudavam a escondê-lo dos outros e de nós mesmos, nos davam uma oportunidade de dar a impressão de que era virtude algo que tínhamos vergonha de assumir. Cada um que aprovou o plano achava que, num sistema assim, conseguiria faturar em cima dos lucros dos homens mais capazes. Cada um, por mais rico e inteligente que fosse, achava que havia alguém mais rico e mais inteligente, e que esse plano lhe daria acesso a uma fatia da riqueza e da inteligência daqueles que eram melhores que ele. Mas enquanto ele pensava que ia ganhar aquilo que ele não merecia e que cabia aos que lhe eram superiores, ele esquecia os homens que lhe eram inferiores e que iam querer roubá-lo tanto quanto ele queria roubar seus superiores. O trabalhador que gostava de pensar que suas necessidades lhe davam o direito de ter uma limusine igual à do patrão se esquecia de que todo vagabundo e mendigo do mundo viria gritando que as necessidades deles lhes davam o direito de ter uma geladeira igual à do trabalhador. Era ESSE o nosso motivo para aprovar o plano, na verdade, mas não gostávamos de pensar nisso: e então, quanto mais a idéia nos desagradava, mais alto gritávamos que éramos a favor do bem comum.
Bem, tivemos o que merecíamos. Quando vimos o que havíamos pedido, era tarde demais. Tínhamos caído numa armadilha, e não tínhamos para onde ir. Os melhores de nós saíram da fábrica na primeira semana de vigência do plano. Perdemos nossos melhores engenheiros, superintendentes, chefes, os trabalhadores mais [p.516] qualificados. Quem tem amor-próprio não se deixa transformar em vaca leiteira para ser ordenhada pelos outros. Alguns sujeitos capacitados tentaram seguir em frente, mas não conseguiram agüentar muito tempo. A gente estava sempre perdendo os melhores, que viviam fugindo da fábrica como o diabo da cruz, até que só restavam os homens necessitados, sem mais nenhum dos capacitados. E os poucos que ainda valiam alguma coisa eram aqueles que já estavam lá havia muito tempo.
Antigamente, ninguém pedia demissão da Século Vinte, e a gente não conseguia se convencer de que a Século Vinte não existia mais. Depois de algum tempo, não podíamos mais pedir demissão porque nenhum outro empregador nos aceitaria, aliás com razão. Ninguém queria ter qualquer tipo de relacionamento conosco, nenhuma pessoa nem firma respeitável. Todas as pequenas lojas com que negociávamos começaram a sair de Starnesville depressa, e no final só restavam bares, cassinos e salafrários que nos vendiam porcarias a preços exorbitantes. As esmolas que recebíamos eram cada vez menores, mas o custo de vida subia. A lista dos necessitados da fábrica não parava de aumentar, mas a lista de fregueses diminuía. Havia cada vez menos renda para dividir entre cada vez mais pessoas.
Antigamente, dizia-se que a marca da Século Vinte era tão confiável quanto a marca de quilates num lingote de ouro. Não sei o que pensavam os herdeiros do velho Starnes, se é que eles pensavam alguma coisa, mas imagino que, como todos os planejadores sociais e selvagens, eles achavam que essa marca era um selo mágico que tinha um poder sobrenatural que os manteria ricos, tal como havia enriquecido seu pai. Mas quando nossos fregueses começaram a perceber que nunca conseguíamos entregar uma encomenda dentro do prazo, nem produzir um motor que não tivesse algum defeito, o selo mágico passou a ter o valor oposto: as pessoas não queriam um motor nem dado, se ele ostentasse o selo da Século Vinte.
E no final nossos fregueses eram todos do tipo que nunca pagam o que devem, e nunca têm mesmo intenção de pagar. Mas Gerald Starnes, dopado por sua própria publicidade, ficava todo empertigado, com ar de superioridade moral, exigindo que os empresários comprassem nossos motores, não porque eles fossem bons, mas porque tínhamos muita NECESSIDADE de encomendas.
Àquela altura qualquer imbecil já podia ver o que gerações de professores não haviam conseguido enxergar. De que adiantaria nossa necessidade, para uma usina, quando os geradores paravam porque nossos motores não funcionavam direito? De que ela adiantaria para um paciente sendo operado, quando faltasse luz no hospital? De que ela adiantaria para os passageiros de um avião, quando os motores pifassem em pleno vôo? E se eles comprassem nossos produtos não por causa do seu valor, mas por causa de nossa necessidade, isso seria correto, bom, moralmente certo para o dono daquela usina, o cirurgião daquele hospital, o fabricante daquele avião?
Pois era esta a lei moral que os professores e líderes e pensadores queriam estabelecer por todo o mundo. Se era este o resultado quando ela era aplicada numa única cidadezinha onde todo mundo se conhecia, a senhora pode imaginar o que aconteceria em escala mundial? A senhora pode imaginar o que aconteceria se a senhora tivesse de viver e trabalhar afetada por todos os desastres e toda a malandragem do mundo? Trabalhar -- e quando alguém cometesse um erro em algum lugar, a senhora é que teria de pagar. Trabalhar -- sem jamais ter perspectivas de melhorar de vida, sendo que suas refeições, suas roupas, sua casa e seu prazer estariam à mercê de qualquer trapaça, de qualquer problema de fome ou de peste em qualquer parte do mundo. Trabalhar -- sem nenhuma perspectiva de ganhar uma ração extra enquanto os cambojanos não tivessem sido alimentados e os patagônios não tivessem todos feito faculdade. Trabalhar -- tendo cada criatura no mundo um cheque em branco na mão, gente que a senhora nunca vai conhecer, cujas necessidades a senhora jamais vai conhecer, cuja capacidade e preguiça e desleixo e desonestidade são coisas que a senhora jamais vai saber nem tem direito de questionar -- enquanto as Ivys e os Geralds da vida resolvem quem vai consumir o esforço, os sonhos e os dias de sua vida. E é ESTA lei moral que se deve aceitar? ISTO é um ideal moral?
Olhe, nós tentamos -- e aprendemos. Nossa agonia durou quatro anos, da nossa primeira assembléia à última, e acabou da única [p.517] maneira que podia acabar: com a falência. Na nossa última assembléia foi Ivy Starnes que tentou manter as aparências. Fez um discurso curto, vil e insolente, dizendo que o plano havia fracassado porque o resto do país não o havia aceitado, que uma única comunidade não poderia ter sucesso no meio de um mundo egoísta e ganancioso, e que o plano era um ideal nobre, mas que a natureza humana não era suficientemente boa para que ele desse certo.
Um rapaz -- o mesmo que fora punido por dar uma boa idéia no primeiro ano -- levantou-se, enquanto todos os outros permaneciam calados, e andou até Ivy Starnes no tablado. Não disse nada. Cuspiu na cara dela. Foi assim que acabaram o nobre plano e a Século Vinte.
O trecho é longo -- é parte de Atlas Shrugged (1957; em Português: Quem é John Galt? [Editora Expressão e Cultura, 1987]), romance em que Ayn Rand conta, entre outras coisas, como uma fábrica de ponta e extremamente produtiva é destruída por idéias igualitárias. A transcrição é segundo o texto da tradução (pp. 510-517).
A maior parte do trecho é uma explicação, por parte de um ex-empregado, e dada a uma mulher que o entrevistava, de porque a fábrica faliu. Ironicamente, a fábrica se chamava Motores Século Vinte (Twentieth-Century Motors).
Trata-se de uma obra de ficção - ma non troppo. . . O livro foi recentemente votado pelos leitores, na Internet, a obra de ficção mais importante do século XX. Vide a página de referência. [Se preferir ler a passagem em Espanhol, clique aqui].
[p.510] Bem, foi uma coisa que aconteceu na fábrica onde eu trabalhei durante vinte anos. Foi quando o velho morreu e os herdeiros tomaram conta. Eles eram três, dois filhos e uma filha, e inventaram um novo plano para administrar a fábrica. Deixaram a gente votar, também, para aceitar ou não o plano, e todo mundo, quase todo mundo, votou a favor. A gente não sabia, pensava que fosse bom. Não, também não é bem isso, não. A gente pensavam que queriam que a gente achasse que era bom. O plano era o seguinte: cada um trabalhava conforme sua capacidade, e recebia conforme sua necessidade. . . .
Aprovamos o tal plano numa grande assembléia: nós éramos seis mil, todo mundo que trabalhava na fábrica. Os herdeiros do velho Starnes fizeram uns discursos compridos, e ninguém entendeu muito bem, mas ninguém fez nenhuma pergunta. Ninguém sabia como plano ia funcionar, mas cada um achava que o outro sabia. E quem tinha dúvida se sentia culpado e não dizia nada, porque do jeito como os herdeiros falavam, quem fosse contra era desumano e assassino de criancinha. Disseram que esse plano ia concretizar um nobre ideal. Como é que a gente podia saber? Não era isso que a gente ouvia a vida inteira dos pais, professores e pastores, em todos os jornais, filmes e discursos políticos? Não diziam sempre que isso é que era certo e justo? Bem, pode ser que a gente tenha alguma desculpa para o que fez naquela assembléia. O fato é que votamos a favor do plano, e o que aconteceu conosco depois foi merecido.
A senhora sabe, nós que trabalhamos lá na Século Vinte durante aqueles quatro anos, somos homens marcados. O que é que dizem que o inferno é? O mal, o mal puro, nu, absoluto, não é? Pois foi isso que a gente viu e ajudou a fazer, e acho que todos nós estamos malditos, e talvez nunca mais vamos ter perdão. . .
A senhora quer saber como funcionou o tal plano, e o que aconteceu com as pessoas? É como derramar água dentro de um tanque onde tem um cano no fundo puxando mais água do que entra, e cada balde que a senhora derrama lá dentro o cano alarga mais um bocado, e quanto mais a senhor trabalha, mais exigem da senhora, e no final a senhora está despejando balde quarenta horas por semana, depois quarenta e oito, depois cinqüenta e seis, para o jantar do vizinho, para a operação da mulher dele, para o sarampo do filho dele, para a cadeira de rodas da mãe dele, para a camisa do tio dele, para a escola do sobrinho dele, para o bebê do vizinho, para o bebê que ainda vai nascer, para todo mundo à sua volta, tudo é para eles, desde as fraldas até as dentaduras, e só o trabalho é seu, trabalhar da hora em que o sol nasce até escurecer, mês após mês, ano após ano, ganhando só suor, o prazer só deles, durante toda a sua vida, sem descansar, sem esperança, sem fim. . . .
De cada um, conforme sua capacidade, para cada um, conforme sua necessidade. . . .
Nós somos uma grande família, todo mundo, é o que nos diziam, estamos todos [p.511] no mesmo barco. Mas não é todo mundo que passa dez horas com um maçarico na mão, nem todo mundo que fica com dor de barriga ao mesmo tempo. Capacidade de quem? Necessidade de quem, quem tem prioridade? Quando é tudo uma coisa só, ninguém pode dizer quais são as suas necessidades, não é? Senão qualquer um pode dizer que necessita de um iate, e se só o que conta são os sentimentos dele, ele acaba até provando que tem razão. Por que não? Se eu só tenho o direito de ter carro depois que eu trabalhei tanto que fui parar no hospital, depois de garantir um carro para todo vagabundo e todo selvagem nu do mundo, por que ele não pode exigir de mim um iate também, se eu ainda tenho capacidade de trabalhar? Não pode? Então ele não pode exigir que eu tome meu café sem leite até ele conseguir pintar a sala de visitas dele? . . .
Pois é. . . . Mas aí decidiram que ninguém tinha direito de julgar suas próprias capacidades e necessidades. Tudo era resolvido na base da votação. Sim, senhora, tudo era votado em assembléia duas vezes por ano. Não tinha outro jeito, não é? E a senhora imagina o que acontecia nessas assembléias? Bastou a primeira para a gente descobrir que todo mundo tinha virado mendigo -- mendigos, esfarrapados, humilhados, todos nós, porque nenhum homem podia dizer que fazia jus a seu salário, não tinha direitos nem fazia jus a nada, não era dono de seu trabalho, o trabalho pertencia à 'família', e ele não lhe devia nada em troca, a única coisa que cada um tinha era a sua 'necessidade', e aí tinha que pedir em público que atendessem às suas necessidades, como qualquer parasita, enumerando todos os seus problemas, até os remendos na calça e os resfriados da esposa, na esperança de que a 'família' lhe jogasse uma esmola. O jeito era chorar miséria, porque era a sua miséria, e não o seu trabalho, que agora era a moeda corrente de lá.
Assim, a coisa virou um concurso de misérias disputado por seis mil pedintes, cada um chorando mais miséria que o outro. Não tinha outro jeito, não é? A senhora imagina o que aconteceu, que tipo de homem ficava calado, com vergonha, e que tipo de homem levava a melhor?
Mas tem mais. Mais uma coisa que a gente descobriu na mesma assembléia. A produção da fábrica tinha caído quarenta por cento naquele primeiro semestre, e aí concluiu-se que alguém não tinha usado toda a sua 'capacidade'. Quem? Como descobrir? A 'família' decidia isso no voto, também. Escolhiam no voto quais eram os melhores trabalhadores, e esses eram condenados a trabalhar mais, fazer hora extra todas as noites durante os próximos seis meses. E sem ganhar nada mais, porque a gente ganhava não por tempo nem por trabalho, e sim conforme a necessidade.
Será necessário explicar o que aconteceu depois disso? Explicar que tipo de criaturas nós fomos virando, nós que antes éramos seres humanos? Começamos a esconder toda a nossa capacidade, trabalhar mais devagar, ficar de olho para ter certeza de que a gente não trabalhava mais depressa nem melhor do que o colega ao nosso lado. Tinha que ser assim, pois a gente sabia que quem desse o melhor de si para a 'família' não ganhava elogio nem recompensa, mas castigo. Sabíamos que para cada imbecil que estragasse um motor e desse um prejuízo para a fábrica -- ou por desleixo, porque ele não tinha nenhum motivo para caprichar, ou por pura incompetência -- quem ia ter que pagar era a gente, trabalhando de noite e no domingo. Assim, a gente se esforçava o máximo para ser o pior possível.
Havia um garoto que começou todo empolgado com o nobre ideal, um garoto muito vivo, sem instrução, mas um crânio. No primeiro ano ele inventou um processo que economizava milhares de homens-hora. Deu de mão beijada a descoberta dele para a 'família', não pediu nada em troca, nem podia, mas não se incomodava com isso. Era tudo pelo ideal, dizia ele. Mas quando foi eleito um dos mais capazes e condenado a trabalhar de noite, ele fechou a boca e o cérebro. No ano seguinte, é claro, não teve nenhuma idéia brilhante.
A vida inteira nos ensinaram que os lucros e a competição tinham um efeito nefasto, que era terrível um competir com o outro para ver quem era melhor, não é? Nefasto? Pois deviam ver o que acontecia quando um competia com o outro para ver quem era o pior.
Não há maneira melhor de destruir um homem do que obrigá-lo a tentar NÃO fazer o melhor de que é capaz, a se esforçar por fazer o pior possível, dia após dia. Isso mata mais [p.512] depressa do que a bebida, a vadiagem, a vida de crime. Mas para nós a única saída era fingir incompetência. A única acusação que temíamos era a de que tínhamos capacidade. A capacidade era como uma hipoteca que não se termina de pagar.
E trabalhar para quê? A gente sabia que o mínimo para a sobrevivência era dado a todo mundo, quer trabalhasse quer não, a chamada 'ajuda de custo para moradia e alimentação', e mais do que isso não se tinha como ganhar, por mais que se esforçasse. Não se podia ter certeza de que seria possível comprar uma muda de roupas no ano seguinte -- a senhora podia ou não ganhar uma 'ajuda de custo para vestimentas', dependendo de quantas pessoas quebrassem a perna, precisassem ser operadas, ou tivessem mais filhos. E se não havia dinheiro para todo mundo comprar roupas, então a senhora também ficava sem roupa nova.
Havia um homem que tinha passado a vida toda trabalhando até não poder mais, porque queria que seu filho fizesse faculdade. Pois bem, o garoto terminou o secundário no segundo ano de vigência do plano, mas a 'família' não quis dar ao homem uma 'ajuda de custo' para pagar a faculdade do filho. Disseram que o filho só ia poder entrar para a faculdade quando houvesse dinheiro para os filhos de todos entrarem para a faculdade -- e, para isso, era preciso primeiro pagar a escola secundária dos filhos de todos, e não havia dinheiro nem para isso. O homem morreu no ano seguinte, numa briga de faca num bar, uma briga sem motivo; brigas desse tipo estavam se tornando cada vez mais comum entre nós.
Havia um sujeito mais velho, um viúvo sem família, que tinha um hobby: colecionar discos. Acho que era a única coisa de que ele gostava na vida. Antigamente, ele costumava ficar sem almoçar para ter dinheiro para comprar mais um disco clássico. Pois não lhe deram nenhuma 'ajuda de custo' para comprar discos -- disseram que aquilo era 'luxo pessoal'. Mas, naquela mesma assembléia, votaram a favor de dar para uma tal de Millie Bush, filha de alguém, uma garotinha de oito anos, feia e má, um aparelho de ouro para corrigir seus dentes -- isto era uma 'necessidade médica', porque o psicólogo da empresa disse que a coitadinha ia ficar com complexo de inferioridade se seus dentes não fossem endireitados. O velho que gostava de música passou a beber. Chegou a um ponto em que nunca mais era visto sóbrio. Mas parece que uma coisa ele nunca esqueceu. Uma noite, ele vinha cambaleando pela rua quando viu a tal da Millie Bush: deu-lhe um soco que lhe quebrou todos os dentes. Todos.
A bebida, naturalmente, era a solução para a qual todos nós apelávamos, uns mais, outros menos. Não me pergunte onde é que achávamos dinheiro para isso. Quando todos os prazeres decentes são proibidos, sempre se dá um jeito de gozar os prazeres que não prestam. Ninguém arromba mercearias à noite nem rouba o colega para comprar discos clássicos nem caniços de pesca, mas se é para tomar um porre e esquecer, faz-se de tudo. Caniços de pesca? Armas para caçar? Máquinas fotográficas? Hobbies? Não havia 'ajuda de custo de entretenimento' para ninguém. O 'entretenimento' foi a primeira coisa que eles cortaram. Pois a gente não deve ter vergonha de reclamar quando alguém pede para abrirmos mão de uma coisa que nos dá prazer? Até mesmo a nossa 'ajuda de custo de fumo' foi racionada a ponto de só recebermos dois maços de cigarro por mês -- e isso, diziam eles, porque o dinheiro estava indo para o fundo do leite dos bebês.
Os bebês eram o único produto que havia em quantidades cada vez maiores -- porque as pessoas não tinham outra coisa para fazer, imagino, e porque não tinham que se preocupar com os gastos da criação dos bebês, já que eram uma responsabilidade da 'família'. Aliás, a melhor maneira de conseguir um aumento e poder ficar mais folgado por uns tempos era ganhar uma 'ajuda de custo para bebês' -- ou isso ou arranjar uma doença séria.
Não demorou muito para a gente entender como a coisa funcionava. Todo aquele que resolvia fazer tudo certinho tinha que se abster de tudo. Tinha que perder toda a vontade de gozar qualquer prazer, não gostar de fumar um cigarro nem mascar um chiclete, porque alguém podia ter uma necessidade maior do dinheiro gasto naquele cigarro ou chiclete. Sentia vergonha cada vez que engolia uma garfada de comida, pensando em quem tinha tido que trabalhar de noite para [p.513] pagar aquela garfada, sabendo que a comida que comia não era sua por direito, sentindo a vontade infame de ser trapaceado ao invés de trapacear, ser um pato e não um sanguessuga. Não podia ajudar os pais, para não colocar um fardo mais pesado sobre os ombros da 'família'. Além disso, se ele tivesse um mínimo de senso de responsabilidade, não podia nem casar nem ter filhos, pois não podia planejar nada, prometer nada, contar com nada.
Mas os indolentes e irresponsáveis se deram bem. Arranjaram filhos, seduziram moças, trouxeram todos os parentes imprestáveis que tinham, todas as irmãs solteiras grávidas, para receber uma 'ajuda de custo de doença', inventaram todas as doenças possíveis, sem que os médicos pudessem provar a fraude, estragaram suas roupas, seus móveis, suas casas -- pois não era a 'família' que estava pagando? Descobriram muito mais 'necessidades' do que os outros -- desenvolveram um talento especial para isso, a única capacidade que demonstraram.
Deus me livre! A senhora entende? Compreendemos que nos tinham dado uma lei, uma lei MORAL, segundo eles, que punia aqueles que a observavam -- pelo fato de a observarem. Quanto mais a senhora tentava seguir essa lei, mais a senhora sofria; quanto mais a senhora a violava, mais lucrava. A sua honestidade era como um instrumento nas mãos da desonestidade do próximo. Os honestos pagavam, e os desonestos lucravam. Os honestos perdiam, os desonestos, ganhavam. Com esse tipo de padrão do que é certo e errado, por quanto tempo os homens poderiam permanecer honestos? No começo éramos pessoas bem honestas, e só havia uns poucos aproveitadores. Éramos competentes, orgulhávamo-nos do nosso trabalho, e éramos empregados da melhor fábrica do país, para a qual o velho Starnes só contratava a nata dos trabalhadores. Um ano depois da implantação do plano não havia mais um homem honesto entre nós. Era ISSO o mal, o horror infernal que os pregadores usavam para assustar os fiéis, mas que a gente nunca imaginava ver em vida.
A questão não foi que o plano estimulasse uns poucos corruptos, e sim que ele corrompia pessoas honestas, e o efeito não podia ser outro -- e era isso que chamavam de idéia moral!
Queriam que trabalhássemos em nome de quê? Do amor pelos nossos irmãos? Que irmãos? Os parasitas, os sanguessugas que víamos ao redor? E se eles eram desonestos ou se eram incompetentes, se não tinham vontade ou não tinham capacidade de trabalhar -- que diferença fazia para nós? Se estávamos presos para o resto da vida àquele nível de incompetência, fosse verdadeiro ou fingido, por quanto tempo nos daríamos o trabalho de seguir em frente? Não tínhamos como saber qual era a verdadeira capacidade deles, não tínhamos como controlar suas necessidades -- só sabíamos que éramos burros de carga lutando às cegas num lugar que era meio hospital, meio curral -- um lugar onde só incentivavam a incompetência, as catástrofes, as doenças - burros de carga que só serviam às necessidades que os outros afirmavam ter.
Amor fraternal? Foi aí que aprendemos, pela primeira vez na vida, a odiar nossos irmãos. Começamos a odiá-los por cada refeição que faziam, cada pequeno prazer que gozavam, a camisa nova de um, o chapéu da esposa do outro, o passeio que um dava com a família, a reforma que o outro fazia na sua casa -- tudo aquilo era tirado de nós, era pago pelas nossas privações, nossa renúncias, nossa fome.
Um começou a espionar o outro, cada um tentando flagrar o outro em alguma mentira sobre as suas necessidades, para cortar sua 'ajuda de custo' na próxima assembléia. começaram a surgir delatores, que descobriam que alguém tinha comprado clandestinamente um peru para a família num domingo qualquer, provavelmente com o dinheiro que ganhara no jogo. Começamos a nos meter um na vida do outro. Provocávamos brigas de família, para conseguir que os parentes de alguns saíssem da lista de beneficiados. Toda vez que víamos algum homem começando namorar uma moça, tornávamos a vida dele um inferno. Fizemos muitos noivados se romperem. Não queríamos que ninguém se casasse: não queríamos mais dependentes para alimentar.
Antigamente, comemorávamos quando alguém tinha filho, todo mundo contribuía para ajudar a pagar a conta do hospital, quando os pais estavam sem dinheiro no momento. Agora, quando nascia uma criança, ficávamos sem falar com os pais. Para nós, os bebês eram [p.514] agora o que os gafanhotos são para os fazendeiros.
Antigamente, ajudávamos quem tinha um doente na família. Agora . . . Vou contar só um caso para a senhora. Era a mãe de um homem que estava trabalhando conosco há quinze anos. Era uma senhora simpática, alegre e sábia, conhecia todos nós pelo primeiro nome, todos nós gostávamos dela, antes. Um dia ela escorregou na escada do porão, caiu e quebrou a bacia. Nós sabíamos o que isso representava para uma pessoa daquela idade. O médico disse que ela teria que ser hospitalizada, para fazer um tratamento caro e demorado. A velha morreu na véspera do dia em que ia ser removida para o hospital. Ninguém nunca explicou a causa da morte dela. Não, não sei se foi assassinada. Ninguém disse isso. Ninguém comentava nada sobre o assunto. A única coisa que eu sei -- e disso nunca vou me esquecer -- é que eu, também, quando dei por mim estava rezando para que ela morresse. Que Deus nos perdoe! Era essa a fraternidade, a segurança, a abundância que nos haviam prometido com a adoção do plano.
[p.515] E quando a gente via isso, entendia qual era a motivação verdadeira de todo mundo que já pregou o princípio "de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme sua necessidade". Era esse o segredo da coisa. De início, eu não entendia como é que os homens instruídos, cultos e famosos do mundo poderiam fazer um erro como esse e pregar que esse tipo de abominação era direita -- quando bastavam cinco minutos de reflexão para eles verem o que aconteceria quando alguém tentasse pôr em prática essa idéia. Agora eu sei que eles não defendiam isso por erro. Ninguém faz um erro desse tamanho inocentemente. Quando os homens defendem alguma loucura malévola, quando não têm como fazer essa idéia funcionar na prática e não têm um motivo que possa explicar essa sua escolha, então é porque não querem revelar o verdadeiro motivo.
E nós também não éramos tão inocentes assim, quando votamos a favor daquele plano na primeira assembléia. Não fizemos isso só porque acreditávamos naquelas besteiradas que eles vomitavam. Nós tínhamos outro motivo, mas as besteiradas nos ajudavam a escondê-lo dos outros e de nós mesmos, nos davam uma oportunidade de dar a impressão de que era virtude algo que tínhamos vergonha de assumir. Cada um que aprovou o plano achava que, num sistema assim, conseguiria faturar em cima dos lucros dos homens mais capazes. Cada um, por mais rico e inteligente que fosse, achava que havia alguém mais rico e mais inteligente, e que esse plano lhe daria acesso a uma fatia da riqueza e da inteligência daqueles que eram melhores que ele. Mas enquanto ele pensava que ia ganhar aquilo que ele não merecia e que cabia aos que lhe eram superiores, ele esquecia os homens que lhe eram inferiores e que iam querer roubá-lo tanto quanto ele queria roubar seus superiores. O trabalhador que gostava de pensar que suas necessidades lhe davam o direito de ter uma limusine igual à do patrão se esquecia de que todo vagabundo e mendigo do mundo viria gritando que as necessidades deles lhes davam o direito de ter uma geladeira igual à do trabalhador. Era ESSE o nosso motivo para aprovar o plano, na verdade, mas não gostávamos de pensar nisso: e então, quanto mais a idéia nos desagradava, mais alto gritávamos que éramos a favor do bem comum.
Bem, tivemos o que merecíamos. Quando vimos o que havíamos pedido, era tarde demais. Tínhamos caído numa armadilha, e não tínhamos para onde ir. Os melhores de nós saíram da fábrica na primeira semana de vigência do plano. Perdemos nossos melhores engenheiros, superintendentes, chefes, os trabalhadores mais [p.516] qualificados. Quem tem amor-próprio não se deixa transformar em vaca leiteira para ser ordenhada pelos outros. Alguns sujeitos capacitados tentaram seguir em frente, mas não conseguiram agüentar muito tempo. A gente estava sempre perdendo os melhores, que viviam fugindo da fábrica como o diabo da cruz, até que só restavam os homens necessitados, sem mais nenhum dos capacitados. E os poucos que ainda valiam alguma coisa eram aqueles que já estavam lá havia muito tempo.
Antigamente, ninguém pedia demissão da Século Vinte, e a gente não conseguia se convencer de que a Século Vinte não existia mais. Depois de algum tempo, não podíamos mais pedir demissão porque nenhum outro empregador nos aceitaria, aliás com razão. Ninguém queria ter qualquer tipo de relacionamento conosco, nenhuma pessoa nem firma respeitável. Todas as pequenas lojas com que negociávamos começaram a sair de Starnesville depressa, e no final só restavam bares, cassinos e salafrários que nos vendiam porcarias a preços exorbitantes. As esmolas que recebíamos eram cada vez menores, mas o custo de vida subia. A lista dos necessitados da fábrica não parava de aumentar, mas a lista de fregueses diminuía. Havia cada vez menos renda para dividir entre cada vez mais pessoas.
Antigamente, dizia-se que a marca da Século Vinte era tão confiável quanto a marca de quilates num lingote de ouro. Não sei o que pensavam os herdeiros do velho Starnes, se é que eles pensavam alguma coisa, mas imagino que, como todos os planejadores sociais e selvagens, eles achavam que essa marca era um selo mágico que tinha um poder sobrenatural que os manteria ricos, tal como havia enriquecido seu pai. Mas quando nossos fregueses começaram a perceber que nunca conseguíamos entregar uma encomenda dentro do prazo, nem produzir um motor que não tivesse algum defeito, o selo mágico passou a ter o valor oposto: as pessoas não queriam um motor nem dado, se ele ostentasse o selo da Século Vinte.
E no final nossos fregueses eram todos do tipo que nunca pagam o que devem, e nunca têm mesmo intenção de pagar. Mas Gerald Starnes, dopado por sua própria publicidade, ficava todo empertigado, com ar de superioridade moral, exigindo que os empresários comprassem nossos motores, não porque eles fossem bons, mas porque tínhamos muita NECESSIDADE de encomendas.
Àquela altura qualquer imbecil já podia ver o que gerações de professores não haviam conseguido enxergar. De que adiantaria nossa necessidade, para uma usina, quando os geradores paravam porque nossos motores não funcionavam direito? De que ela adiantaria para um paciente sendo operado, quando faltasse luz no hospital? De que ela adiantaria para os passageiros de um avião, quando os motores pifassem em pleno vôo? E se eles comprassem nossos produtos não por causa do seu valor, mas por causa de nossa necessidade, isso seria correto, bom, moralmente certo para o dono daquela usina, o cirurgião daquele hospital, o fabricante daquele avião?
Pois era esta a lei moral que os professores e líderes e pensadores queriam estabelecer por todo o mundo. Se era este o resultado quando ela era aplicada numa única cidadezinha onde todo mundo se conhecia, a senhora pode imaginar o que aconteceria em escala mundial? A senhora pode imaginar o que aconteceria se a senhora tivesse de viver e trabalhar afetada por todos os desastres e toda a malandragem do mundo? Trabalhar -- e quando alguém cometesse um erro em algum lugar, a senhora é que teria de pagar. Trabalhar -- sem jamais ter perspectivas de melhorar de vida, sendo que suas refeições, suas roupas, sua casa e seu prazer estariam à mercê de qualquer trapaça, de qualquer problema de fome ou de peste em qualquer parte do mundo. Trabalhar -- sem nenhuma perspectiva de ganhar uma ração extra enquanto os cambojanos não tivessem sido alimentados e os patagônios não tivessem todos feito faculdade. Trabalhar -- tendo cada criatura no mundo um cheque em branco na mão, gente que a senhora nunca vai conhecer, cujas necessidades a senhora jamais vai conhecer, cuja capacidade e preguiça e desleixo e desonestidade são coisas que a senhora jamais vai saber nem tem direito de questionar -- enquanto as Ivys e os Geralds da vida resolvem quem vai consumir o esforço, os sonhos e os dias de sua vida. E é ESTA lei moral que se deve aceitar? ISTO é um ideal moral?
Olhe, nós tentamos -- e aprendemos. Nossa agonia durou quatro anos, da nossa primeira assembléia à última, e acabou da única [p.517] maneira que podia acabar: com a falência. Na nossa última assembléia foi Ivy Starnes que tentou manter as aparências. Fez um discurso curto, vil e insolente, dizendo que o plano havia fracassado porque o resto do país não o havia aceitado, que uma única comunidade não poderia ter sucesso no meio de um mundo egoísta e ganancioso, e que o plano era um ideal nobre, mas que a natureza humana não era suficientemente boa para que ele desse certo.
Um rapaz -- o mesmo que fora punido por dar uma boa idéia no primeiro ano -- levantou-se, enquanto todos os outros permaneciam calados, e andou até Ivy Starnes no tablado. Não disse nada. Cuspiu na cara dela. Foi assim que acabaram o nobre plano e a Século Vinte.
domingo, março 04, 2007
TAMBÉM TEMOS CULPA
MATÉRIA SOBRE OS CONFLITOS NO ORIENTE MÉDIO
Entrevista: Bassem Eid
José Eduardo Barella
O palestino Bassem Eid, de 47 anos, tem um trabalho inusitado para quem vive nos territórios ocupados por Israel: ele monitora e denuncia violações de direitos humanos cometidas pelos próprios palestinos e que têm como vítimas os habitantes da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. Eid trocou a carreira de jornalista pela de ativista de direitos humanos em 1988, quando começou a trabalhar para uma ONG israelense que investigava abusos das tropas de Israel nos territórios ocupados. Em 1996, indignado com o comportamento ditatorial da recém-criada Autoridade Palestina, fundou o Grupo Palestino de Monitoramento de Direitos Humanos, com a ajuda de doadores europeus. Eid já foi preso pela polícia palestina e interrogado durante 24 horas. Também foi acusado de traição e ameaçado por grupos terroristas. Isso não o impede de continuar denunciando a corrupção no governo palestino e os abusos da polícia e dos grupos armados nos territórios, como o Hamas. Divorciado e pai de oito filhos, Eid falou a VEJA de Jericó, onde vive.
Veja – Em geral, os palestinos reclamam dos israelenses. O senhor ficou conhecido por denunciar as violações de direitos humanos cometidas por seus patrícios. Por quê?
Bassem Eid – Estamos vivendo um período de terror que nada deve aos piores momentos da ocupação militar israelense. Nos últimos cinco anos, mais de 350 palestinos foram assassinados por razões políticas pelos próprios palestinos. Esse número equivale a 10% dos civis mortos pelas tropas israelenses nesse período. Essa guerra interna nos territórios ocupados já tem até nome – é a "intrafada", em oposição à intifada, a revolta contra a ocupação. A matança promovida por grupos armados contra integrantes de facções rivais, debaixo do nariz das forças de segurança palestinas, responde pela maioria das mortes. A violência sob a chancela oficial também é alarmante. Há casos de pessoas que ficaram três anos detidas sem acusação formal. Tivemos palestinos mortos na prisão e outros ameaçados, torturados e perseguidos como se fossem bandidos. São pessoas acusadas de colaborar com os israelenses, mas o único crime da maioria dessas vítimas foi divergir da Autoridade Palestina.
Veja – Como a sociedade palestina reage a essa situação?
Eid – É possível dividir a sociedade palestina em três categorias. A primeira, que abriga a maioria, é formada pelos cidadãos que têm medo da Autoridade Palestina e dos grupos armados. A segunda inclui os que defendem apenas seus interesses pessoais – e perderam o que chamo de interesse público. A última é a dos alienados, que não se importam se vivemos numa ditadura ou numa democracia. Nenhum desses grupos se propõe a denunciar os abusos cometidos pela Autoridade Palestina e pelos bandos armados. Também não vejo uma articulação pela democracia no meio acadêmico ou na imprensa palestina.
Veja – Qual a explicação para a passividade diante de tanta violência?
Eid – O medo da repressão ajuda a explicar esse silêncio. Mas há outros motivos. Os palestinos, é bom lembrar, fazem parte do mundo árabe. Jamais estudamos na escola conceitos como democracia, liberdade, pluralismo e direitos humanos. Nossa única referência são os regimes autoritários da região. Ou seja, em nossa natureza, somos um povo violento. No que se refere à humilhação imposta às mulheres e ao desrespeito aos direitos individuais, não há diferença entre o que ocorre em Damasco e na Faixa de Gaza.
Veja – A vida dos palestinos na Faixa de Gaza melhorou após a retirada das tropas israelenses?
Eid – Se alguma coisa mudou, foi para pior. Por incrível que pareça, os palestinos tinham mais segurança. As tropas israelenses impediam que os grupos armados agissem livremente. Depois da retirada, os terroristas do Hamas impuseram a lei do terror aos moradores de Gaza. Além disso, passaram a lançar mísseis contra as tropas israelenses do outro lado da fronteira. Estas respondem com tiros e acabam atingindo civis. É a estratégia do Hamas: mostrar aos palestinos que os israelenses não saíram de Gaza.
Veja – É possível construir um governo palestino democrático sob ocupação israelense?
Eid – Esse dilema existe desde que os acordos de Oslo criaram, em 1994, o governo semi-autônomo da Autoridade Palestina nos territórios ocupados. Foram necessários mais de dez anos para que os palestinos percebessem o mal que esse governo nos causou. Yasser Arafat, o presidente da Autoridade Palestina até morrer, em 2004, foi um ditador. Ele usou a ocupação israelense todo esse tempo como desculpa para seus erros. Aliás, a mania de responsabilizar os outros pelos próprios fracassos é uma característica da sociedade palestina. O que os israelenses têm a ver com as violações de direitos humanos cometidas por palestinos contra palestinos em nossas prisões? Nada, mas insistimos em culpá-los. Não temos autocrítica e estamos pagando por isso.
Veja – A intifada foi um erro?
Eid – Foi um desastre, a pior coisa que poderia ter nos acontecido. Não conseguimos nada e ainda perdemos o pouco que havíamos conquistado no passado. Tudo por culpa de Arafat, que governava de acordo com seus interesses pessoais, e não com os do povo palestino. Ele comandava pessoalmente os grupos armados que alimentavam a intifada. É interessante notar que, até sua morte, mais de 80% dos palestinos apoiavam a intifada. Hoje, esse índice não passa de 40%. As pessoas perceberam que não avançamos no que era mais importante, a criação do Estado palestino.
Veja – Quais foram os outros erros de Arafat?
Eid – O pior de todos foi a roubalheira que ele patrocinou. Arafat tomou posse como presidente da Autoridade Palestina em 1996, mas já era corrupto desde que assumiu a liderança da Organização para a Libertação da Palestina, trinta anos antes. O mundo fechou os olhos porque Arafat sempre foi peça-chave para um acordo de paz com Israel. Desde 1996, estima-se que mais de 60% da ajuda financeira internacional aos palestinos tenha sido desviada. Quem percorre hoje os territórios administrados pela Autoridade Palestina percebe que em dez anos a miséria continua igual.
Veja – Mahmoud Abbas sucedeu a Arafat na presidência da Autoridade Palestina. O que mudou?
Eid – A rigor, nada. Os israelenses acreditam que Abu Mazen (como Abbas é conhecido entre os palestinos) é mais democrático, o que facilitaria um diálogo direto. O problema é que ele tem o DNA ideológico de Arafat. Ambos fazem parte da mesma geração de líderes palestinos que surgiu e cresceu sob regimes autoritários do Egito, Síria, Argélia, Iraque e Jordânia. Esses políticos nunca praticaram nenhum tipo de democracia, e agora não seria diferente com Mazen.
Veja – Abbas tem apoio entre os palestinos para assinar a paz com Israel?
Eid – Abu Mazen não tem força política para nada. O sucesso ou o fracasso de seu governo está nas mãos do primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon. Restam-lhe duas opções: ou aceita as exigências israelenses para assinar a paz ou os palestinos continuarão a brigar entre si. Para fechar um acordo com Sharon, ele terá de desarmar o Hamas e a Jihad Islâmica, entre outros grupos terroristas. Se tomar essa iniciativa, ele correrá o risco de cair. Como nenhum palestino quer perder o emprego, muito menos Abu Mazen, as coisas devem continuar como estão.
Veja – Uma tentativa de desarmar os terroristas palestinos poderia resultar em guerra civil?
Eid – Caso Abu Mazen decida desarmar os grupos terroristas na marra, é provável que tenhamos um conflito. Milhares de palestinos seriam mortos por outros palestinos. Mas, sinceramente, não seria algo terrível ou duradouro. Historicamente, em determinadas situações, a guerra civil é até benéfica. No caso palestino, obrigaria o governo a combater e desarmar grupos extremistas como o Hamas e a Jihad Islâmica. Isso ajudaria a abrir caminho para uma solução do conflito com os israelenses.
Veja – Por que israelenses e palestinos não conseguem fazer a paz?
Eid – A liderança israelense e a palestina passaram a depender do conflito para sobreviver politicamente. Foram assinados vários acordos de paz, e sempre um dos lados acaba tomando a iniciativa de violá-los. Não acredito que a liderança palestina esteja interessada em fazer a paz com Israel. Tampouco vejo empenho do governo israelense em selar um acordo definitivo. É duro, mas essa é a realidade no Oriente Médio.
Veja – O senhor concorda que, após meio século de violência, é difícil acreditar que não haja interessados numa solução para o conflito?
Eid – A população israelense sabe que um acordo de paz traria segurança a Israel e, por isso, apóia uma solução negociada. Por causa do sofrimento acumulado por tantos anos de ocupação, o palestino comum não tem tão claro esse desejo de paz. Ele olha para o país vizinho e vê que os israelenses têm liberdade de movimento e levam vida normal. Enfim, tudo o que não pode fazer ou nem sequer sonhar. Essa diferença colossal toca fundo nos palestinos. Nós não queremos ser vistos como um povo perdedor. Tivemos várias oportunidades de fechar um acordo definitivo, inclusive os que contemplavam a criação de um Estado independente. Mas o rancor pelo sofrimento vivido e o orgulho sempre falaram mais alto, e acabamos desperdiçando todas essas chances.
Veja – Qual é a possibilidade de extremistas islâmicos tomarem o poder pelo voto?
Eid – Essa possibilidade existe, mas considero pequena. Temos uma tradição laica, até mesmo entre a liderança da Autoridade Palestina, e arrisco dizer que formamos a sociedade mais aberta do Oriente Médio depois de Israel. Os palestinos têm elevado grau de instrução. Cerca de 80% da população usa a internet. Comparados com o restante do mundo árabe, somos os mais propensos a assimilar a cultura ocidental. É claro que o fator religioso pesa. Os palestinos consideram-se mais religiosos que os israelenses. Mas sabemos o que significa fundamentalistas no poder. A maioria dos palestinos não deseja isso.
Veja – O que falta aos palestinos para fechar um acordo de paz definitivo com os israelenses?
Eid – Os palestinos têm de ser realistas na mesa de negociação. Está na hora de aprender que a vida vale mais que um pedaço de terra. Milhares de palestinos morreram nos últimos anos, e o que conseguimos em troca? Precisamos, primeiro, aceitar que os Estados Unidos são a única superpotência mundial. Não haverá acordo sem a bênção da Casa Branca. Além disso, os palestinos precisam convencer os países árabes a manter relações com Israel. Os outros entraves que costumam impedir um acordo serão mais simples de resolver.
Veja – O senhor acredita que seria fácil chegar a um acordo sobre Jerusalém, que os dois lados consideram a capital de seu Estado?
Eid – Quantos palestinos vivem em Jerusalém? Não passam de 200 000. Enquanto isso, mais de 3 milhões de palestinos vivem na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Se Israel libertar os mais de 7 000 palestinos que mantém em suas prisões, tenho certeza de que um acordo sobre o status da cidade será rápido. Mas Israel precisa tomar a iniciativa, e logo. Hoje, a maioria dos palestinos prefere negociar com Sharon a negociar com qualquer outro líder israelense.
Veja – Os palestinos aceitam abrir mão do direito de retorno dos refugiados em troca de um Estado independente?
Eid – O direito de retorno dos refugiados ao território que hoje constitui Israel é uma bandeira usada mais pela Autoridade Palestina do que pelos próprios refugiados. A insistência de incluir essa exigência como questão inegociável foi um artifício utilizado por Arafat em 2000 para irritar os israelenses e mantê-los sob pressão. O que realmente interessa a esses refugiados e descendentes é obter emprego, moradia digna, hospitais e escolas para os filhos. Não se fala mais em direito de retorno. A maioria dos palestinos esqueceu o assunto.
Veja – O senhor fala como se os palestinos estivessem dispostos a renunciar ao sonho de ter um Estado independente...
Eid – Pergunte a qualquer palestino que passa três horas por dia nos postos de controle israelenses qual é seu maior sonho, e ele vai responder: liberdade de movimento para poder trabalhar em Israel. Isso mostra que o que nós, palestinos, precisamos é de uma economia robusta, para termos acesso a uma vida mais digna. O mundo acredita que o Oriente Médio será um paraíso se houver paz entre israelenses e palestinos. Não é bem assim. O ex-premiê israelense Shimon Peres acertou quando disse que o desenvolvimento econômico da região, e não um acordo de paz, ajudaria a criar um novo Oriente Médio. Estamos diante de uma oportunidade de ouro para captar recursos no exterior, investir em infra-estrutura e criar instituições fortes. O momento exige estratégia de ação – coisa que a Autoridade Palestina não tem, pois há muito deixou de lado a causa pública para privilegiar os interesses de poucos. Por isso, considero mais importante priorizar o desenvolvimento econômico dos palestinos do que a criação do Estado independente.
Veja – O senhor quer dizer que a criação de um Estado palestino não é uma prioridade?
Eid – Não estamos prontos para assumir nosso próprio Estado, e por uma razão simples: nunca fomos governados por palestinos. Nossa dura realidade é que não aprendemos nada em 38 anos de ocupação israelense. Receio que vamos precisar de mais vinte anos para aprender a cuidar de nosso próprio destino. Antes disso, não acredito na criação do Estado palestino.
REVISTA VEJA - Edição 1933 . 30 de novembro de 2005
Entrevista: Bassem Eid
José Eduardo Barella
O palestino Bassem Eid, de 47 anos, tem um trabalho inusitado para quem vive nos territórios ocupados por Israel: ele monitora e denuncia violações de direitos humanos cometidas pelos próprios palestinos e que têm como vítimas os habitantes da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. Eid trocou a carreira de jornalista pela de ativista de direitos humanos em 1988, quando começou a trabalhar para uma ONG israelense que investigava abusos das tropas de Israel nos territórios ocupados. Em 1996, indignado com o comportamento ditatorial da recém-criada Autoridade Palestina, fundou o Grupo Palestino de Monitoramento de Direitos Humanos, com a ajuda de doadores europeus. Eid já foi preso pela polícia palestina e interrogado durante 24 horas. Também foi acusado de traição e ameaçado por grupos terroristas. Isso não o impede de continuar denunciando a corrupção no governo palestino e os abusos da polícia e dos grupos armados nos territórios, como o Hamas. Divorciado e pai de oito filhos, Eid falou a VEJA de Jericó, onde vive.
Veja – Em geral, os palestinos reclamam dos israelenses. O senhor ficou conhecido por denunciar as violações de direitos humanos cometidas por seus patrícios. Por quê?
Bassem Eid – Estamos vivendo um período de terror que nada deve aos piores momentos da ocupação militar israelense. Nos últimos cinco anos, mais de 350 palestinos foram assassinados por razões políticas pelos próprios palestinos. Esse número equivale a 10% dos civis mortos pelas tropas israelenses nesse período. Essa guerra interna nos territórios ocupados já tem até nome – é a "intrafada", em oposição à intifada, a revolta contra a ocupação. A matança promovida por grupos armados contra integrantes de facções rivais, debaixo do nariz das forças de segurança palestinas, responde pela maioria das mortes. A violência sob a chancela oficial também é alarmante. Há casos de pessoas que ficaram três anos detidas sem acusação formal. Tivemos palestinos mortos na prisão e outros ameaçados, torturados e perseguidos como se fossem bandidos. São pessoas acusadas de colaborar com os israelenses, mas o único crime da maioria dessas vítimas foi divergir da Autoridade Palestina.
Veja – Como a sociedade palestina reage a essa situação?
Eid – É possível dividir a sociedade palestina em três categorias. A primeira, que abriga a maioria, é formada pelos cidadãos que têm medo da Autoridade Palestina e dos grupos armados. A segunda inclui os que defendem apenas seus interesses pessoais – e perderam o que chamo de interesse público. A última é a dos alienados, que não se importam se vivemos numa ditadura ou numa democracia. Nenhum desses grupos se propõe a denunciar os abusos cometidos pela Autoridade Palestina e pelos bandos armados. Também não vejo uma articulação pela democracia no meio acadêmico ou na imprensa palestina.
Veja – Qual a explicação para a passividade diante de tanta violência?
Eid – O medo da repressão ajuda a explicar esse silêncio. Mas há outros motivos. Os palestinos, é bom lembrar, fazem parte do mundo árabe. Jamais estudamos na escola conceitos como democracia, liberdade, pluralismo e direitos humanos. Nossa única referência são os regimes autoritários da região. Ou seja, em nossa natureza, somos um povo violento. No que se refere à humilhação imposta às mulheres e ao desrespeito aos direitos individuais, não há diferença entre o que ocorre em Damasco e na Faixa de Gaza.
Veja – A vida dos palestinos na Faixa de Gaza melhorou após a retirada das tropas israelenses?
Eid – Se alguma coisa mudou, foi para pior. Por incrível que pareça, os palestinos tinham mais segurança. As tropas israelenses impediam que os grupos armados agissem livremente. Depois da retirada, os terroristas do Hamas impuseram a lei do terror aos moradores de Gaza. Além disso, passaram a lançar mísseis contra as tropas israelenses do outro lado da fronteira. Estas respondem com tiros e acabam atingindo civis. É a estratégia do Hamas: mostrar aos palestinos que os israelenses não saíram de Gaza.
Veja – É possível construir um governo palestino democrático sob ocupação israelense?
Eid – Esse dilema existe desde que os acordos de Oslo criaram, em 1994, o governo semi-autônomo da Autoridade Palestina nos territórios ocupados. Foram necessários mais de dez anos para que os palestinos percebessem o mal que esse governo nos causou. Yasser Arafat, o presidente da Autoridade Palestina até morrer, em 2004, foi um ditador. Ele usou a ocupação israelense todo esse tempo como desculpa para seus erros. Aliás, a mania de responsabilizar os outros pelos próprios fracassos é uma característica da sociedade palestina. O que os israelenses têm a ver com as violações de direitos humanos cometidas por palestinos contra palestinos em nossas prisões? Nada, mas insistimos em culpá-los. Não temos autocrítica e estamos pagando por isso.
Veja – A intifada foi um erro?
Eid – Foi um desastre, a pior coisa que poderia ter nos acontecido. Não conseguimos nada e ainda perdemos o pouco que havíamos conquistado no passado. Tudo por culpa de Arafat, que governava de acordo com seus interesses pessoais, e não com os do povo palestino. Ele comandava pessoalmente os grupos armados que alimentavam a intifada. É interessante notar que, até sua morte, mais de 80% dos palestinos apoiavam a intifada. Hoje, esse índice não passa de 40%. As pessoas perceberam que não avançamos no que era mais importante, a criação do Estado palestino.
Veja – Quais foram os outros erros de Arafat?
Eid – O pior de todos foi a roubalheira que ele patrocinou. Arafat tomou posse como presidente da Autoridade Palestina em 1996, mas já era corrupto desde que assumiu a liderança da Organização para a Libertação da Palestina, trinta anos antes. O mundo fechou os olhos porque Arafat sempre foi peça-chave para um acordo de paz com Israel. Desde 1996, estima-se que mais de 60% da ajuda financeira internacional aos palestinos tenha sido desviada. Quem percorre hoje os territórios administrados pela Autoridade Palestina percebe que em dez anos a miséria continua igual.
Veja – Mahmoud Abbas sucedeu a Arafat na presidência da Autoridade Palestina. O que mudou?
Eid – A rigor, nada. Os israelenses acreditam que Abu Mazen (como Abbas é conhecido entre os palestinos) é mais democrático, o que facilitaria um diálogo direto. O problema é que ele tem o DNA ideológico de Arafat. Ambos fazem parte da mesma geração de líderes palestinos que surgiu e cresceu sob regimes autoritários do Egito, Síria, Argélia, Iraque e Jordânia. Esses políticos nunca praticaram nenhum tipo de democracia, e agora não seria diferente com Mazen.
Veja – Abbas tem apoio entre os palestinos para assinar a paz com Israel?
Eid – Abu Mazen não tem força política para nada. O sucesso ou o fracasso de seu governo está nas mãos do primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon. Restam-lhe duas opções: ou aceita as exigências israelenses para assinar a paz ou os palestinos continuarão a brigar entre si. Para fechar um acordo com Sharon, ele terá de desarmar o Hamas e a Jihad Islâmica, entre outros grupos terroristas. Se tomar essa iniciativa, ele correrá o risco de cair. Como nenhum palestino quer perder o emprego, muito menos Abu Mazen, as coisas devem continuar como estão.
Veja – Uma tentativa de desarmar os terroristas palestinos poderia resultar em guerra civil?
Eid – Caso Abu Mazen decida desarmar os grupos terroristas na marra, é provável que tenhamos um conflito. Milhares de palestinos seriam mortos por outros palestinos. Mas, sinceramente, não seria algo terrível ou duradouro. Historicamente, em determinadas situações, a guerra civil é até benéfica. No caso palestino, obrigaria o governo a combater e desarmar grupos extremistas como o Hamas e a Jihad Islâmica. Isso ajudaria a abrir caminho para uma solução do conflito com os israelenses.
Veja – Por que israelenses e palestinos não conseguem fazer a paz?
Eid – A liderança israelense e a palestina passaram a depender do conflito para sobreviver politicamente. Foram assinados vários acordos de paz, e sempre um dos lados acaba tomando a iniciativa de violá-los. Não acredito que a liderança palestina esteja interessada em fazer a paz com Israel. Tampouco vejo empenho do governo israelense em selar um acordo definitivo. É duro, mas essa é a realidade no Oriente Médio.
Veja – O senhor concorda que, após meio século de violência, é difícil acreditar que não haja interessados numa solução para o conflito?
Eid – A população israelense sabe que um acordo de paz traria segurança a Israel e, por isso, apóia uma solução negociada. Por causa do sofrimento acumulado por tantos anos de ocupação, o palestino comum não tem tão claro esse desejo de paz. Ele olha para o país vizinho e vê que os israelenses têm liberdade de movimento e levam vida normal. Enfim, tudo o que não pode fazer ou nem sequer sonhar. Essa diferença colossal toca fundo nos palestinos. Nós não queremos ser vistos como um povo perdedor. Tivemos várias oportunidades de fechar um acordo definitivo, inclusive os que contemplavam a criação de um Estado independente. Mas o rancor pelo sofrimento vivido e o orgulho sempre falaram mais alto, e acabamos desperdiçando todas essas chances.
Veja – Qual é a possibilidade de extremistas islâmicos tomarem o poder pelo voto?
Eid – Essa possibilidade existe, mas considero pequena. Temos uma tradição laica, até mesmo entre a liderança da Autoridade Palestina, e arrisco dizer que formamos a sociedade mais aberta do Oriente Médio depois de Israel. Os palestinos têm elevado grau de instrução. Cerca de 80% da população usa a internet. Comparados com o restante do mundo árabe, somos os mais propensos a assimilar a cultura ocidental. É claro que o fator religioso pesa. Os palestinos consideram-se mais religiosos que os israelenses. Mas sabemos o que significa fundamentalistas no poder. A maioria dos palestinos não deseja isso.
Veja – O que falta aos palestinos para fechar um acordo de paz definitivo com os israelenses?
Eid – Os palestinos têm de ser realistas na mesa de negociação. Está na hora de aprender que a vida vale mais que um pedaço de terra. Milhares de palestinos morreram nos últimos anos, e o que conseguimos em troca? Precisamos, primeiro, aceitar que os Estados Unidos são a única superpotência mundial. Não haverá acordo sem a bênção da Casa Branca. Além disso, os palestinos precisam convencer os países árabes a manter relações com Israel. Os outros entraves que costumam impedir um acordo serão mais simples de resolver.
Veja – O senhor acredita que seria fácil chegar a um acordo sobre Jerusalém, que os dois lados consideram a capital de seu Estado?
Eid – Quantos palestinos vivem em Jerusalém? Não passam de 200 000. Enquanto isso, mais de 3 milhões de palestinos vivem na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Se Israel libertar os mais de 7 000 palestinos que mantém em suas prisões, tenho certeza de que um acordo sobre o status da cidade será rápido. Mas Israel precisa tomar a iniciativa, e logo. Hoje, a maioria dos palestinos prefere negociar com Sharon a negociar com qualquer outro líder israelense.
Veja – Os palestinos aceitam abrir mão do direito de retorno dos refugiados em troca de um Estado independente?
Eid – O direito de retorno dos refugiados ao território que hoje constitui Israel é uma bandeira usada mais pela Autoridade Palestina do que pelos próprios refugiados. A insistência de incluir essa exigência como questão inegociável foi um artifício utilizado por Arafat em 2000 para irritar os israelenses e mantê-los sob pressão. O que realmente interessa a esses refugiados e descendentes é obter emprego, moradia digna, hospitais e escolas para os filhos. Não se fala mais em direito de retorno. A maioria dos palestinos esqueceu o assunto.
Veja – O senhor fala como se os palestinos estivessem dispostos a renunciar ao sonho de ter um Estado independente...
Eid – Pergunte a qualquer palestino que passa três horas por dia nos postos de controle israelenses qual é seu maior sonho, e ele vai responder: liberdade de movimento para poder trabalhar em Israel. Isso mostra que o que nós, palestinos, precisamos é de uma economia robusta, para termos acesso a uma vida mais digna. O mundo acredita que o Oriente Médio será um paraíso se houver paz entre israelenses e palestinos. Não é bem assim. O ex-premiê israelense Shimon Peres acertou quando disse que o desenvolvimento econômico da região, e não um acordo de paz, ajudaria a criar um novo Oriente Médio. Estamos diante de uma oportunidade de ouro para captar recursos no exterior, investir em infra-estrutura e criar instituições fortes. O momento exige estratégia de ação – coisa que a Autoridade Palestina não tem, pois há muito deixou de lado a causa pública para privilegiar os interesses de poucos. Por isso, considero mais importante priorizar o desenvolvimento econômico dos palestinos do que a criação do Estado independente.
Veja – O senhor quer dizer que a criação de um Estado palestino não é uma prioridade?
Eid – Não estamos prontos para assumir nosso próprio Estado, e por uma razão simples: nunca fomos governados por palestinos. Nossa dura realidade é que não aprendemos nada em 38 anos de ocupação israelense. Receio que vamos precisar de mais vinte anos para aprender a cuidar de nosso próprio destino. Antes disso, não acredito na criação do Estado palestino.
REVISTA VEJA - Edição 1933 . 30 de novembro de 2005
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