domingo, março 04, 2007

TAMBÉM TEMOS CULPA

MATÉRIA SOBRE OS CONFLITOS NO ORIENTE MÉDIO

Entrevista: Bassem Eid

José Eduardo Barella

O palestino Bassem Eid, de 47 anos, tem um trabalho inusitado para quem vive nos territórios ocupados por Israel: ele monitora e denuncia violações de direitos humanos cometidas pelos próprios palestinos e que têm como vítimas os habitantes da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. Eid trocou a carreira de jornalista pela de ativista de direitos humanos em 1988, quando começou a trabalhar para uma ONG israelense que investigava abusos das tropas de Israel nos territórios ocupados. Em 1996, indignado com o comportamento ditatorial da recém-criada Autoridade Palestina, fundou o Grupo Palestino de Monitoramento de Direitos Humanos, com a ajuda de doadores europeus. Eid já foi preso pela polícia palestina e interrogado durante 24 horas. Também foi acusado de traição e ameaçado por grupos terroristas. Isso não o impede de continuar denunciando a corrupção no governo palestino e os abusos da polícia e dos grupos armados nos territórios, como o Hamas. Divorciado e pai de oito filhos, Eid falou a VEJA de Jericó, onde vive.

Veja – Em geral, os palestinos reclamam dos israelenses. O senhor ficou conhecido por denunciar as violações de direitos humanos cometidas por seus patrícios. Por quê?

Bassem Eid – Estamos vivendo um período de terror que nada deve aos piores momentos da ocupação militar israelense. Nos últimos cinco anos, mais de 350 palestinos foram assassinados por razões políticas pelos próprios palestinos. Esse número equivale a 10% dos civis mortos pelas tropas israelenses nesse período. Essa guerra interna nos territórios ocupados já tem até nome – é a "intrafada", em oposição à intifada, a revolta contra a ocupação. A matança promovida por grupos armados contra integrantes de facções rivais, debaixo do nariz das forças de segurança palestinas, responde pela maioria das mortes. A violência sob a chancela oficial também é alarmante. Há casos de pessoas que ficaram três anos detidas sem acusação formal. Tivemos palestinos mortos na prisão e outros ameaçados, torturados e perseguidos como se fossem bandidos. São pessoas acusadas de colaborar com os israelenses, mas o único crime da maioria dessas vítimas foi divergir da Autoridade Palestina.

Veja – Como a sociedade palestina reage a essa situação?

Eid – É possível dividir a sociedade palestina em três categorias. A primeira, que abriga a maioria, é formada pelos cidadãos que têm medo da Autoridade Palestina e dos grupos armados. A segunda inclui os que defendem apenas seus interesses pessoais – e perderam o que chamo de interesse público. A última é a dos alienados, que não se importam se vivemos numa ditadura ou numa democracia. Nenhum desses grupos se propõe a denunciar os abusos cometidos pela Autoridade Palestina e pelos bandos armados. Também não vejo uma articulação pela democracia no meio acadêmico ou na imprensa palestina.

Veja – Qual a explicação para a passividade diante de tanta violência?

Eid – O medo da repressão ajuda a explicar esse silêncio. Mas há outros motivos. Os palestinos, é bom lembrar, fazem parte do mundo árabe. Jamais estudamos na escola conceitos como democracia, liberdade, pluralismo e direitos humanos. Nossa única referência são os regimes autoritários da região. Ou seja, em nossa natureza, somos um povo violento. No que se refere à humilhação imposta às mulheres e ao desrespeito aos direitos individuais, não há diferença entre o que ocorre em Damasco e na Faixa de Gaza.

Veja – A vida dos palestinos na Faixa de Gaza melhorou após a retirada das tropas israelenses?

Eid – Se alguma coisa mudou, foi para pior. Por incrível que pareça, os palestinos tinham mais segurança. As tropas israelenses impediam que os grupos armados agissem livremente. Depois da retirada, os terroristas do Hamas impuseram a lei do terror aos moradores de Gaza. Além disso, passaram a lançar mísseis contra as tropas israelenses do outro lado da fronteira. Estas respondem com tiros e acabam atingindo civis. É a estratégia do Hamas: mostrar aos palestinos que os israelenses não saíram de Gaza.

Veja – É possível construir um governo palestino democrático sob ocupação israelense?

Eid – Esse dilema existe desde que os acordos de Oslo criaram, em 1994, o governo semi-autônomo da Autoridade Palestina nos territórios ocupados. Foram necessários mais de dez anos para que os palestinos percebessem o mal que esse governo nos causou. Yasser Arafat, o presidente da Autoridade Palestina até morrer, em 2004, foi um ditador. Ele usou a ocupação israelense todo esse tempo como desculpa para seus erros. Aliás, a mania de responsabilizar os outros pelos próprios fracassos é uma característica da sociedade palestina. O que os israelenses têm a ver com as violações de direitos humanos cometidas por palestinos contra palestinos em nossas prisões? Nada, mas insistimos em culpá-los. Não temos autocrítica e estamos pagando por isso.

Veja – A intifada foi um erro?

Eid – Foi um desastre, a pior coisa que poderia ter nos acontecido. Não conseguimos nada e ainda perdemos o pouco que havíamos conquistado no passado. Tudo por culpa de Arafat, que governava de acordo com seus interesses pessoais, e não com os do povo palestino. Ele comandava pessoalmente os grupos armados que alimentavam a intifada. É interessante notar que, até sua morte, mais de 80% dos palestinos apoiavam a intifada. Hoje, esse índice não passa de 40%. As pessoas perceberam que não avançamos no que era mais importante, a criação do Estado palestino.

Veja – Quais foram os outros erros de Arafat?

Eid – O pior de todos foi a roubalheira que ele patrocinou. Arafat tomou posse como presidente da Autoridade Palestina em 1996, mas já era corrupto desde que assumiu a liderança da Organização para a Libertação da Palestina, trinta anos antes. O mundo fechou os olhos porque Arafat sempre foi peça-chave para um acordo de paz com Israel. Desde 1996, estima-se que mais de 60% da ajuda financeira internacional aos palestinos tenha sido desviada. Quem percorre hoje os territórios administrados pela Autoridade Palestina percebe que em dez anos a miséria continua igual.

Veja – Mahmoud Abbas sucedeu a Arafat na presidência da Autoridade Palestina. O que mudou?

Eid – A rigor, nada. Os israelenses acreditam que Abu Mazen (como Abbas é conhecido entre os palestinos) é mais democrático, o que facilitaria um diálogo direto. O problema é que ele tem o DNA ideológico de Arafat. Ambos fazem parte da mesma geração de líderes palestinos que surgiu e cresceu sob regimes autoritários do Egito, Síria, Argélia, Iraque e Jordânia. Esses políticos nunca praticaram nenhum tipo de democracia, e agora não seria diferente com Mazen.

Veja – Abbas tem apoio entre os palestinos para assinar a paz com Israel?

Eid – Abu Mazen não tem força política para nada. O sucesso ou o fracasso de seu governo está nas mãos do primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon. Restam-lhe duas opções: ou aceita as exigências israelenses para assinar a paz ou os palestinos continuarão a brigar entre si. Para fechar um acordo com Sharon, ele terá de desarmar o Hamas e a Jihad Islâmica, entre outros grupos terroristas. Se tomar essa iniciativa, ele correrá o risco de cair. Como nenhum palestino quer perder o emprego, muito menos Abu Mazen, as coisas devem continuar como estão.

Veja – Uma tentativa de desarmar os terroristas palestinos poderia resultar em guerra civil?

Eid – Caso Abu Mazen decida desarmar os grupos terroristas na marra, é provável que tenhamos um conflito. Milhares de palestinos seriam mortos por outros palestinos. Mas, sinceramente, não seria algo terrível ou duradouro. Historicamente, em determinadas situações, a guerra civil é até benéfica. No caso palestino, obrigaria o governo a combater e desarmar grupos extremistas como o Hamas e a Jihad Islâmica. Isso ajudaria a abrir caminho para uma solução do conflito com os israelenses.


Veja – Por que israelenses e palestinos não conseguem fazer a paz?

Eid – A liderança israelense e a palestina passaram a depender do conflito para sobreviver politicamente. Foram assinados vários acordos de paz, e sempre um dos lados acaba tomando a iniciativa de violá-los. Não acredito que a liderança palestina esteja interessada em fazer a paz com Israel. Tampouco vejo empenho do governo israelense em selar um acordo definitivo. É duro, mas essa é a realidade no Oriente Médio.

Veja – O senhor concorda que, após meio século de violência, é difícil acreditar que não haja interessados numa solução para o conflito?

Eid – A população israelense sabe que um acordo de paz traria segurança a Israel e, por isso, apóia uma solução negociada. Por causa do sofrimento acumulado por tantos anos de ocupação, o palestino comum não tem tão claro esse desejo de paz. Ele olha para o país vizinho e vê que os israelenses têm liberdade de movimento e levam vida normal. Enfim, tudo o que não pode fazer ou nem sequer sonhar. Essa diferença colossal toca fundo nos palestinos. Nós não queremos ser vistos como um povo perdedor. Tivemos várias oportunidades de fechar um acordo definitivo, inclusive os que contemplavam a criação de um Estado independente. Mas o rancor pelo sofrimento vivido e o orgulho sempre falaram mais alto, e acabamos desperdiçando todas essas chances.

Veja – Qual é a possibilidade de extremistas islâmicos tomarem o poder pelo voto?

Eid – Essa possibilidade existe, mas considero pequena. Temos uma tradição laica, até mesmo entre a liderança da Autoridade Palestina, e arrisco dizer que formamos a sociedade mais aberta do Oriente Médio depois de Israel. Os palestinos têm elevado grau de instrução. Cerca de 80% da população usa a internet. Comparados com o restante do mundo árabe, somos os mais propensos a assimilar a cultura ocidental. É claro que o fator religioso pesa. Os palestinos consideram-se mais religiosos que os israelenses. Mas sabemos o que significa fundamentalistas no poder. A maioria dos palestinos não deseja isso.

Veja – O que falta aos palestinos para fechar um acordo de paz definitivo com os israelenses?

Eid – Os palestinos têm de ser realistas na mesa de negociação. Está na hora de aprender que a vida vale mais que um pedaço de terra. Milhares de palestinos morreram nos últimos anos, e o que conseguimos em troca? Precisamos, primeiro, aceitar que os Estados Unidos são a única superpotência mundial. Não haverá acordo sem a bênção da Casa Branca. Além disso, os palestinos precisam convencer os países árabes a manter relações com Israel. Os outros entraves que costumam impedir um acordo serão mais simples de resolver.

Veja – O senhor acredita que seria fácil chegar a um acordo sobre Jerusalém, que os dois lados consideram a capital de seu Estado?

Eid – Quantos palestinos vivem em Jerusalém? Não passam de 200 000. Enquanto isso, mais de 3 milhões de palestinos vivem na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Se Israel libertar os mais de 7 000 palestinos que mantém em suas prisões, tenho certeza de que um acordo sobre o status da cidade será rápido. Mas Israel precisa tomar a iniciativa, e logo. Hoje, a maioria dos palestinos prefere negociar com Sharon a negociar com qualquer outro líder israelense.

Veja – Os palestinos aceitam abrir mão do direito de retorno dos refugiados em troca de um Estado independente?

Eid – O direito de retorno dos refugiados ao território que hoje constitui Israel é uma bandeira usada mais pela Autoridade Palestina do que pelos próprios refugiados. A insistência de incluir essa exigência como questão inegociável foi um artifício utilizado por Arafat em 2000 para irritar os israelenses e mantê-los sob pressão. O que realmente interessa a esses refugiados e descendentes é obter emprego, moradia digna, hospitais e escolas para os filhos. Não se fala mais em direito de retorno. A maioria dos palestinos esqueceu o assunto.

Veja – O senhor fala como se os palestinos estivessem dispostos a renunciar ao sonho de ter um Estado independente...

Eid – Pergunte a qualquer palestino que passa três horas por dia nos postos de controle israelenses qual é seu maior sonho, e ele vai responder: liberdade de movimento para poder trabalhar em Israel. Isso mostra que o que nós, palestinos, precisamos é de uma economia robusta, para termos acesso a uma vida mais digna. O mundo acredita que o Oriente Médio será um paraíso se houver paz entre israelenses e palestinos. Não é bem assim. O ex-premiê israelense Shimon Peres acertou quando disse que o desenvolvimento econômico da região, e não um acordo de paz, ajudaria a criar um novo Oriente Médio. Estamos diante de uma oportunidade de ouro para captar recursos no exterior, investir em infra-estrutura e criar instituições fortes. O momento exige estratégia de ação – coisa que a Autoridade Palestina não tem, pois há muito deixou de lado a causa pública para privilegiar os interesses de poucos. Por isso, considero mais importante priorizar o desenvolvimento econômico dos palestinos do que a criação do Estado independente.

Veja – O senhor quer dizer que a criação de um Estado palestino não é uma prioridade?

Eid – Não estamos prontos para assumir nosso próprio Estado, e por uma razão simples: nunca fomos governados por palestinos. Nossa dura realidade é que não aprendemos nada em 38 anos de ocupação israelense. Receio que vamos precisar de mais vinte anos para aprender a cuidar de nosso próprio destino. Antes disso, não acredito na criação do Estado palestino.

REVISTA VEJA - Edição 1933 . 30 de novembro de 2005

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