Dinesh D’Souza2
Uma das coisas que mais surpreenderam as pessoas na história do ataque de 11 de Setembro (2001) é que ele ocorreu numa época em que o ideal americano parecia se espalhar irresistivelmente por todo o mundo.
Francis Fukuyama escreveu O fim da História tendo como argumento a inexorável propagação das idéias liberais de uma democracia constitucional do Ocidente. Mas acho que muitos de nós agora estamos bastante conscientes de que há uma poderosa resistência aos EUA.
O antiamericanismo tem três escolas no mundo:
1. A escola européia, basicamente a escola francesa – difícil de ser levada a sério. Segundo ela, a americanização do mundo está anulando o que é típico, regional, da cultura de cada canto do mundo. Pensam eles: "temos a língua francesa, maravilhosa, ótimos restaurantes franceses, excelentes intelectuais, e estas coisas estão sendo dizimadas". Esta é a crítica européia.
2. Crítica asiática – basicamente da Malásia, Cingapura e agora, cada vez mais, da China. Segundo essa escola, o Ocidente resolveu o problema econômico, mas não resolveu o problema cultural. O Ocidente sabe como criar prosperidade, tecnologia, mas não sabe criar ordem social. O Ocidente tem alta mobilidade social, mas também uma taxa alta de criminalidade, de divórcio, de filhos ilegítimos, e uma cultura popular que é quase sempre trivial, se não, vulgar. Os que advogam a visão asiática dizem: "Podemos fazer melhor. Podemos combinar prosperidade econômica, por um lado, com decência social, por outro".Esta é a crítica asiática.
3. Crítica islâmica – (talvez a mais importante para os EUA) – O mundo inteiro quer importar seletivamente as idéias dos EUA e do Ocidente em geral. Todo mundo quer importar algumas coisas do Ocidente, mas não outras. Os chineses querem o capitalismo ocidental, mas não querem a democracia do Ocidente. Intelectuais indianos querem a tecnologia ocidental, mas não querem a cultura ocidental. Para a visão islâmica, essa tentativa de "selecionar" o que se quer do Ocidente ou dos EUA é uma ilusão. A americanização ou a ocidentalização são uma ilusão. Na visão islâmica, você não pode selecionar partes dos EUA ou do Ocidente para importar. Se você quiser levar uma parte, vai levar quase tudo ou tudo. E se você levar tudo, o efeito disso seria cataclísmico, iria minar a fé em Alá, subverter a hierarquia política e religiosa, criaria uma revolução moral na sociedade, deixaria o mundo islâmico irreconhecível em relação ao que tem sido desde os tempos de Maomé. Este é o medo dos seguidores do Islamismo. E estão absolutamente certos. O ideal americano e do Ocidente é subversivo, é um ideal revolucionário. E por que é subversivo?
A importância da civilização ocidental
Vivemos num mundo que vem sendo dramaticamente moldado, nos últimos 200 anos, pela civilização ocidental. A atual geração pergunta, perplexa: "Como é que a civilização ocidental passou a dominar o mundo"? Se você voltar na História aos anos 1600, as civilizações que dominavam o mundo eram a chinesa e a do mundo árabe islâmico. Eram as mais avançadas em estudos, conhecimento, na exploração, em riqueza, na literatura... Em todos os ramos imagináveis da civilização esses "caras" estavam no topo, acima da civilização ocidental conhecida à época como a cristandade, que estava muito atrás. Então, como essa relativamente atrasada civilização do Ocidente progrediu tanto que se tornou capaz de, em pouco mais de cem anos, conquistar todas as civilizações do mundo? Como isso aconteceu? A explicação convencional que nos dão nas escolas e nas Universidades é a de que o Ocidente se tornou rico e poderoso através da opressão. Que foram especificamente os crimes da escravidão e do colonialismo que se constituíram no segredo para a ascensão e poderio do Ocidente. E esse argumento conduz o debate tanto dentro como fora dos EUA. E serve como argumentação para o terrorismo. Dentro dos EUA, a favor de uma reparação.
A argumentação genérica no mundo árabe é a de que "vocês, árabes, estão por baixo porque os do Ocidente estão por cima; vocês estão pobres porque eles estão ricos; eles se tornaram ricos às suas custas".Assim, a primeira pergunta que nos devemos fazer é: será que isso é mesmo verdade? Será que o Ocidente, de fato, se tornou rico desse modo?
Se você fizer uma pequena pesquisa mundo afora, vai se dar conta de que não há nada de "ocidental" nem na escravidão nem no colonialismo. Se você olhar o colonialismo, as colônias inglesas, por exemplo. A Índia foi colônia da Inglaterra por alguns bons anos, mas muito antes dos ingleses, foi ocupada pelos persas, afegãos, mongóis, pelos turcos, pelos árabes. A Inglaterra deve ter sido o sétimo ou oitavo colonizador a invadir e ocupar a Índia.
Não há nada de caracteristicamente ocidental nem na escravidão nem no colonialismo. A escravidão existiu em toda civilização de que se tem notícia: os chineses a tiveram, os indianos também, os gregos, os romanos. A escravidão era uma realidade em toda a África. Os índios da América tinham escravos muito antes que Colombo pusesse os pés neste continente.
O que é caracteristicamente ocidental não é a escravidão, mas a revolução. O movimento para libertação, para pôr fim à escravidão, este sim, é um traço característico de uma conquista ocidental. Tudo isso é para dizer que opressão é um argumento muito fraco para o sucesso do Ocidente.
A razão para a ascensão e riqueza do Ocidente é que a civilização ocidental inventou três coisas que nunca existiram antes e essas três coisas são a ciência, a democracia e o capitalismo. Todas essas três coisas se baseiam num princípio universal. Veja, por exemplo, a ciência: em toda cultura as pessoas querem aprender. Os chineses, por exemplo, gravavam os eclipses, os maias desenvolveram o calendário, os indus inventaram o número zero. Mas a ciência, pela qual quero dizer laboratórios, experimentação, verificação, comprovação, esta é a invenção da invenção: o método científico. Esta é uma idéia ocidental.
Agora veja o Capitalismo. Em toda sociedade as pessoas comercializavam. Não há nada de caracteristicamente ocidental no dinheiro. Mas Capitalismo, que pressupõe o direito de propriedade, contratos e Cortes de Justiça para assegurá-los, empresas de financiamento, de seguro, contabilidade, e todos esses ingredientes que fazem parte do Capitalismo, isso tudo representa uma evolução tipicamente ocidental.
O mesmo pode ser dito a respeito da Democracia. O que eu proponho é que o verdadeiro poder do Ocidente foi desenvolvido internamente, em torno da Ciência, Capitalismo e Democracia, um fator atuando sobre o outro. São as três colunas do sucesso do Ocidente.
Agora falando especificamente dos EUA. O que há de tão relevante no ideal americano que a tantos soa tão atraente, atraindo imigrantes de todo o mundo e que fascina as pessoas onde quer que você vá? Você pode estar num hotel em Bombaim, em Barbados, que todos demonstram isso. Há alguma coisa de muito fascinante no ideal americano que precisa ser explicado.
Ao mesmo tempo, o ideal americano é para outras pessoas tão repulsivo! E eu não estou falando só de uns caras malucos do mundo islâmico. Estou falando também de pessoas daqui dos EUA. O que há de tão significativo no ideal americano que provoca tão fortes reações em ambos os lados?
Para responder a essa pergunta, eu me faço uma pergunta diferente: o que é que teria acontecido comigo se eu não tivesse vindo para os EUA, se eu tivesse ficado na Índia? E a razão porque eu me faço essa pergunta é porque andei vendo a literatura a respeito da imigração para os EUA e basicamente a resposta não tem muitas variáveis. Os imigrantes vêm para os EUA por uma simples razão: para ficarem ricos, ganhar muito dinheiro. Os críticos dos EUA gostam dessa explicação porque é um modo de atribuir a sedução pelos EUA à ganância. Apesar de conter algo de verdade, eu diria que essa explicação é muito limitada e fundamentalmente distorcida. A explicação material é verdadeira em parte e é por isto que é tão conhecida.
O que sucede, na verdade, é que os EUA, mais que outro país, proporcionam uma vida boa e agradável ao cidadão comum. Pense no seguinte: se você é um "cara" rico, vai se dar bem em qualquer lugar. Eu até diria que se você é rico pode viver melhor fora dos EUA do que nos EUA. Por que? Porque se você mora fora dos EUA vai usufruir do que podemos chamar de "as regalias da aristocracia", que se resumem no prazer de sentir que você é um ser superior. Nos EUA isso lhe é negado, não importa quanto dinheiro você tenha. Posso citar o exemplo do Bill Gates. Se Bill Gates estiver andando pelas ruas de Nova Iorque e parar alguém, ao acaso, e lhe disser: "_ Olhe, eu lhe dou cem dólares se você beijar meus pés".Qual seria a resposta do americano típico? O americano típico diria a ele o seguinte: "_ Bill, vá para o inferno! Você pode ter mais dinheiro que eu, mas não é melhor do que eu".E essa é a idéia que mostra o limite do que o dinheiro pode comprar nos EUA. Sendo assim, o "cara" rico vive melhor fora dos EUA.
Mas os EUA proporcionam uma vida boa ao homem comum. Como imigrante, isso é óbvio demais para mim. Tenho um amigo em Bombaim que há uns dez anos vem tentando obter um visto para se mudar para os EUA e não consegue nunca. Perguntei a ele: por que é que você quer tanto ir para os EUA? Ele me disse que é porque ele quer morar num país em que, ao menos, as pessoas pobres são gordas. Em outras palavras, o homem comum vive bem nos EUA. Para mim, no entanto, essa é uma explicação limitada e parcial para o que é verdadeiramente atraente e significativo nos EUA.
Volto à pergunta que apresentei pouco atrás: o que teria sido da minha vida se eu não tivesse vindo para os EUA? Se eu tivesse ficado morando na Índia, provavelmente passaria toda a minha vida dentro de uma área de cinco milhas de raio de onde eu nasci. Sem dúvida, teria me casado com uma garota da minha religião, classe e padrão de vida. Quase certamente seria um médico, um engenheiro ou um programador de software. Eu teria todo um conjunto de opiniões que facilmente já estariam ultrapassadas. Isso é o que o destino teria me proporcionado. Não estou dizendo que não teria nenhuma outra escolha. Mas a escolha seria confinada dentro de certos parâmetros.
Nos EUA, ao contrário, tenho que escrever o script da minha própria vida. Nos EUA nossa vida é como uma folha de papel em branco e nós somos os autores. Nos EUA, o destino não é dado a você, mas é construído por você. É assim que perguntam ao garoto: "_ Bill, o que você quer ser quando crescer?"A resposta está com a criança, não com os pais. Esta noção de você ser o arquiteto de seu próprio destino, ou, se quiserem, a idéia de que você é o motorista condutor de sua própria vida, esta é a força do ideal americano que é irresistível, particularmente para os jovens em todo o mundo. Se você chegar para um "cara" e lhe propuser: "_ Você tem duas escolhas: alguém pode escrever o script da sua vida ou você pode escrever por si próprio", não é difícil perceber o que as pessoas escolheriam. Nisso consiste a força do ideal americano.
Mas não disse ainda o que há de tão controvertido nesse ideal. E é isso que proponho como a maior revolução moral desde o século XVII. Uma revolução moral que radicalizou a idéia de liberdade individual que ultrapassou tudo o que os fundadores dos EUA pudessem ter concebido. Eles acreditavam em três tipos de liberdade: econômica, política e de expressão e religião. Acreditavam que a natureza humana é igual em todo lugar. As pessoas buscam as mesmas coisas na vida. Dê a elas esses três tipos de liberdade e elas podem realizar o sonho americano por conta própria. Isto era o que os fundadores dos EUA entendiam por liberdade. Mas essa idéia de liberdade foi radicalizada e em décadas recentes foi particularmente radicalizada pelo filósofo Rousseau. Não digo que Rousseau tenha sido a causa da mudança. Digo que ele a articulou com eloqüência e força.
Rousseau disse: "_ Há um modo de ser humano que é o meu jeito. Há um modo para mim de viver a vida que apenas eu posso determinar por conta própria. E se me vejo diante de uma importante decisão – a quem amar, com quem me casar, o que devo ser, uma decisão moral a tomar, de qualquer espécie, – não resolvo nada disso consultando meus pais, ou meus professores, meus líderes religiosos, nem mesmo a Deus. Então, como eu decido? Decido consultando meu ser interior. Considero-me como um ser humano com dotes pessoais que estão dentro de mim. Eu me pergunto o que devo fazer e obedeço a esse conselho infalível".
Em outras palavras, Rousseau está enunciando uma nova idéia, a idéia de autenticidade, de ser verdadeiro comigo mesmo. É uma idéia imensamente poderosa. Ele acrescentou às liberdades individuais enumeradas pelos fundadores dos EUA uma nova: a liberdade interior ou liberdade moral. Vocês podem ver como essa idéia é tremendamente sedutora e tremendamente polêmica. Para o mundo islâmico, é ameaçadora para a autoridade de Alá porque ela oferece uma corrente filosófica que rivaliza com as religiões. De repente, a esposa e o filho muçulmanos dizem: "_ Eu não tenho que obedecer ao chefe da casa, ou ao mulah,3 ou à sharia,4 ou mesmo a Deus. Só tenho que ouvir meu interior." É uma idéia bastante radical. E é uma idéia polêmica mesmo dentro dos EUA. É, de certa forma, a raiz e a base das denominadas "guerras das culturas".
Foi Edmund Burke quem disse, não muito tempo atrás: "- Para amarmos nosso país, nosso país tem que ser amável". E o que ele quer dizer com isso é que nós amamos nosso país porque ele é nosso, mas que esta não é a maior forma de patriotismo. A maior forma de patriotismo é amar seu país não apenas porque ele é seu, mas também porque ele é bom.
A pergunta com que nos deparamos hoje, nesses tempos difíceis, é: que coisas nós temos para amarmos nosso país? Podemos encontrar aqui o que Burke diz e ver se isso se confirma?
Temos que responder ao argumento islâmico no que ele tem de mais importante. Se você disser aos muçulmanos: "- Olhe, nosso país é próspero, nosso país é pluralista, nosso país é multiforme, nosso país é livre, tratamos as mulheres com igualdade...", o mais inteligente crítico muçulmano dirá: "_ Sim, vocês têm tudo isso, mas, e daí? Essas não são as coisas mais importantes. O princípio de vocês é a liberdade, o nosso é a virtude. Nós estamos tentando pôr em prática a vontade de Deus. Podemos estar errando, mas, ao menos, estamos tentando".
O argumento deles é que a virtude é um princípio mais elevado que a liberdade. Como é que se responde a essa espécie de argumento? Começo a resposta concordando com eles. Eu concordo que a virtude é um objetivo fundamental para uma boa sociedade. Mas o meu argumento é que a liberdade é a pré-condição essencial para se chegar à virtude. Em outras palavras, é preciso haver liberdade para que a virtude seja uma virtude. Considere uma mulher no Irã que é obrigada a usar véu. Na minha opinião, ela não é recatada. Por que? Porque ela está sendo constrangida a ser. Para exercermos a virtude, temos que ser capazes de escolhê-la com liberdade.
Portanto, o maior triunfo de uma sociedade livre não é apenas o fato de que ela nos proporciona mais prosperidade, nos torna mais pluralistas, nos proporciona mais generosidade, ou porque tratamos melhor as mulheres. O maior triunfo de uma sociedade livre é que a liberdade é condição fundamental para vivermos não somente uma boa vida, mas também – o que me parece mais importante – uma vida que é boa.
1- Tema do livro de mesmo nome What’s so great about America. 2- Dinesh D’Souza é indiano naturalizado americano. Extratos de palestra proferida no CATO Institute e publicada na CATOAudio de JUN.2002. Acervo da Biblioteca do IL-RJ. 3- Chefe religioso islâmico.4- Conjunto de leis islâmicas ditadas por Maomé, bastante rigorosas para os padrões ocidentais.
quarta-feira, fevereiro 28, 2007
segunda-feira, fevereiro 19, 2007
REFLEXÕES ACERCA DO MARXISMO
REFLEXÕES ACERCA DO MARXISMO. A PROPÓSITO DAS COMEMORAÇÕES DOS CENTO E CINQUENTA ANOS DO MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA
Claudinei Magno Magre Mendes[1]
RESUMO
O debate em torno da atualidade do marxismo não pode ignorar as lutas políticas travadas a partir da publicação do Manifesto do Partido Comunista. Também não pode ignorar que, em muitas circunstâncias, o próprio movimento operário, os partidos operários e os intelectuais de esquerda combateram o marxismo e o socialismo, dando sustentação política ao capitalismo. Marx, Engels e Lênin, por exemplo, polemizaram mais com os movimentos de esquerda do que com os partidários da burguesia. É necessária, pois, uma reflexão que dê a cada um sua responsabilidade pelo atual momento político.
UNITERMOS
Marxismo; Socialismo; Revisionismo.
REFLEXIONS ON MARXISM. THE COMMEMORATIONS OF THE HUNDRED AND FIFTY YEARS OF THE COMUNIST MANIFEST
ABSTRACT
The debat about the present time of the marxism can't ignore the political struggles occurred from on the publication of the Comunist Manifest. Also we can't ignore that, in many circumstances, the laborer movement, the laborer parties and the left intellectuals combated the marxim and the socialism, giving political maintenance to the capitalism. Marx, Engels and Lenin, for example, discussed more against the left movement than against the partisans of the bourgeoisie. It is necessary, therefore, a reflection that give to each his responsability for the present historical circumstances.
KEYWORDS
Marxism; Socialism; Revisionism.
Durante o ano de 1998, a propósito dos cento e cinqüenta anos da publicação do Manifesto do Partido Comunista, foram publicados trabalhos tratando, de um modo geral, da questão da atualidade desta obra e, por extensão, do próprio marxismo. É verdade que muitos deles, ao invés de recorrerem à história para aferir a vitalidade e a permanência do Manifesto, preferiram o caminho da quase apologia, ressaltando o caráter científico do marxismo. Retiraram o Manifesto da história, contrariando, inclusive, a maior de todas as lições de Marx, qual seja, a formulação de que tudo que é humano é histórico. Mas, mesmo aqueles autores que recorreram à história para considerar o Manifesto, fizeram de tal forma que tornaram essa obra e, por conseqüência, o próprio marxismo, uma doutrina acima da própria história, baseando-se fundamentalmente na idéia de que, enquanto existir capitalismo, essa doutrina e o socialismo terão sua validade.[2] No entanto, a história sofreu mudanças suficientemente profundas para colocar em causa a própria eficácia do marxismo. Este constitui o tema desse artigo.
Não se deve ignorar que o debate em torno do Manifesto do Partido Comunista e, por conseguinte, do marxismo, é extremamente importante nos dias de hoje. Não se trata apenas de refletir acerca de uma doutrina que mudou, verdadeiramente, a face do mundo. Trata-se, também, de fazer uma reflexão acerca dos rumos que a história está tomando atualmente. Nosso futuro depende, em grande medida, do modo como olhamos o passado e encaramos o presente. Isso inclui, indubitavelmente, a maneira como consideramos o próprio marxismo.
Atualmente, novas questões estão sendo colocadas, como a do desemprego tecnológico, que precisam ser consideradas de um ângulo novo, distinto daquele freqüentemente utilizado. Trata-se, à primeira vista, de um problema antigo. Com efeito, a Economia Política já nos havia alertado, em princípios do século XIX, através de Sismondi (1971) e Ricardo (1985), por exemplo, para o fato maquinaria tornar o homem dispensável do processo de produção. Ela criava, como observou Ricardo, uma população redundante.
Este problema foi atenuado por duas circunstâncias. Uma, que predominou no século XIX, especialmente na sua segunda metade, e no início do XX, que foi a emigração. O deslocamento de imensos contingentes populacionais dos países velhos para os novos países desafogou a Europa e atenuou o problema do desemprego (Queiroz, 1979). Esta forma de resolver o problema esgotou-se a partir do momento em que as novas regiões foram ocupadas e os novos países também se industrializaram.
A segunda circunstância foi o advento do socialismo, culminando com a Guerra Fria. Durante este período, os governos empenharam-se em atenuar o problema do desemprego através de medidas sociais e mesmo da criação artificial de empregos.
Entretanto, o problema do desemprego adquiriu nova feição, já que as condições históricas são outras. De fato, com o fim do socialismo e da Guerra Fria, com o fim da ameaça de uma revolução e, principalmente, com o uso intensivo da tecnologia, a sociedade está sendo obrigada a encarar a questão do desemprego de uma maneira completamente distinta.
Na verdade, fala-se em desemprego, mas é preciso estabelecer uma diferença entre o desemprego propriamente dito e a nova situação que está sendo criada.
Por desemprego poderíamos entender uma situação passageira, temporária, fruto de uma crise econômica. Quando o crescimento econômico é retomado, aqueles empregos que haviam desaparecido são novamente criados.
O que estamos verificando nos dias de hoje é, a par desse fenômeno, outro completamente distinto, o da liquidação do emprego. Empregos desaparecem com o uso de novas tecnologias. São empregos que jamais voltarão, mesmo com um grande crescimento econômico. Aliás, já se cunhou uma expressão para definir esse novo fenômeno: “crescimento sem emprego”. Uma comparação entre os dados de 100 ou 200 anos atrás como os de hoje do número de trabalhadores ocupados no processo produtivo, na agricultura e na indústria, mostra o quanto diminuiu a quantidade de trabalhadores, a porcentagem de trabalhadores ocupados na produção. Esta comparação mostra como os homens estão sendo expulsos do setor produtivo, sendo substituídos pela máquina.
Pensava-se, até certo tempo atrás, que isto não representava um grande problema porque o setor de serviços absorveria este contingente expulso da produção. No entanto, verificamos hoje que mesmo este setor está sendo invadido por novas tecnologias, ocupando, cada vez mais, uma quantidade menor de pessoas. É o que observa, por exemplo, Rifkin (1995).
Não são poucos os que se debruçaram sobre esta questão, propondo soluções. Diminuir a jornada de trabalho para ocupar dois trabalhadores onde se ocupa apenas um é uma delas (Aznar, 1995).
Não vamos discutir aqui estas propostas. Queremos apenas ressaltar que há algo em comum entre a maioria dos autores que fizeram diferentes propostas: é que quase todos trabalham com a idéia de que os empregos jamais voltarão, que o retorno a uma situação próxima do pleno emprego é algo inviável. Os governos trabalham hoje com um cenário com um alto índice de desemprego.
Este parece ser o grande desafio que se apresenta para o futuro. Saber se estamos em condições de enfrentar esta questão constitui um dos aspectos desta exposição. Daí a importância do debate em torno do Manifesto do Partido Comunista, uma obra que influenciou decisivamente a história ao longo dos últimos cento e cinqüenta anos e que muitos ainda teimam em fazer que continue a influenciar.
A publicação dessa pequena grande obra provocou uma imensa revolução na história. Pode-se mesmo dizer que há uma história anterior ao Manifesto e outra que lhe é posterior. Na verdade, esta obra foi um divisor de águas. Depois dele, a história nunca mais foi a mesma.
Publicado no mesmo momento em que o proletariado aparece no cenário político como classe independente, não a reboque de outras classes, mas com reivindicações próprias, o Manifesto nasce indissoluvelmente vinculado ao movimento operário e à exigência de uma transformação radical da sociedade burguesa. Deste modo, o marxismo - já que falar do Manifesto é falar do marxismo - surge em função de determinadas contingências históricas e é por elas explicado.
Em decorrência disso, as vicissitudes por que passa o marxismo dizem respeito ao próprio processo histórico, ao movimento operário, à ação dos partidos operários, às formulações dos intelectuais de esquerda e, por que não o dizer, à própria luta de classes que, a partir de Marx, adquire cada vez mais, uma nova configuração.
Para Marx, as condições históricas que conduziriam à superação da sociedade burguesa tinham sido produzidas por esta mesma sociedade. Aliás, as relações burguesas teriam dois momentos. O primeiro quando, partindo das condições herdadas do mundo feudal, estas relações teriam impulsionado as forças produtivas a um grau jamais visto. O segundo, quando estas relações começavam a travar o desenvolvimento das forças produtivas. De condição para o progresso histórico, as relações capitalistas haviam se tornado um entrave.
Assim, o capitalismo teria seus dias contados não por causa da miséria que havia provocado na classe operária, mas, contraditoriamente, pela imensa riqueza que havia criado, riqueza que as relações burguesas comportavam com muito custo. Pela primeira vez na história, as crises decorriam não devido à carência, mas à abundância. As crises eram de superprodução. Produzia-se mais do que se podia consumir.
Após ter analisado a revolta das forças produtivas contra as relações burguesas de produção, Marx e Engels tratam da classe que dirigiria esta revolta, o proletariado:
As armas que a burguesia utilizou para abater o feudalismo voltam-se hoje contra a própria burguesia.
A burguesia, porém, não forjou somente as armas que lhe darão morte; produziu também os homens que manejarão essas armas - os operários modernos, os proletários (Marx e Engels, 1977: 26).
A ação do proletariado, ainda que impulsionada pela exploração a que este estava submetido, não tinha, segundo Marx e Engels, a finalidade de instaurar o reino da justiça. A revolução socialista não seria a redenção da humanidade, mas a forma de liberar as forças produtivas dos entraves em que haviam se convertido as relações burguesas. A sociedade socialista seria, deste modo, condição do progresso social.
Mas, ao formular sua doutrina, Marx adiciona um novo ingrediente à luta de classes, qual seja, o objetivo a ser alcançado ou a ser evitado. Marx torna a história consciente ao anunciar que a transformação social constituía um momento do processo histórico.
Consideremos duas épocas históricas, dois exemplo, para tentar deixar isso claro.
Conta-se que, no limiar da Revolução francesa, os aristocratas abraçavam a fisiocracia acreditando que esta doutrina era uma apologia do proprietário de terras, uma defesa da forma feudal. Não se davam conta de que nela estava inscrita a verdadeira natureza da Revolução, indicando o que deveria ser feito, enfim, o programa da revolução, como observou mais tarde Tocqueville (1979: 146). Os iluministas, por seu turno, eram recebidos nos salões aristocratas onde expunham suas idéias e conseguiam novos adeptos. Era a filosofia da moda, reis e príncipes abriam suas portas aos filósofos sem se aperceberem que por elas entravam os teóricos da revolução que iria destruir palácios e castelos. Os aristocratas iam ao teatro e divertiam-se com as peripécias do barbeiro, personagem de Beaumarchais, que atacava a nobreza contrapondo o talento à condição de nascimento, ao título, ao sangue. Os aristocratas caminhavam inconscientes para o cadafalso.
Com o marxismo tudo se passa de forma distinta. Quando Marx afirmou que os homens faziam a história, mas não sabiam a história que estavam fazendo, quis dizer que a partir das suas formulações os homens tinham consciência da história que estavam fazendo.
Muitos julgaram que a doutrina marxista estava equivocada porque Marx errara em suas previsões. Evidentemente, Marx não pretendia prever nada. Concluiu pela tendência para o socialismo em função das lutas sociais que eram travadas em sua época e em função de sua análise da sociedade burguesa. Marx não se equivocou. Antes, acertou. Seu acerto foi, no entanto, seu calcanhar de Aquiles, o calcanhar de Aquiles do marxismo. Justamente por ter desvendado o mecanismo de funcionamento da sociedade burguesa, justamente porque a doutrina de Marx constitui uma compreensão da sociedade burguesa, justamente por ter desvendado o segredo da história, dando à luta de classes uma dimensão histórica nunca vista, justamente tudo isto impôs à burguesia uma atitude defensiva e, contraditoriamente, uma atitude ofensiva. Em uma carta, Engels brinca com Marx dizendo que este havia mostrado à burguesia que a economia política era perigosa, revolucionária. Disse uma grande verdade. Também em carta de 14 de outubro de 1868, Engels relata à Marx que, em Gladbach, os fabricantes de tecidos de algodão haviam compreendido que a jornada de trabalho era demasiadamente longa e que, então, tinham criado uma associação para reduzi-la de 13 para 12 horas. E, observando que isso era para começar, comenta: “Como podes ver, teu livro já está agindo efetivamente até na burguesia” (Marx e Engels, 1974: 185).
A partir de então, e cada vez mais, a luta de classes adquire uma nova configuração. Não se trata mais de um conflito de classes em que estas desconhecem o rumo que a história poderia tomar ou que sequer intuem para onde a luta as levará. Não é casual, por exemplo, que tenha sido Tocqueville um dos autores que tenha colocado as questões de sua época de forma clara. Em seu estudo sobre a Revolução Francesa faz o seguinte comentário, ao mostrar que o processo revolucionário estava em curso, mas que ninguém se dava conta: “Admiramo-nos muitas vezes ao ver a estranha cegueira com a qual as altas classes do antigo regime ajudaram a própria ruína” (1979: 137). Tocqueville pode fazer esse comentário, pois se trata de duas épocas distintas, a da própria revolução, quando os homens não sabiam a história que estavam fazendo, e a sua, quando observa que se estava caminhando para o abismo da revolução (1977: 587).
Com o Manifesto, não apenas a guerra entre capital e trabalho foi declarada, uma guerra aberta, clara, como colocou os contendores em um outro patamar. A burguesia passou a conhecer os perigos que corria. São muitos, inclusive, os autores que observaram que as condições sociais e políticas haviam-se alterado o suficiente para exigir uma nova política por parte de todos.
Como em uma guerra, os contendores movimentam-se de acordo com os movimentos do inimigo. Por isso, após um primeiro momento de recusa e de ignorância (no sentido de desconhecer o alcance do problema), a burguesia teve a necessidade de responder aos ataques do proletariado. Isto modificou o curso da história.[3]
A burguesia, porque a revolução constituía uma ameaça concreta, não descurou da luta de classes. A perspectiva ou ameaça do socialismo obrigou-a, diante da pressão do movimento operário, a fazer concessões, a fim de evitar a convulsão social. É verdade que a burguesia teve uma atitude pendular diante do movimento operário e revolucionário, ora fazendo concessões, ora valendo-se da repressão, da violência, quando não das duas ao mesmo tempo. Talvez Tocqueville seja um autor importante também nesta questão. Para este, a tendência à igualdade era um processo inevitável. Ao invés de se lutar contra ela ou então ignorá-lo, dever-se-ia tentar dirigir este processo para que não caísse em mãos erradas, dando-lhe uma direção perigosa. Já na introdução de A democracia na América, observa que o movimento que impelia os povos cristãos em direção à igualdade era já demasiado rápido para ser contido, mas não o bastante para que se perdesse as esperanças de ser dirigido (Tocqueville, 1977: 14).
No entanto, a reação burguesa não é suficiente para explicar os desdobramentos históricos, o curso que a história tomou. Pode-se dizer que a burguesia fez o que deveria ter feito e se esperava que fizesse. A questão está no outro campo. É preciso destacar que o próprio movimento operário e sindical, os próprios partidos de esquerda, os próprios intelectuais contribuíram para a sustentação da sociedade burguesa. Aqueles que supostamente deveriam estar empenhados na revolução têm sua responsabilidade na manutenção desta sociedade.
Marx, Engels e Lênin, apenas para nomear os grandes nomes da revolução proletária, travaram uma luta tenaz, no seio do próprio movimento operário e da esquerda, contra as tendências que estavam mais empenhadas na conciliação e nas reformas do que na revolução socialista. Textos como Crítica ao Programa de Gotha, Que fazer?, O Imperialismo, para citar apenas alguns, são suficientemente conhecidos para se concluir que nem todos os que se colocavam ao lado do proletariado estavam dispostos a fazer uma revolução. O renegado Kautsky, o revisionista Bernstein, são epítetos que marcaram para sempre a atuação reformista, contra-revolucionária, de alguns líderes do movimento operário. Cabe observar aqui a mudança que se verificou no debate político entre as épocas de Marx e Engels e a de Lenin. Se os primeiros combateram autores que apresentavam propostas para o movimento operário oriundas do seio da pequena burguesia, como era o caso de Proudhon e During, Lenin travou uma luta no próprio seio do marxismo, contra aqueles que pretendiam revisá-lo.
Marx e Engels também não pouparam críticas ao movimento operário. A correspondência entre ambos, além dos escritos publicados, está repleta de opiniões desfavoráveis acerca da classe operária. Em carta de 7 de Outubro de 1858, endereçada à Marx, Engels observa que o proletariado inglês aburguesava-se cada dia mais. De acordo com ele, a mais burguesa de todas as nações, aspirava ter, ao lado da burguesia, uma aristocracia burguesa e um proletariado burguês. Também em cartas dirigidas a outros líderes do movimento operário, Engels criticou o movimento proletário. Em carta a Kautsky, datada de 12 de Setembro de 1882, Engels afirma que os trabalhadores ingleses pensavam da política colonial o mesmo que pensavam da política em geral, qual seja, pensavam exatamente o que pensavam os burgueses. Acrescenta que na Inglaterra não existia mais partido operário, mas conservadores e radicais liberais (Marx e Engels, 1974: 243). Isto mostra que ambos viam a classe operária como uma classe que pertencia à sociedade burguesa. Por conseguinte, como uma classe capaz de ter atitudes e posições burguesas ou pequeno-burguesas. Consequentemente, não a encaravam como uma classe naturalmente revolucionária. Lenin, em sua obra sobre o imperialismo, observava que a camada de operários aburguesados ou, como os chamava, de “aristocracia operária”, era o principal apoio social da burguesia (Lenin, 1960: 815).
O fato de a revolução ter ocorrido em um país atrasado, como a Rússia, já é um elemento fundamental para atestar que a história havia adquirido uma nova direção após o surgimento do marxismo. Com efeito, Marx, coerente com suas formulações, acreditava que a revolução ocorreria nos países capitalistas mais avançados, principalmente Inglaterra e França. Afinal, era nestes países que o capitalismo estava mais desenvolvido, a riqueza havia atingido um alto grau de concentração. A circunstância da revolução rebentar em um país pouco desenvolvido comparativamente à Europa ocidental, como era o caso da Rússia, levou muitos a afirmarem que a teoria marxista estava equivocada. Os defensores do marxismo e da revolução procuraram, no entanto, explicar a revolução russa à luz da doutrina de Marx. A teoria do elo mais fraco (Lenin, 1960) e do desenvolvimento combinado (Trotsky, 1967) pretendem explicá-la validando o marxismo.
Entretanto, mais do que confirmar a validade do marxismo, acredito que este acontecimento mostra-nos, de fato, que a história tinha adquirido uma direção nova. Deste acontecimento podemos tirar duas conclusões.
A primeira, perfeitamente compreensível, é que a Revolução russa serviu como uma espécie de alerta à burguesia. Se até então a revolução era apenas uma ameaça teórica, digamos assim, ela passou a ser uma ameaça concreta. Revelou, então, que se tratava de uma ameaça perfeitamente factível. Isto impôs à burguesia um cuidado ainda maior nas questões políticas.
A segunda conclusão é que ela deveria ter sido uma espécie de aviso ao movimento operário, alertando que a história havia mudado seu curso. Com efeito, Marx acreditava que o cenário da revolução seria a Europa ocidental. Mas, foi justamente porque estava correto em sua apreciação que ela não ocorreu aí. Nestes países, a luta de classes conduziu a história para outros caminhos. A burguesia fez concessões. Cooptou parcela do movimento operário, dos partidos de esquerda e dos próprios intelectuais, que lhe emprestaram seu apoio político. Formou-se o que Lenin chamou de aristocracia operária. No plano teórico, esta conciliação de classes deu origem às revisões do marxismo. Mas, por que a revolução foi conjurada nos países mais desenvolvidos, a crise fez com que a corrente se rompesse no elo mais fraco e não no que estava mais maduro para romper.
Por outro lado, a formulação da necessidade de uma revolução social não implica que esta venha, de fato, ocorrer. Não existe automaticidade em história. Afinal de contas, são os homens os responsáveis por seus atos. Como observou Locke, “La felicidad y la desgracia del hombre son, en grande parte, su propria obra” (Locke, 1986: 31). Para que algo aconteça é necessária a ação política dos homens. Mas a ação política, no caso em questão, tanto poderia levar à derrocada da sociedade burguesa quanto à sua conservação. A história revelou que, no caso dos países desenvolvidos do Ocidente, o proletariado agiu no sentido de se conservar como classe - é certo que arrancando concessões e impondo condições à burguesia - e, com isto, contribuiu para a sustentação da sociedade burguesa. Ao recusar a morte, o proletariado deu nova vida à sociedade capitalista.
A própria situação do proletariado explica a conciliação. Para Marx, o operariado não era intrinsecamente uma classe revolucionária. Ele possuía uma dupla face. De um lado, como produto da sociedade burguesa e como classe ligada a esta sociedade, a classe operária era uma classe que vendia uma mercadoria, mercadoria especial, é verdade, mas uma mercadoria. Sob este aspecto, era uma classe que, na luta econômica, não contestava as relações capitalistas. Antes, reforçava-a, pois sua luta não estava dirigida contra a sociedade burguesa, cuja base era a venda da força de trabalho. Era uma luta que se travava no seu interior, em torno do valor desta força de trabalho. Protestava-se não contra a venda de trabalho, mas contra o valor desta venda. Era enquanto compradores e vendedores da força de trabalho que capitalistas e operários se defrontavam. Deve-se ressaltar que este conflito já estava inscrito como um dos elementos componentes da sociedade burguesa. Para confirmar isto, basta considerar as obras de Adam Smith e David Ricardo quando tratam de definir o que é salário e o que é lucro. Em sua análise, Ricardo (1985: 39) parte não apenas da existência das classes na sociedade como do fato de existir entre as mesmas um conflito de interesses. Smith (1985: 91), por seu turno, no capítulo dedicado aos salários do trabalho, mostra que capital e trabalho encontram-se em campos opostos e que a organização da classe operária é fundamental para a própria existência da sociedade burguesa. O conflito entre capital e trabalho em torno do valor da força de trabalho é, pois, inerente à sociedade burguesa e lhe dá sustentação.
Mas, como observou Marx, a burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente a produção. A concorrência obriga-a a isso. Em virtude disso, durante este período a produção burguesa desenvolveu-se prodigiosamente.
Amparada pelo apoio político concedido pelo próprio movimento proletário ao longo destes 150 anos, a sociedade capitalista atingiu, hoje, uma situação distinta da descrita por Marx e da qual este esperava por uma revolução. As forças produtivas alcançaram um grau de desenvolvimento tão grande no interior da sociedade capitalista que não apenas mudou a configuração das classes como provocou uma curiosa inversão. Para Marx, o socialismo seria a forma social capaz de herdar a riqueza criada pela sociedade burguesa e mesmo desenvolvê-la. Com a derrocada do socialismo, assistimos a adoção de relações baseadas na propriedade privada para promover o desenvolvimento das forças produtivas que estavam contidas pelo socialismo. É o caso de grande parte das indústrias da Alemanha Oriental, que foram abandonadas justamente porque o custo da sua modernização era superior ao seu completo abandono.
Atualmente e cada vez mais, o trabalho, os empregos desaparecem. A máquina, a robótica, a informatização expulsam cada vez mais os homens da produção. Aliás, o aspecto trágico disso tudo é que é preciso expulsar os homens da produção para aumentar a produtividade do trabalho. O proletariado torna-se uma classe cada vez menor. Em troca, graças à grande produtividade do trabalho, uma parcela cada vez menor de trabalhadores consegue produzir para uma parcela cada vez maior que se encontra fora da produção. O peso específico da classe operária na sociedade diminui incessantemente.
Há uma corrente historiográfica bastante conhecida que trata da luta de determinados segmentos sociais contra a maquinaria durante a Revolução Industrial. Esta historiografia, inglesa em sua maior parte, mostra-nos o quão difícil foi fazer com que se aceitasse as novas relações de trabalho, as novas condições de existência fundadas na maquinaria, enfim, as relações burguesas. Com efeito, a formação de novos hábitos de trabalho constituiu uma imensa dificuldade. Como observa Thompson, “a transição para uma sociedade industrial desenvolvida exigiu uma severa reestruturação dos hábitos de trabalho - novas disciplinas, novos incentivos, e uma nova natureza humana” (Thompson, 1987: 109). Mostra-nos, além disso, que aqueles que se opunham à mecanização da produção consideravam-na como contrária à natureza humana. Freqüentemente esta historiografia tomou partido destes movimentos de resistência. Não deixa de ser curioso que vivamos hoje uma situação completamente oposta. Este mundo que foi tão difícil de ser implantado e que hoje encontra-se ameaçado de desaparecer, é-nos apresentado como sendo a essência do homem, como se fizesse parte da nossa natureza sermos trabalhadores.[4] Esquecemos que esta condição, contra a qual lutamos no passado, é produto da história e, como tal, tende desaparecer. Antes, resistia-se à criação de um mundo de trabalhadores industriais. Hoje também se resiste, mas com o intuito de manter exatamente este mundo de trabalhadores. Antes, não se admitia um mundo de trabalhadores industriais. Hoje, não se admite um mundo sem trabalhadores industriais. Antes, a máquina era um fator de alienação, hoje é considerada condição de existência. Antes, a relação era de exploração, hoje é emprego. A exigência de um mundo composto de trabalhadores torna-se, assim, obsoleta. A História é, realmente, uma deusa irônica e implacável.
A história tem seu lado irônico. Há pouco menos de duzentos anos, homens lutaram contra a tendência de transformá-los em trabalhadores, em empregados. Lutaram contra a máquina que destruía o artesanato e contra a fábrica que criava o proletariado. A historiografia ocupou-se bastante deste tema. Ainda há pouco fazia a apologia desta resistência. Exaltou os movimentos que combatiam a tendência a transformar os homens em trabalhadores, tratando como anti-natural a fábrica, como algo imposto. Mas hoje esta historiografia também faz parte da história. Ela não pode mais fazer a apologia da luta contra a constituição do trabalhador porque nos dias de hoje a reivindicação é justamente pela manutenção do homem como trabalhador.
O fato é que a sociedade burguesa ganhou fôlego, conseguindo dar às condições econômicas um grande desenvolvimento, a ponto de promover, tendencialmente falando, a eliminação do trabalhador, substituindo-o pela máquina, tornando a classe operária não só diminuta como fazendo com que tivesse acesso, nos países mais desenvolvidos, em grande escala, nos menos desenvolvidos, em uma escala menor, aos bens materiais. A constatação desses fatos impõe uma reflexão.
O cenário descrito por Marx no Manifesto como propício à revolução não existe mais, foi superado. Com efeito, para Marx, a tendência da sociedade capitalista era sua divisão em duas grandes classes. Uma, sempre decrescente, a dos que detinham a propriedade. A outra, a dos que nada possuíam, sempre em aumento, acrescida, inclusive, por elementos que, possuindo conhecimentos, eram arruinados pela concorrência. O resultado seria a formação de uma grande classe que nada possuísse e que se encontrasse em posição de negação de uma sociedade de cuja afluência não participava. Formar-se-ia uma classe que nada tinha a perder com a revolução, mas tudo a ganhar. Poderíamos subscrever isto hoje?
O Manifesto não é atual sequer para os movimentos populares e de esquerda. Que agrupamento político ou partido defende, de fato, os princípios do marxismo? Vejamos. Marx destacou e celebrou o processo de socialização promovido pela sociedade burguesa, processo de socialização jamais visto na história. Pode-se dizer que Marx foi um verdadeiro apologista da grande indústria, da grande propriedade, do trabalho coletivizado, bases de uma nova sociedade. Marx via na máquina, portanto, na grande indústria, não apenas o ponto de partida da libertação do operário da exploração capitalista, mas da própria liberação do homem do trabalho. Marx, portanto, não subscreveria qualquer proposta de reforma agrária. Seu mundo era o mundo da grande propriedade mecanizada.
Marx sempre ressaltou o caráter cosmopolita que a burguesia imprimiu e continuava a imprimir à sociedade, caráter que, diga-se de passagem, ele encarou positivamente. Assim, diante das exigências não apenas de parcela do movimento operário, sindical e mesmo dos partidos de esquerda que reivindicam um Estado protetor da indústria nacional, como não chegar à conclusão que o Manifesto perdeu sua atualidade?
Vejamos, pois, dois trechos desta obra que mostram a tendência ao cosmopolitismo do capitalismo:
Pela exploração do mercado mundial a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou à indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a sê-lo diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para as nações civilizadas, indústrias que não empregam mais matérias-primas autóctones, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não somente no próprio país mas em todas as partes do globo. Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolvem-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto a produção material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura universal (Marx e Engels, 1977: 24-5).
Ainda mais uma vez Marx e Engels:
As demarcações e os antagonismos nacionais entre os povos desaparecem cada vez mais com o desenvolvimento da burguesia, com a liberdade de comércio e o mercado mundial, com a uniformidade da produção industrial e as condições de existência que lhes correspondem (Idem, ibidem: 35).
Marx não exaltou o papel revolucionário da burguesia somente no passado, quando ela destruiu os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal aos seus “superiores naturais”, conforme frase sua, simplificando as relações sociais. Marx exaltou este papel também na sua época. Não teve pruridos em considerar com bons olhos a ação do capital contra formas atrasadas de existência. Tudo, é claro, tendo em vista a revolução. Dois exemplos são bastante conhecidos.
Na disputa entre protecionistas e livre-cambistas, Marx, em 1848, escreveu um rascunho preparatório de um discurso. Nele lemos:
Pero los proteccionistas dirán: “Por lo menos, nosotros mantenemos el estado actual de la sociedad. Bien o mal, aseguramos al obrero ocupación para sus brazos e impedimos que la competencia del extranjero le arroje a la calle.”
No pretendo refutar esta afirmación. La acepto, sin más. Así, pues, el mejor resultado a que llegarían los proteccionistas sería el mantenimiento, la conservación del actual estado de cosas. Está bien, pero lo que a la clase obrera le interesa no es mantener el estado de cosas actual, sino transformarlo en lo contrario de lo que es (Marx e Engels, 1966: 322).
Já no discurso, pronunciado na Associação Democrática de Bruxelas, Marx não deixa dúvidas quanto à sua opinião sobre o protecionismo. Afirma ser o protecionismo conservador e a livre-troca destruidora. Esta desintegraria as antigas nacionalidades e levaria às últimas conseqüências o antagonismo entre burguesia e proletariado. O sistema de liberdade de comércio aceleraria a revolução social. Por isso, Marx colocava-se a favor da liberdade de comércio (Idem: 324-5).
Na questão da Índia, em artigos de 1853, sabe-se muito bem, Marx colocou-se abertamente do lado da indústria britânica que destruiu a base econômica de uma existência milenar. Encarava o vapor inglês e a liberdade de comércio inglesa uma maneira dolorosa de realizar uma revolução no estado social da Índia, fazendo-a adentrar no mercado mundial. Marx não lamentou a destruição de um mundo imutável. Ao contrário, terminou seu artigo afirmando que, por mais penoso que fosse para os nossos sentimentos pessoais o espetáculo de um velho mundo que se esboroava, do ponto de vista histórico poder-se-ia citar Goethe:
Quem lamenta os estragos
se os frutos são prazeres?
Tamarleão em seu reinado
não esmagou milhares de seres? (Marx e Engels, 1966: 291).
Em outro artigo sobre a Índia, também do mesmo ano, Marx escreveu:
Os devastadores efeitos da indústria inglesa na Índia [...] são evidentes e aterradores. Mas não devemos esquecer que esses efeitos não passam do resultado orgânico de todo o atual sistema de produção. Essa produção repousa no domínio supremo do capital. A centralização do capital é indispensável à existência do capital como poder independente. Os efeitos destruidores dessa centralização sobre os mercados do mundo não fazem senão demonstrar em proporções gigantescas as leis orgânicas imanentes da economia política, vigentes na atualidade para qualquer cidade civilizada. O período burguês da história está chamado a assentar as bases materiais de um novo mundo: a desenvolver, de um lado, o intercâmbio universal, baseado na dependência mútua do gênero humano, e os meios para realizar esse intercâmbio; e, de outro, desenvolver as forças produtivas do homem e transformar a produção material num domínio científico sobre as forças da natureza. A indústria e o comércio burgueses vão criando essas condições materiais de um novo mundo [...] (Idem: 297).
Podemos afirmar, sem receio de parecer temerário, que as idéias gerais que norteiam o pensamento de Marx estão mais próximas dos que defendem uma situação de concorrência mundial do que das idéias dos que reivindicam o estabelecimento de fronteiras econômicas, que propugnam o parcelamento da propriedade da terra, inviabilizando o uso industrial do solo, e a conservação dos empregos, ainda que às custas do progresso.
Hoje a revolução socialista tornou-se coisa do passado. Por conseguinte, o Manifesto, que surgiu para esclarecer o proletariado na sua luta contra o capital, também tornou-se coisa do passado. Como se pode ver, em nossa análise do marxismo, procuramos situá-lo na história, como um produto seu. Não se trata, pois, de “desvaliar o patrimônio político e intelectual marxiano” (Chasin, 1987: 16), mas de avaliar o marxismo em sua historicidade.
Podemos, portanto, concluir que passou a época em que se colocava aos homens o socialismo como perspectiva histórica. Hoje não existe outra alternativa senão lutar para romper com os entraves que obstaculizam o desenvolvimento da sociedade: os interesses corporativos, as formas atrasadas do capital que necessitam da proteção do Estado, aqueles que se opõe à modernização da economia e assim por diante. Temos que lutar contra as forças presas ao passado sem saber como será o futuro. Mais do que nunca, nos dias de hoje, é bastante atual um antigo ditado espanhol: Caminhante, não existe caminho; o caminho se faz ao andar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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REIS FILHO, Daniel Aarão (org.) O Manifesto Comunista 150 anos depois. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998.
[1] Professor do Departamento de História da FCL – UNESP – Campus de Assis.
[2] Não iremos polemizar com estes autores. Na bibliografia, arrolaremos algumas publicações, de brasileiros, que escreveram sobre o tema. Dentre os textos publicados, merece um destaque especial o de Rubens Ricupero (1988), intitulado “Marx, o profeta da globalização”, pela sua grande sensibilidade histórica.
[3] Não são poucos os autores que observaram esse fato. Thurow é um deles: “Os ricos eram mais espertos do que Marx pensava. Eles compreenderam que sua própria sobrevivência prolongada dependia da eliminação de condições revolucionárias – e o fizeram.” (Thurow, 1997: 17).
[4] Observa Bridges que “o emprego moderno foi uma nova idéia assustadora – para muitas pessoas, uma idéia desagradável e até mesmo socialmente perigosa. Seus críticos afirmavam que era um modo antinatural e até desumano de se trabalhar. Previam que a maioria das pessoas não seria capaz de conviver com suas exigências” (Bridges, 1995: XIV-XV).
Claudinei Magno Magre Mendes[1]
RESUMO
O debate em torno da atualidade do marxismo não pode ignorar as lutas políticas travadas a partir da publicação do Manifesto do Partido Comunista. Também não pode ignorar que, em muitas circunstâncias, o próprio movimento operário, os partidos operários e os intelectuais de esquerda combateram o marxismo e o socialismo, dando sustentação política ao capitalismo. Marx, Engels e Lênin, por exemplo, polemizaram mais com os movimentos de esquerda do que com os partidários da burguesia. É necessária, pois, uma reflexão que dê a cada um sua responsabilidade pelo atual momento político.
UNITERMOS
Marxismo; Socialismo; Revisionismo.
REFLEXIONS ON MARXISM. THE COMMEMORATIONS OF THE HUNDRED AND FIFTY YEARS OF THE COMUNIST MANIFEST
ABSTRACT
The debat about the present time of the marxism can't ignore the political struggles occurred from on the publication of the Comunist Manifest. Also we can't ignore that, in many circumstances, the laborer movement, the laborer parties and the left intellectuals combated the marxim and the socialism, giving political maintenance to the capitalism. Marx, Engels and Lenin, for example, discussed more against the left movement than against the partisans of the bourgeoisie. It is necessary, therefore, a reflection that give to each his responsability for the present historical circumstances.
KEYWORDS
Marxism; Socialism; Revisionism.
Durante o ano de 1998, a propósito dos cento e cinqüenta anos da publicação do Manifesto do Partido Comunista, foram publicados trabalhos tratando, de um modo geral, da questão da atualidade desta obra e, por extensão, do próprio marxismo. É verdade que muitos deles, ao invés de recorrerem à história para aferir a vitalidade e a permanência do Manifesto, preferiram o caminho da quase apologia, ressaltando o caráter científico do marxismo. Retiraram o Manifesto da história, contrariando, inclusive, a maior de todas as lições de Marx, qual seja, a formulação de que tudo que é humano é histórico. Mas, mesmo aqueles autores que recorreram à história para considerar o Manifesto, fizeram de tal forma que tornaram essa obra e, por conseqüência, o próprio marxismo, uma doutrina acima da própria história, baseando-se fundamentalmente na idéia de que, enquanto existir capitalismo, essa doutrina e o socialismo terão sua validade.[2] No entanto, a história sofreu mudanças suficientemente profundas para colocar em causa a própria eficácia do marxismo. Este constitui o tema desse artigo.
Não se deve ignorar que o debate em torno do Manifesto do Partido Comunista e, por conseguinte, do marxismo, é extremamente importante nos dias de hoje. Não se trata apenas de refletir acerca de uma doutrina que mudou, verdadeiramente, a face do mundo. Trata-se, também, de fazer uma reflexão acerca dos rumos que a história está tomando atualmente. Nosso futuro depende, em grande medida, do modo como olhamos o passado e encaramos o presente. Isso inclui, indubitavelmente, a maneira como consideramos o próprio marxismo.
Atualmente, novas questões estão sendo colocadas, como a do desemprego tecnológico, que precisam ser consideradas de um ângulo novo, distinto daquele freqüentemente utilizado. Trata-se, à primeira vista, de um problema antigo. Com efeito, a Economia Política já nos havia alertado, em princípios do século XIX, através de Sismondi (1971) e Ricardo (1985), por exemplo, para o fato maquinaria tornar o homem dispensável do processo de produção. Ela criava, como observou Ricardo, uma população redundante.
Este problema foi atenuado por duas circunstâncias. Uma, que predominou no século XIX, especialmente na sua segunda metade, e no início do XX, que foi a emigração. O deslocamento de imensos contingentes populacionais dos países velhos para os novos países desafogou a Europa e atenuou o problema do desemprego (Queiroz, 1979). Esta forma de resolver o problema esgotou-se a partir do momento em que as novas regiões foram ocupadas e os novos países também se industrializaram.
A segunda circunstância foi o advento do socialismo, culminando com a Guerra Fria. Durante este período, os governos empenharam-se em atenuar o problema do desemprego através de medidas sociais e mesmo da criação artificial de empregos.
Entretanto, o problema do desemprego adquiriu nova feição, já que as condições históricas são outras. De fato, com o fim do socialismo e da Guerra Fria, com o fim da ameaça de uma revolução e, principalmente, com o uso intensivo da tecnologia, a sociedade está sendo obrigada a encarar a questão do desemprego de uma maneira completamente distinta.
Na verdade, fala-se em desemprego, mas é preciso estabelecer uma diferença entre o desemprego propriamente dito e a nova situação que está sendo criada.
Por desemprego poderíamos entender uma situação passageira, temporária, fruto de uma crise econômica. Quando o crescimento econômico é retomado, aqueles empregos que haviam desaparecido são novamente criados.
O que estamos verificando nos dias de hoje é, a par desse fenômeno, outro completamente distinto, o da liquidação do emprego. Empregos desaparecem com o uso de novas tecnologias. São empregos que jamais voltarão, mesmo com um grande crescimento econômico. Aliás, já se cunhou uma expressão para definir esse novo fenômeno: “crescimento sem emprego”. Uma comparação entre os dados de 100 ou 200 anos atrás como os de hoje do número de trabalhadores ocupados no processo produtivo, na agricultura e na indústria, mostra o quanto diminuiu a quantidade de trabalhadores, a porcentagem de trabalhadores ocupados na produção. Esta comparação mostra como os homens estão sendo expulsos do setor produtivo, sendo substituídos pela máquina.
Pensava-se, até certo tempo atrás, que isto não representava um grande problema porque o setor de serviços absorveria este contingente expulso da produção. No entanto, verificamos hoje que mesmo este setor está sendo invadido por novas tecnologias, ocupando, cada vez mais, uma quantidade menor de pessoas. É o que observa, por exemplo, Rifkin (1995).
Não são poucos os que se debruçaram sobre esta questão, propondo soluções. Diminuir a jornada de trabalho para ocupar dois trabalhadores onde se ocupa apenas um é uma delas (Aznar, 1995).
Não vamos discutir aqui estas propostas. Queremos apenas ressaltar que há algo em comum entre a maioria dos autores que fizeram diferentes propostas: é que quase todos trabalham com a idéia de que os empregos jamais voltarão, que o retorno a uma situação próxima do pleno emprego é algo inviável. Os governos trabalham hoje com um cenário com um alto índice de desemprego.
Este parece ser o grande desafio que se apresenta para o futuro. Saber se estamos em condições de enfrentar esta questão constitui um dos aspectos desta exposição. Daí a importância do debate em torno do Manifesto do Partido Comunista, uma obra que influenciou decisivamente a história ao longo dos últimos cento e cinqüenta anos e que muitos ainda teimam em fazer que continue a influenciar.
A publicação dessa pequena grande obra provocou uma imensa revolução na história. Pode-se mesmo dizer que há uma história anterior ao Manifesto e outra que lhe é posterior. Na verdade, esta obra foi um divisor de águas. Depois dele, a história nunca mais foi a mesma.
Publicado no mesmo momento em que o proletariado aparece no cenário político como classe independente, não a reboque de outras classes, mas com reivindicações próprias, o Manifesto nasce indissoluvelmente vinculado ao movimento operário e à exigência de uma transformação radical da sociedade burguesa. Deste modo, o marxismo - já que falar do Manifesto é falar do marxismo - surge em função de determinadas contingências históricas e é por elas explicado.
Em decorrência disso, as vicissitudes por que passa o marxismo dizem respeito ao próprio processo histórico, ao movimento operário, à ação dos partidos operários, às formulações dos intelectuais de esquerda e, por que não o dizer, à própria luta de classes que, a partir de Marx, adquire cada vez mais, uma nova configuração.
Para Marx, as condições históricas que conduziriam à superação da sociedade burguesa tinham sido produzidas por esta mesma sociedade. Aliás, as relações burguesas teriam dois momentos. O primeiro quando, partindo das condições herdadas do mundo feudal, estas relações teriam impulsionado as forças produtivas a um grau jamais visto. O segundo, quando estas relações começavam a travar o desenvolvimento das forças produtivas. De condição para o progresso histórico, as relações capitalistas haviam se tornado um entrave.
Assim, o capitalismo teria seus dias contados não por causa da miséria que havia provocado na classe operária, mas, contraditoriamente, pela imensa riqueza que havia criado, riqueza que as relações burguesas comportavam com muito custo. Pela primeira vez na história, as crises decorriam não devido à carência, mas à abundância. As crises eram de superprodução. Produzia-se mais do que se podia consumir.
Após ter analisado a revolta das forças produtivas contra as relações burguesas de produção, Marx e Engels tratam da classe que dirigiria esta revolta, o proletariado:
As armas que a burguesia utilizou para abater o feudalismo voltam-se hoje contra a própria burguesia.
A burguesia, porém, não forjou somente as armas que lhe darão morte; produziu também os homens que manejarão essas armas - os operários modernos, os proletários (Marx e Engels, 1977: 26).
A ação do proletariado, ainda que impulsionada pela exploração a que este estava submetido, não tinha, segundo Marx e Engels, a finalidade de instaurar o reino da justiça. A revolução socialista não seria a redenção da humanidade, mas a forma de liberar as forças produtivas dos entraves em que haviam se convertido as relações burguesas. A sociedade socialista seria, deste modo, condição do progresso social.
Mas, ao formular sua doutrina, Marx adiciona um novo ingrediente à luta de classes, qual seja, o objetivo a ser alcançado ou a ser evitado. Marx torna a história consciente ao anunciar que a transformação social constituía um momento do processo histórico.
Consideremos duas épocas históricas, dois exemplo, para tentar deixar isso claro.
Conta-se que, no limiar da Revolução francesa, os aristocratas abraçavam a fisiocracia acreditando que esta doutrina era uma apologia do proprietário de terras, uma defesa da forma feudal. Não se davam conta de que nela estava inscrita a verdadeira natureza da Revolução, indicando o que deveria ser feito, enfim, o programa da revolução, como observou mais tarde Tocqueville (1979: 146). Os iluministas, por seu turno, eram recebidos nos salões aristocratas onde expunham suas idéias e conseguiam novos adeptos. Era a filosofia da moda, reis e príncipes abriam suas portas aos filósofos sem se aperceberem que por elas entravam os teóricos da revolução que iria destruir palácios e castelos. Os aristocratas iam ao teatro e divertiam-se com as peripécias do barbeiro, personagem de Beaumarchais, que atacava a nobreza contrapondo o talento à condição de nascimento, ao título, ao sangue. Os aristocratas caminhavam inconscientes para o cadafalso.
Com o marxismo tudo se passa de forma distinta. Quando Marx afirmou que os homens faziam a história, mas não sabiam a história que estavam fazendo, quis dizer que a partir das suas formulações os homens tinham consciência da história que estavam fazendo.
Muitos julgaram que a doutrina marxista estava equivocada porque Marx errara em suas previsões. Evidentemente, Marx não pretendia prever nada. Concluiu pela tendência para o socialismo em função das lutas sociais que eram travadas em sua época e em função de sua análise da sociedade burguesa. Marx não se equivocou. Antes, acertou. Seu acerto foi, no entanto, seu calcanhar de Aquiles, o calcanhar de Aquiles do marxismo. Justamente por ter desvendado o mecanismo de funcionamento da sociedade burguesa, justamente porque a doutrina de Marx constitui uma compreensão da sociedade burguesa, justamente por ter desvendado o segredo da história, dando à luta de classes uma dimensão histórica nunca vista, justamente tudo isto impôs à burguesia uma atitude defensiva e, contraditoriamente, uma atitude ofensiva. Em uma carta, Engels brinca com Marx dizendo que este havia mostrado à burguesia que a economia política era perigosa, revolucionária. Disse uma grande verdade. Também em carta de 14 de outubro de 1868, Engels relata à Marx que, em Gladbach, os fabricantes de tecidos de algodão haviam compreendido que a jornada de trabalho era demasiadamente longa e que, então, tinham criado uma associação para reduzi-la de 13 para 12 horas. E, observando que isso era para começar, comenta: “Como podes ver, teu livro já está agindo efetivamente até na burguesia” (Marx e Engels, 1974: 185).
A partir de então, e cada vez mais, a luta de classes adquire uma nova configuração. Não se trata mais de um conflito de classes em que estas desconhecem o rumo que a história poderia tomar ou que sequer intuem para onde a luta as levará. Não é casual, por exemplo, que tenha sido Tocqueville um dos autores que tenha colocado as questões de sua época de forma clara. Em seu estudo sobre a Revolução Francesa faz o seguinte comentário, ao mostrar que o processo revolucionário estava em curso, mas que ninguém se dava conta: “Admiramo-nos muitas vezes ao ver a estranha cegueira com a qual as altas classes do antigo regime ajudaram a própria ruína” (1979: 137). Tocqueville pode fazer esse comentário, pois se trata de duas épocas distintas, a da própria revolução, quando os homens não sabiam a história que estavam fazendo, e a sua, quando observa que se estava caminhando para o abismo da revolução (1977: 587).
Com o Manifesto, não apenas a guerra entre capital e trabalho foi declarada, uma guerra aberta, clara, como colocou os contendores em um outro patamar. A burguesia passou a conhecer os perigos que corria. São muitos, inclusive, os autores que observaram que as condições sociais e políticas haviam-se alterado o suficiente para exigir uma nova política por parte de todos.
Como em uma guerra, os contendores movimentam-se de acordo com os movimentos do inimigo. Por isso, após um primeiro momento de recusa e de ignorância (no sentido de desconhecer o alcance do problema), a burguesia teve a necessidade de responder aos ataques do proletariado. Isto modificou o curso da história.[3]
A burguesia, porque a revolução constituía uma ameaça concreta, não descurou da luta de classes. A perspectiva ou ameaça do socialismo obrigou-a, diante da pressão do movimento operário, a fazer concessões, a fim de evitar a convulsão social. É verdade que a burguesia teve uma atitude pendular diante do movimento operário e revolucionário, ora fazendo concessões, ora valendo-se da repressão, da violência, quando não das duas ao mesmo tempo. Talvez Tocqueville seja um autor importante também nesta questão. Para este, a tendência à igualdade era um processo inevitável. Ao invés de se lutar contra ela ou então ignorá-lo, dever-se-ia tentar dirigir este processo para que não caísse em mãos erradas, dando-lhe uma direção perigosa. Já na introdução de A democracia na América, observa que o movimento que impelia os povos cristãos em direção à igualdade era já demasiado rápido para ser contido, mas não o bastante para que se perdesse as esperanças de ser dirigido (Tocqueville, 1977: 14).
No entanto, a reação burguesa não é suficiente para explicar os desdobramentos históricos, o curso que a história tomou. Pode-se dizer que a burguesia fez o que deveria ter feito e se esperava que fizesse. A questão está no outro campo. É preciso destacar que o próprio movimento operário e sindical, os próprios partidos de esquerda, os próprios intelectuais contribuíram para a sustentação da sociedade burguesa. Aqueles que supostamente deveriam estar empenhados na revolução têm sua responsabilidade na manutenção desta sociedade.
Marx, Engels e Lênin, apenas para nomear os grandes nomes da revolução proletária, travaram uma luta tenaz, no seio do próprio movimento operário e da esquerda, contra as tendências que estavam mais empenhadas na conciliação e nas reformas do que na revolução socialista. Textos como Crítica ao Programa de Gotha, Que fazer?, O Imperialismo, para citar apenas alguns, são suficientemente conhecidos para se concluir que nem todos os que se colocavam ao lado do proletariado estavam dispostos a fazer uma revolução. O renegado Kautsky, o revisionista Bernstein, são epítetos que marcaram para sempre a atuação reformista, contra-revolucionária, de alguns líderes do movimento operário. Cabe observar aqui a mudança que se verificou no debate político entre as épocas de Marx e Engels e a de Lenin. Se os primeiros combateram autores que apresentavam propostas para o movimento operário oriundas do seio da pequena burguesia, como era o caso de Proudhon e During, Lenin travou uma luta no próprio seio do marxismo, contra aqueles que pretendiam revisá-lo.
Marx e Engels também não pouparam críticas ao movimento operário. A correspondência entre ambos, além dos escritos publicados, está repleta de opiniões desfavoráveis acerca da classe operária. Em carta de 7 de Outubro de 1858, endereçada à Marx, Engels observa que o proletariado inglês aburguesava-se cada dia mais. De acordo com ele, a mais burguesa de todas as nações, aspirava ter, ao lado da burguesia, uma aristocracia burguesa e um proletariado burguês. Também em cartas dirigidas a outros líderes do movimento operário, Engels criticou o movimento proletário. Em carta a Kautsky, datada de 12 de Setembro de 1882, Engels afirma que os trabalhadores ingleses pensavam da política colonial o mesmo que pensavam da política em geral, qual seja, pensavam exatamente o que pensavam os burgueses. Acrescenta que na Inglaterra não existia mais partido operário, mas conservadores e radicais liberais (Marx e Engels, 1974: 243). Isto mostra que ambos viam a classe operária como uma classe que pertencia à sociedade burguesa. Por conseguinte, como uma classe capaz de ter atitudes e posições burguesas ou pequeno-burguesas. Consequentemente, não a encaravam como uma classe naturalmente revolucionária. Lenin, em sua obra sobre o imperialismo, observava que a camada de operários aburguesados ou, como os chamava, de “aristocracia operária”, era o principal apoio social da burguesia (Lenin, 1960: 815).
O fato de a revolução ter ocorrido em um país atrasado, como a Rússia, já é um elemento fundamental para atestar que a história havia adquirido uma nova direção após o surgimento do marxismo. Com efeito, Marx, coerente com suas formulações, acreditava que a revolução ocorreria nos países capitalistas mais avançados, principalmente Inglaterra e França. Afinal, era nestes países que o capitalismo estava mais desenvolvido, a riqueza havia atingido um alto grau de concentração. A circunstância da revolução rebentar em um país pouco desenvolvido comparativamente à Europa ocidental, como era o caso da Rússia, levou muitos a afirmarem que a teoria marxista estava equivocada. Os defensores do marxismo e da revolução procuraram, no entanto, explicar a revolução russa à luz da doutrina de Marx. A teoria do elo mais fraco (Lenin, 1960) e do desenvolvimento combinado (Trotsky, 1967) pretendem explicá-la validando o marxismo.
Entretanto, mais do que confirmar a validade do marxismo, acredito que este acontecimento mostra-nos, de fato, que a história tinha adquirido uma direção nova. Deste acontecimento podemos tirar duas conclusões.
A primeira, perfeitamente compreensível, é que a Revolução russa serviu como uma espécie de alerta à burguesia. Se até então a revolução era apenas uma ameaça teórica, digamos assim, ela passou a ser uma ameaça concreta. Revelou, então, que se tratava de uma ameaça perfeitamente factível. Isto impôs à burguesia um cuidado ainda maior nas questões políticas.
A segunda conclusão é que ela deveria ter sido uma espécie de aviso ao movimento operário, alertando que a história havia mudado seu curso. Com efeito, Marx acreditava que o cenário da revolução seria a Europa ocidental. Mas, foi justamente porque estava correto em sua apreciação que ela não ocorreu aí. Nestes países, a luta de classes conduziu a história para outros caminhos. A burguesia fez concessões. Cooptou parcela do movimento operário, dos partidos de esquerda e dos próprios intelectuais, que lhe emprestaram seu apoio político. Formou-se o que Lenin chamou de aristocracia operária. No plano teórico, esta conciliação de classes deu origem às revisões do marxismo. Mas, por que a revolução foi conjurada nos países mais desenvolvidos, a crise fez com que a corrente se rompesse no elo mais fraco e não no que estava mais maduro para romper.
Por outro lado, a formulação da necessidade de uma revolução social não implica que esta venha, de fato, ocorrer. Não existe automaticidade em história. Afinal de contas, são os homens os responsáveis por seus atos. Como observou Locke, “La felicidad y la desgracia del hombre son, en grande parte, su propria obra” (Locke, 1986: 31). Para que algo aconteça é necessária a ação política dos homens. Mas a ação política, no caso em questão, tanto poderia levar à derrocada da sociedade burguesa quanto à sua conservação. A história revelou que, no caso dos países desenvolvidos do Ocidente, o proletariado agiu no sentido de se conservar como classe - é certo que arrancando concessões e impondo condições à burguesia - e, com isto, contribuiu para a sustentação da sociedade burguesa. Ao recusar a morte, o proletariado deu nova vida à sociedade capitalista.
A própria situação do proletariado explica a conciliação. Para Marx, o operariado não era intrinsecamente uma classe revolucionária. Ele possuía uma dupla face. De um lado, como produto da sociedade burguesa e como classe ligada a esta sociedade, a classe operária era uma classe que vendia uma mercadoria, mercadoria especial, é verdade, mas uma mercadoria. Sob este aspecto, era uma classe que, na luta econômica, não contestava as relações capitalistas. Antes, reforçava-a, pois sua luta não estava dirigida contra a sociedade burguesa, cuja base era a venda da força de trabalho. Era uma luta que se travava no seu interior, em torno do valor desta força de trabalho. Protestava-se não contra a venda de trabalho, mas contra o valor desta venda. Era enquanto compradores e vendedores da força de trabalho que capitalistas e operários se defrontavam. Deve-se ressaltar que este conflito já estava inscrito como um dos elementos componentes da sociedade burguesa. Para confirmar isto, basta considerar as obras de Adam Smith e David Ricardo quando tratam de definir o que é salário e o que é lucro. Em sua análise, Ricardo (1985: 39) parte não apenas da existência das classes na sociedade como do fato de existir entre as mesmas um conflito de interesses. Smith (1985: 91), por seu turno, no capítulo dedicado aos salários do trabalho, mostra que capital e trabalho encontram-se em campos opostos e que a organização da classe operária é fundamental para a própria existência da sociedade burguesa. O conflito entre capital e trabalho em torno do valor da força de trabalho é, pois, inerente à sociedade burguesa e lhe dá sustentação.
Mas, como observou Marx, a burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente a produção. A concorrência obriga-a a isso. Em virtude disso, durante este período a produção burguesa desenvolveu-se prodigiosamente.
Amparada pelo apoio político concedido pelo próprio movimento proletário ao longo destes 150 anos, a sociedade capitalista atingiu, hoje, uma situação distinta da descrita por Marx e da qual este esperava por uma revolução. As forças produtivas alcançaram um grau de desenvolvimento tão grande no interior da sociedade capitalista que não apenas mudou a configuração das classes como provocou uma curiosa inversão. Para Marx, o socialismo seria a forma social capaz de herdar a riqueza criada pela sociedade burguesa e mesmo desenvolvê-la. Com a derrocada do socialismo, assistimos a adoção de relações baseadas na propriedade privada para promover o desenvolvimento das forças produtivas que estavam contidas pelo socialismo. É o caso de grande parte das indústrias da Alemanha Oriental, que foram abandonadas justamente porque o custo da sua modernização era superior ao seu completo abandono.
Atualmente e cada vez mais, o trabalho, os empregos desaparecem. A máquina, a robótica, a informatização expulsam cada vez mais os homens da produção. Aliás, o aspecto trágico disso tudo é que é preciso expulsar os homens da produção para aumentar a produtividade do trabalho. O proletariado torna-se uma classe cada vez menor. Em troca, graças à grande produtividade do trabalho, uma parcela cada vez menor de trabalhadores consegue produzir para uma parcela cada vez maior que se encontra fora da produção. O peso específico da classe operária na sociedade diminui incessantemente.
Há uma corrente historiográfica bastante conhecida que trata da luta de determinados segmentos sociais contra a maquinaria durante a Revolução Industrial. Esta historiografia, inglesa em sua maior parte, mostra-nos o quão difícil foi fazer com que se aceitasse as novas relações de trabalho, as novas condições de existência fundadas na maquinaria, enfim, as relações burguesas. Com efeito, a formação de novos hábitos de trabalho constituiu uma imensa dificuldade. Como observa Thompson, “a transição para uma sociedade industrial desenvolvida exigiu uma severa reestruturação dos hábitos de trabalho - novas disciplinas, novos incentivos, e uma nova natureza humana” (Thompson, 1987: 109). Mostra-nos, além disso, que aqueles que se opunham à mecanização da produção consideravam-na como contrária à natureza humana. Freqüentemente esta historiografia tomou partido destes movimentos de resistência. Não deixa de ser curioso que vivamos hoje uma situação completamente oposta. Este mundo que foi tão difícil de ser implantado e que hoje encontra-se ameaçado de desaparecer, é-nos apresentado como sendo a essência do homem, como se fizesse parte da nossa natureza sermos trabalhadores.[4] Esquecemos que esta condição, contra a qual lutamos no passado, é produto da história e, como tal, tende desaparecer. Antes, resistia-se à criação de um mundo de trabalhadores industriais. Hoje também se resiste, mas com o intuito de manter exatamente este mundo de trabalhadores. Antes, não se admitia um mundo de trabalhadores industriais. Hoje, não se admite um mundo sem trabalhadores industriais. Antes, a máquina era um fator de alienação, hoje é considerada condição de existência. Antes, a relação era de exploração, hoje é emprego. A exigência de um mundo composto de trabalhadores torna-se, assim, obsoleta. A História é, realmente, uma deusa irônica e implacável.
A história tem seu lado irônico. Há pouco menos de duzentos anos, homens lutaram contra a tendência de transformá-los em trabalhadores, em empregados. Lutaram contra a máquina que destruía o artesanato e contra a fábrica que criava o proletariado. A historiografia ocupou-se bastante deste tema. Ainda há pouco fazia a apologia desta resistência. Exaltou os movimentos que combatiam a tendência a transformar os homens em trabalhadores, tratando como anti-natural a fábrica, como algo imposto. Mas hoje esta historiografia também faz parte da história. Ela não pode mais fazer a apologia da luta contra a constituição do trabalhador porque nos dias de hoje a reivindicação é justamente pela manutenção do homem como trabalhador.
O fato é que a sociedade burguesa ganhou fôlego, conseguindo dar às condições econômicas um grande desenvolvimento, a ponto de promover, tendencialmente falando, a eliminação do trabalhador, substituindo-o pela máquina, tornando a classe operária não só diminuta como fazendo com que tivesse acesso, nos países mais desenvolvidos, em grande escala, nos menos desenvolvidos, em uma escala menor, aos bens materiais. A constatação desses fatos impõe uma reflexão.
O cenário descrito por Marx no Manifesto como propício à revolução não existe mais, foi superado. Com efeito, para Marx, a tendência da sociedade capitalista era sua divisão em duas grandes classes. Uma, sempre decrescente, a dos que detinham a propriedade. A outra, a dos que nada possuíam, sempre em aumento, acrescida, inclusive, por elementos que, possuindo conhecimentos, eram arruinados pela concorrência. O resultado seria a formação de uma grande classe que nada possuísse e que se encontrasse em posição de negação de uma sociedade de cuja afluência não participava. Formar-se-ia uma classe que nada tinha a perder com a revolução, mas tudo a ganhar. Poderíamos subscrever isto hoje?
O Manifesto não é atual sequer para os movimentos populares e de esquerda. Que agrupamento político ou partido defende, de fato, os princípios do marxismo? Vejamos. Marx destacou e celebrou o processo de socialização promovido pela sociedade burguesa, processo de socialização jamais visto na história. Pode-se dizer que Marx foi um verdadeiro apologista da grande indústria, da grande propriedade, do trabalho coletivizado, bases de uma nova sociedade. Marx via na máquina, portanto, na grande indústria, não apenas o ponto de partida da libertação do operário da exploração capitalista, mas da própria liberação do homem do trabalho. Marx, portanto, não subscreveria qualquer proposta de reforma agrária. Seu mundo era o mundo da grande propriedade mecanizada.
Marx sempre ressaltou o caráter cosmopolita que a burguesia imprimiu e continuava a imprimir à sociedade, caráter que, diga-se de passagem, ele encarou positivamente. Assim, diante das exigências não apenas de parcela do movimento operário, sindical e mesmo dos partidos de esquerda que reivindicam um Estado protetor da indústria nacional, como não chegar à conclusão que o Manifesto perdeu sua atualidade?
Vejamos, pois, dois trechos desta obra que mostram a tendência ao cosmopolitismo do capitalismo:
Pela exploração do mercado mundial a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou à indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a sê-lo diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para as nações civilizadas, indústrias que não empregam mais matérias-primas autóctones, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não somente no próprio país mas em todas as partes do globo. Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolvem-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto a produção material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura universal (Marx e Engels, 1977: 24-5).
Ainda mais uma vez Marx e Engels:
As demarcações e os antagonismos nacionais entre os povos desaparecem cada vez mais com o desenvolvimento da burguesia, com a liberdade de comércio e o mercado mundial, com a uniformidade da produção industrial e as condições de existência que lhes correspondem (Idem, ibidem: 35).
Marx não exaltou o papel revolucionário da burguesia somente no passado, quando ela destruiu os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal aos seus “superiores naturais”, conforme frase sua, simplificando as relações sociais. Marx exaltou este papel também na sua época. Não teve pruridos em considerar com bons olhos a ação do capital contra formas atrasadas de existência. Tudo, é claro, tendo em vista a revolução. Dois exemplos são bastante conhecidos.
Na disputa entre protecionistas e livre-cambistas, Marx, em 1848, escreveu um rascunho preparatório de um discurso. Nele lemos:
Pero los proteccionistas dirán: “Por lo menos, nosotros mantenemos el estado actual de la sociedad. Bien o mal, aseguramos al obrero ocupación para sus brazos e impedimos que la competencia del extranjero le arroje a la calle.”
No pretendo refutar esta afirmación. La acepto, sin más. Así, pues, el mejor resultado a que llegarían los proteccionistas sería el mantenimiento, la conservación del actual estado de cosas. Está bien, pero lo que a la clase obrera le interesa no es mantener el estado de cosas actual, sino transformarlo en lo contrario de lo que es (Marx e Engels, 1966: 322).
Já no discurso, pronunciado na Associação Democrática de Bruxelas, Marx não deixa dúvidas quanto à sua opinião sobre o protecionismo. Afirma ser o protecionismo conservador e a livre-troca destruidora. Esta desintegraria as antigas nacionalidades e levaria às últimas conseqüências o antagonismo entre burguesia e proletariado. O sistema de liberdade de comércio aceleraria a revolução social. Por isso, Marx colocava-se a favor da liberdade de comércio (Idem: 324-5).
Na questão da Índia, em artigos de 1853, sabe-se muito bem, Marx colocou-se abertamente do lado da indústria britânica que destruiu a base econômica de uma existência milenar. Encarava o vapor inglês e a liberdade de comércio inglesa uma maneira dolorosa de realizar uma revolução no estado social da Índia, fazendo-a adentrar no mercado mundial. Marx não lamentou a destruição de um mundo imutável. Ao contrário, terminou seu artigo afirmando que, por mais penoso que fosse para os nossos sentimentos pessoais o espetáculo de um velho mundo que se esboroava, do ponto de vista histórico poder-se-ia citar Goethe:
Quem lamenta os estragos
se os frutos são prazeres?
Tamarleão em seu reinado
não esmagou milhares de seres? (Marx e Engels, 1966: 291).
Em outro artigo sobre a Índia, também do mesmo ano, Marx escreveu:
Os devastadores efeitos da indústria inglesa na Índia [...] são evidentes e aterradores. Mas não devemos esquecer que esses efeitos não passam do resultado orgânico de todo o atual sistema de produção. Essa produção repousa no domínio supremo do capital. A centralização do capital é indispensável à existência do capital como poder independente. Os efeitos destruidores dessa centralização sobre os mercados do mundo não fazem senão demonstrar em proporções gigantescas as leis orgânicas imanentes da economia política, vigentes na atualidade para qualquer cidade civilizada. O período burguês da história está chamado a assentar as bases materiais de um novo mundo: a desenvolver, de um lado, o intercâmbio universal, baseado na dependência mútua do gênero humano, e os meios para realizar esse intercâmbio; e, de outro, desenvolver as forças produtivas do homem e transformar a produção material num domínio científico sobre as forças da natureza. A indústria e o comércio burgueses vão criando essas condições materiais de um novo mundo [...] (Idem: 297).
Podemos afirmar, sem receio de parecer temerário, que as idéias gerais que norteiam o pensamento de Marx estão mais próximas dos que defendem uma situação de concorrência mundial do que das idéias dos que reivindicam o estabelecimento de fronteiras econômicas, que propugnam o parcelamento da propriedade da terra, inviabilizando o uso industrial do solo, e a conservação dos empregos, ainda que às custas do progresso.
Hoje a revolução socialista tornou-se coisa do passado. Por conseguinte, o Manifesto, que surgiu para esclarecer o proletariado na sua luta contra o capital, também tornou-se coisa do passado. Como se pode ver, em nossa análise do marxismo, procuramos situá-lo na história, como um produto seu. Não se trata, pois, de “desvaliar o patrimônio político e intelectual marxiano” (Chasin, 1987: 16), mas de avaliar o marxismo em sua historicidade.
Podemos, portanto, concluir que passou a época em que se colocava aos homens o socialismo como perspectiva histórica. Hoje não existe outra alternativa senão lutar para romper com os entraves que obstaculizam o desenvolvimento da sociedade: os interesses corporativos, as formas atrasadas do capital que necessitam da proteção do Estado, aqueles que se opõe à modernização da economia e assim por diante. Temos que lutar contra as forças presas ao passado sem saber como será o futuro. Mais do que nunca, nos dias de hoje, é bastante atual um antigo ditado espanhol: Caminhante, não existe caminho; o caminho se faz ao andar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CHASIN, J. Marx – Da razão do mundo ao mundo sem razão. IN: Marx Hoje. São Pulo: Ensaio, 1987.
LENIN, V. I. El Imperialismo, fase superior del capitalismo. IN: Obras escogidas. Moscou: Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1960, 3 vs., v. I.
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-------- Escritos economicos varios. 2. ed. México: Grijalbo, 1966.
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QUEIROZ, Eça de. A emigração como força civilizadora. Lisboa: P&R, 1979.
RICARDO, David. Princípios de Economia Política e Tributação. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
RICUPERO, Rubens. Marx, profeta da globalização. Estudos Avançados, USP/IEA, v. 12, n. 34, Setembro/Dezembro 1998.
RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos. São Paulo: Makron Books, 1995.
SISMONDI, J.-C.-L. Simonde de. Nouveaux principes d’économie politique. França: Calmann-Lévy, 1971.
SMITH, Adam. A riqueza das nações. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985, 2 vs.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Eio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, 3 vs.
THUROW, Lester C. O futuro do capitalismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1977).
-------- O Antigo Regime e a Revolução. Brasília: UnB, 1979.
TROTSKY, Leon. História da Revolução Russa. Rio de Janeiro: Saga, 1967, 3 vs.
TEXTOS SOBRE O MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA
ALMEIDA, Jorge e CANCELLI, Vitoria. 150 anos de Manifesto Comunista. São Paulo: Xamã; Secretaria Nacional de Formação Política/PT, 1998.
COGIOLA, Osvaldo (org.) Ontem & hoje: Manifesto Comunista. São Paulo: Xamã, 1999.
-------- (org.) Marx e Engels na História. São Paulo: Xamã, 1996.
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Novos Rumos, São Paulo, ano 13, n. 28, Outubro de 1998.
REIS FILHO, Daniel Aarão (org.) O Manifesto Comunista 150 anos depois. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998.
[1] Professor do Departamento de História da FCL – UNESP – Campus de Assis.
[2] Não iremos polemizar com estes autores. Na bibliografia, arrolaremos algumas publicações, de brasileiros, que escreveram sobre o tema. Dentre os textos publicados, merece um destaque especial o de Rubens Ricupero (1988), intitulado “Marx, o profeta da globalização”, pela sua grande sensibilidade histórica.
[3] Não são poucos os autores que observaram esse fato. Thurow é um deles: “Os ricos eram mais espertos do que Marx pensava. Eles compreenderam que sua própria sobrevivência prolongada dependia da eliminação de condições revolucionárias – e o fizeram.” (Thurow, 1997: 17).
[4] Observa Bridges que “o emprego moderno foi uma nova idéia assustadora – para muitas pessoas, uma idéia desagradável e até mesmo socialmente perigosa. Seus críticos afirmavam que era um modo antinatural e até desumano de se trabalhar. Previam que a maioria das pessoas não seria capaz de conviver com suas exigências” (Bridges, 1995: XIV-XV).
quarta-feira, fevereiro 14, 2007
CLIMA DE MEDO: ALARMISTAS DO AQUECIMENTO GLOBAL INTIMIDAM CIENTISTAS DISCORDANTES
por Richard Lindzen
Em 14 de fevereiro de 2007.
Resumo: Cientistas que discordam do clima de alarmismo em torno do aquecimento global têm sido vítimas de todo o tipo de pressões, favorecendo que mentiras sobre mudanças climáticas ganhem credenciais científicas mesmo que sejam frontalmente contrárias à própria ciência.
© 2007 MidiaSemMascara.org
Nota do tradutor: Quem quiser saber das credenciais científicas do Dr. Lindzen pode consultar suas publicações constantes em sua página pessoal. Lá aparecem também, sob o nome de “outras publicações”, artigos em jornais e depoimentos prestados perante o Senado e a Câmara dos Deputados dos EUA em várias oportunidades.
Tentarei traduzir aqui, nos próximos dias e na medida de minhas possibilidades, alguns desses documentos, uma vez que o Mídia Sem Máscara é um dos únicos veículos de mídia, senão o único, a publicar artigos contrários à sanha dos esquerdistas globalistas travestidos de cientistas. O artigo que se segue, cujo trecho aparece no artigo Um pouco do que dizem os “céticos” - Parte I de João L. Mauad, teve grande repercussão nos EUA e estimulou N. Joseph Potts a escrever um divertidíssimo artigo no Mises.org, intitulado Como atingir o “consenso” científico. Como o Dr. Lindzen é inatacável sob o ponto de vista científico, a militância de esquerda na mídia procura simplesmente escondê-lo, não falando sobre ele. Os negritos que aparecem na tradução são meus.
***
Tem havido repetidas alegações de que os furacões do ano passado foram um outro sinal de mudanças climáticas induzidas pelo homem. Tudo, da onda de calor em Paris às fortes nevascas em Búfalo, tem sido debitado na conta de quem queima gasolina em seus carros e carvão e gás natural para aquecer, refrigerar e eletrificar suas casas. Há de se perguntar, como um aumento de um mísero e mal discernível grau centígrado na temperatura média global desde o século XIX ganha aceitação pública como a fonte das recentes catástrofes climáticas?
A resposta tem muito a ver com mal-entendidos a respeito da ciência do clima, além da intenção de se depreciar essa ciência por meio de um triângulo de alarmismo. Afirmações científicas ambíguas sobre o clima são injetadas diariamente na mídia pelos interessados no alarmismo, fazendo crescer o suporte político dos “policy makers” que, como num moto-perpétuo, irão suprir os fundos necessários para mais pesquisas científicas e alimentar mais alarmes para incrementar o suporte político. Afinal, quem colocará dinheiro em ciência – não importa se para a AIDS, o espaço ou o clima – onde não houver nada realmente alarmante? Realmente, o sucesso do alarmismo climático pode ser avaliado pelo aumento dos gastos federais em pesquisas climáticas: de umas poucas centenas de milhões de dólares pré-1990 para US$ 1.7 bilhão hoje. Isto pode ser visto também nos altos investimentos em pesquisas por tecnologias alternativas, tais como energia solar, eólica, hidrogênio, etanol e carvão, assim como na área energética em geral (1).
Mas há um lado mais sinistro ainda em todo esse frenesi. Cientistas que não concordam com o clima de alarmismo têm visto seus fundos de pesquisa desaparecerem, seu trabalho ser escarnecido, além de serem acusados de serviçais da indústria petrolífera, “hackers” da ciência ou coisa pior. Conseqüentemente, mentiras sobre mudanças climáticas ganham credenciais científicas mesmo que sejam frontalmente contrárias à ciência em que, supostamente, elas se baseiam.
Para entender os mal-entendidos perpetuados sobre a ciência do clima e o clima de intimidação, é necessário ter uma idéia sobre questões científicas complexas que perpassam toda a discussão. Primeiramente, comecemos onde há concordâncias. O público, imprensa e “policy makers”, têm sido repetidamente informados do fato de que três alegações têm amplo apoio científico: que a temperatura global subiu um grau desde o final do século XIX; que os níveis de CO² na atmosfera subiu aproximadamente 30% no mesmo período; e que o CO² deve contribuir para um futuro aumento do aquecimento global. Essas alegações são verdadeiras. Contudo, o que o público não percebe é que as alegações nem constituem razão para alarme, nem estabelecem a responsabilidade humana sobre o pequeno aumento do aquecimento global que ocorreu. De fato, aqueles que fazem as mais alarmantes alegações demonstram, com isso, seu ceticismo sobre a própria ciência em que eles afirmam confiar. Não se trata apenas de que os alarmistas estão trombeteando resultados de modelos que sabemos estarem errados. Mas é que eles estão trombeteando catástrofes que não poderiam acontecer, mesmo que os modelos estivessem corretos, justificando assim investimentos custosos a fim de prevenir o aquecimento global.
Se os modelos estivessem certos, o aquecimento global reduziria a diferença de temperatura entre os pólos e o equador. Quando você tiver menor diferença de temperatura você terá menos estímulo para tempestades extra-tropicais, não mais. E, de fato, os resultados do modelo apóiam essa conclusão. Os alarmistas contam a favor de suas alegações a respeito das tempestades tropicais um comentário informal de Sir John Houghton do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), de que um mundo mais aquecido teria uma maior evaporação, com o calor latente provendo mais energia para os distúrbios. O problema com isso é que a habilidade da evaporação em produzir tempestades tropicais não depende só da temperatura, mas também da umidade – que quando menor, melhor para a produção de tempestades. Alegações de intenso aumento de temperatura são baseadas em que haja mais umidade, não menos – o que dificilmente explicaria um maior número de tempestades com o aquecimento global.
Mas, então, por que não temos mais cientistas denunciando abertamente essa ciência vagabunda?(2) Acredito que muitos cientistas têm se intimidado não meramente por dinheiro, mas por medo. Um exemplo: no início deste ano [2006], Joe Barton, deputado pelo Texas, enviou cartas ao paleoclimatologista Michael Mann e alguns de seus co-autores a procura de detalhes de uma análise, financiada por fundos públicos, que alega ter sido os anos 1990 a década mais quente e 1998 o ano mais quente do último milênio. A preocupação do Sr. Barton está baseada no fato de que o IPCC singularizou o trabalho do Sr. Mann com um meio de encorajar os “policy makers” a agirem. E eles assim agiriam, depois que seu trabalho pudesse ser replicado e testado – uma tarefa que tornou-se difícil por causa da recusa do Sr. Mann, um eminente autor do IPCC, em liberar detalhes de seu trabalho para análise. A defesa do Sr. Mann pela comunidade científica, apesar de tudo, foi imediata e ríspida. O presidente da Academia Nacional de Ciências – e também da Sociedade Americana de Meteorologia e da Associação Americana de Geofísica – formalmente protestou, dizendo que o deputado Barton ter singularizado o trabalho de um cientista tinha um cheiro de intimidação.
Tudo isso contrasta fortemente com o silêncio da comunidade científica quando anti-alarmistas estavam na mira do então Senador Al Gore. Em 1992, ele liderou duas audiências públicas no Congresso Americano, durante as quais tentou intimidar cientistas dissidentes, inclusive a mim, para que mudassem de posição e apoiassem seu alarmismo climático. Nem tampouco a comunidade científica reclamou quando o Sr. Gore, como vice-presidente, tentou envolver Ted Koppel (3) numa caça às bruxas para desacreditar os cientistas anti-alarmistas – o que o Sr. Koppel considerou, publicamente, inapropriado. E todos permaneceram mudos quando vários artigos e livros de Ross Gelbspan difamaram os cientistas que discordavam do Sr. Gore, chamando-os de pombos-correio da indústria do combustível fóssil.
Infelizmente, esta é apenas a ponta de um não derretido iceberg. Na Europa, Henk Tennekes foi demitido como diretor de pesquisas da Royal Dutch Meteorological Society depois de questionar os fundamentos do aquecimento global. Aksel Winn-Nielsen, ex-diretor da World Meteorological Organization da ONU foi pichado por Bert Bolin, primeiro presidente do IPCC, como um instrumento da indústria do carvão por questionar o alarmismo climático. Os respeitados professores italianos Alfonso Sutera e Antonio Speranza desapareceram do debate em 1991, aparentemente por perderem o financiamento para suas pesquisas, por levantarem questões inconvenientes.
E, além de tudo isso, há padrões peculiares em funcionamento nos periódicos científicos para aqueles artigos cujos autores levantam questões sobre a sabedoria científica da moda. Na Science e na Nature tais artigos são comumente recusados sem passar por revisão, como sendo sem interesse. Contudo, mesmo quando tais artigos são publicados, os padrões mudam. Quando eu, juntamente com alguns colegas da NASA, tentamos determinar como as nuvens se comportam sob um regime de temperatura variável, descobrimos o que denominamos então “Efeito Iris”, por meio do qual nuvens superiores do tipo cirrus se contraem com o aumento de temperatura, propiciando uma retro-alimentação climática negativa muito forte, suficiente para reduzir a resposta ao aumento de CO². Normalmente a crítica aos artigos aparecem na forma de cartas aos periódicos, às quais os autores podem responder imediatamente. No entanto, neste caso (e em outros) um fluxo de artigos preparados apressadamente apareceram, alegando erros em nosso estudo, com nossas respostas demorando meses para aparecerem publicadas. A demora permitiu que nosso artigo fosse referido como “desacreditado”. De fato, há uma estranha relutância em se descobrir como o clima realmente se comporta. Em 2003, quando o relatório do U.S. National Climate Plan recomendava uma alta prioridade para o aprimoramento de nosso conhecimento sobre a sensibilidade climática, o National Reserch Council recomendava, ao invés disso, o apoio à pesquisa sobre o impacto do aquecimento – e não à pesquisa sobre se isso realmente acontecia.
Alarme, ao invés de curiosidade científica genuína é, ao que tudo indica, essencial para manter o financiamento. E somente os cientistas seniores podem hoje enfrentar essa tempestade alarmista e desafiar o triângulo de ferro dos cientistas alarmistas, dos seus apoiadores e dos “policy makers”.
O autor é Professor de Ciência Atmosférica do MIT.
Publicado por The Wall Street Journal em junho de 2006
Tradução de Antônio Emílio Angueth de Araújo.
Em 14 de fevereiro de 2007.
Resumo: Cientistas que discordam do clima de alarmismo em torno do aquecimento global têm sido vítimas de todo o tipo de pressões, favorecendo que mentiras sobre mudanças climáticas ganhem credenciais científicas mesmo que sejam frontalmente contrárias à própria ciência.
© 2007 MidiaSemMascara.org
Nota do tradutor: Quem quiser saber das credenciais científicas do Dr. Lindzen pode consultar suas publicações constantes em sua página pessoal. Lá aparecem também, sob o nome de “outras publicações”, artigos em jornais e depoimentos prestados perante o Senado e a Câmara dos Deputados dos EUA em várias oportunidades.
Tentarei traduzir aqui, nos próximos dias e na medida de minhas possibilidades, alguns desses documentos, uma vez que o Mídia Sem Máscara é um dos únicos veículos de mídia, senão o único, a publicar artigos contrários à sanha dos esquerdistas globalistas travestidos de cientistas. O artigo que se segue, cujo trecho aparece no artigo Um pouco do que dizem os “céticos” - Parte I de João L. Mauad, teve grande repercussão nos EUA e estimulou N. Joseph Potts a escrever um divertidíssimo artigo no Mises.org, intitulado Como atingir o “consenso” científico. Como o Dr. Lindzen é inatacável sob o ponto de vista científico, a militância de esquerda na mídia procura simplesmente escondê-lo, não falando sobre ele. Os negritos que aparecem na tradução são meus.
***
Tem havido repetidas alegações de que os furacões do ano passado foram um outro sinal de mudanças climáticas induzidas pelo homem. Tudo, da onda de calor em Paris às fortes nevascas em Búfalo, tem sido debitado na conta de quem queima gasolina em seus carros e carvão e gás natural para aquecer, refrigerar e eletrificar suas casas. Há de se perguntar, como um aumento de um mísero e mal discernível grau centígrado na temperatura média global desde o século XIX ganha aceitação pública como a fonte das recentes catástrofes climáticas?
A resposta tem muito a ver com mal-entendidos a respeito da ciência do clima, além da intenção de se depreciar essa ciência por meio de um triângulo de alarmismo. Afirmações científicas ambíguas sobre o clima são injetadas diariamente na mídia pelos interessados no alarmismo, fazendo crescer o suporte político dos “policy makers” que, como num moto-perpétuo, irão suprir os fundos necessários para mais pesquisas científicas e alimentar mais alarmes para incrementar o suporte político. Afinal, quem colocará dinheiro em ciência – não importa se para a AIDS, o espaço ou o clima – onde não houver nada realmente alarmante? Realmente, o sucesso do alarmismo climático pode ser avaliado pelo aumento dos gastos federais em pesquisas climáticas: de umas poucas centenas de milhões de dólares pré-1990 para US$ 1.7 bilhão hoje. Isto pode ser visto também nos altos investimentos em pesquisas por tecnologias alternativas, tais como energia solar, eólica, hidrogênio, etanol e carvão, assim como na área energética em geral (1).
Mas há um lado mais sinistro ainda em todo esse frenesi. Cientistas que não concordam com o clima de alarmismo têm visto seus fundos de pesquisa desaparecerem, seu trabalho ser escarnecido, além de serem acusados de serviçais da indústria petrolífera, “hackers” da ciência ou coisa pior. Conseqüentemente, mentiras sobre mudanças climáticas ganham credenciais científicas mesmo que sejam frontalmente contrárias à ciência em que, supostamente, elas se baseiam.
Para entender os mal-entendidos perpetuados sobre a ciência do clima e o clima de intimidação, é necessário ter uma idéia sobre questões científicas complexas que perpassam toda a discussão. Primeiramente, comecemos onde há concordâncias. O público, imprensa e “policy makers”, têm sido repetidamente informados do fato de que três alegações têm amplo apoio científico: que a temperatura global subiu um grau desde o final do século XIX; que os níveis de CO² na atmosfera subiu aproximadamente 30% no mesmo período; e que o CO² deve contribuir para um futuro aumento do aquecimento global. Essas alegações são verdadeiras. Contudo, o que o público não percebe é que as alegações nem constituem razão para alarme, nem estabelecem a responsabilidade humana sobre o pequeno aumento do aquecimento global que ocorreu. De fato, aqueles que fazem as mais alarmantes alegações demonstram, com isso, seu ceticismo sobre a própria ciência em que eles afirmam confiar. Não se trata apenas de que os alarmistas estão trombeteando resultados de modelos que sabemos estarem errados. Mas é que eles estão trombeteando catástrofes que não poderiam acontecer, mesmo que os modelos estivessem corretos, justificando assim investimentos custosos a fim de prevenir o aquecimento global.
Se os modelos estivessem certos, o aquecimento global reduziria a diferença de temperatura entre os pólos e o equador. Quando você tiver menor diferença de temperatura você terá menos estímulo para tempestades extra-tropicais, não mais. E, de fato, os resultados do modelo apóiam essa conclusão. Os alarmistas contam a favor de suas alegações a respeito das tempestades tropicais um comentário informal de Sir John Houghton do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), de que um mundo mais aquecido teria uma maior evaporação, com o calor latente provendo mais energia para os distúrbios. O problema com isso é que a habilidade da evaporação em produzir tempestades tropicais não depende só da temperatura, mas também da umidade – que quando menor, melhor para a produção de tempestades. Alegações de intenso aumento de temperatura são baseadas em que haja mais umidade, não menos – o que dificilmente explicaria um maior número de tempestades com o aquecimento global.
Mas, então, por que não temos mais cientistas denunciando abertamente essa ciência vagabunda?(2) Acredito que muitos cientistas têm se intimidado não meramente por dinheiro, mas por medo. Um exemplo: no início deste ano [2006], Joe Barton, deputado pelo Texas, enviou cartas ao paleoclimatologista Michael Mann e alguns de seus co-autores a procura de detalhes de uma análise, financiada por fundos públicos, que alega ter sido os anos 1990 a década mais quente e 1998 o ano mais quente do último milênio. A preocupação do Sr. Barton está baseada no fato de que o IPCC singularizou o trabalho do Sr. Mann com um meio de encorajar os “policy makers” a agirem. E eles assim agiriam, depois que seu trabalho pudesse ser replicado e testado – uma tarefa que tornou-se difícil por causa da recusa do Sr. Mann, um eminente autor do IPCC, em liberar detalhes de seu trabalho para análise. A defesa do Sr. Mann pela comunidade científica, apesar de tudo, foi imediata e ríspida. O presidente da Academia Nacional de Ciências – e também da Sociedade Americana de Meteorologia e da Associação Americana de Geofísica – formalmente protestou, dizendo que o deputado Barton ter singularizado o trabalho de um cientista tinha um cheiro de intimidação.
Tudo isso contrasta fortemente com o silêncio da comunidade científica quando anti-alarmistas estavam na mira do então Senador Al Gore. Em 1992, ele liderou duas audiências públicas no Congresso Americano, durante as quais tentou intimidar cientistas dissidentes, inclusive a mim, para que mudassem de posição e apoiassem seu alarmismo climático. Nem tampouco a comunidade científica reclamou quando o Sr. Gore, como vice-presidente, tentou envolver Ted Koppel (3) numa caça às bruxas para desacreditar os cientistas anti-alarmistas – o que o Sr. Koppel considerou, publicamente, inapropriado. E todos permaneceram mudos quando vários artigos e livros de Ross Gelbspan difamaram os cientistas que discordavam do Sr. Gore, chamando-os de pombos-correio da indústria do combustível fóssil.
Infelizmente, esta é apenas a ponta de um não derretido iceberg. Na Europa, Henk Tennekes foi demitido como diretor de pesquisas da Royal Dutch Meteorological Society depois de questionar os fundamentos do aquecimento global. Aksel Winn-Nielsen, ex-diretor da World Meteorological Organization da ONU foi pichado por Bert Bolin, primeiro presidente do IPCC, como um instrumento da indústria do carvão por questionar o alarmismo climático. Os respeitados professores italianos Alfonso Sutera e Antonio Speranza desapareceram do debate em 1991, aparentemente por perderem o financiamento para suas pesquisas, por levantarem questões inconvenientes.
E, além de tudo isso, há padrões peculiares em funcionamento nos periódicos científicos para aqueles artigos cujos autores levantam questões sobre a sabedoria científica da moda. Na Science e na Nature tais artigos são comumente recusados sem passar por revisão, como sendo sem interesse. Contudo, mesmo quando tais artigos são publicados, os padrões mudam. Quando eu, juntamente com alguns colegas da NASA, tentamos determinar como as nuvens se comportam sob um regime de temperatura variável, descobrimos o que denominamos então “Efeito Iris”, por meio do qual nuvens superiores do tipo cirrus se contraem com o aumento de temperatura, propiciando uma retro-alimentação climática negativa muito forte, suficiente para reduzir a resposta ao aumento de CO². Normalmente a crítica aos artigos aparecem na forma de cartas aos periódicos, às quais os autores podem responder imediatamente. No entanto, neste caso (e em outros) um fluxo de artigos preparados apressadamente apareceram, alegando erros em nosso estudo, com nossas respostas demorando meses para aparecerem publicadas. A demora permitiu que nosso artigo fosse referido como “desacreditado”. De fato, há uma estranha relutância em se descobrir como o clima realmente se comporta. Em 2003, quando o relatório do U.S. National Climate Plan recomendava uma alta prioridade para o aprimoramento de nosso conhecimento sobre a sensibilidade climática, o National Reserch Council recomendava, ao invés disso, o apoio à pesquisa sobre o impacto do aquecimento – e não à pesquisa sobre se isso realmente acontecia.
Alarme, ao invés de curiosidade científica genuína é, ao que tudo indica, essencial para manter o financiamento. E somente os cientistas seniores podem hoje enfrentar essa tempestade alarmista e desafiar o triângulo de ferro dos cientistas alarmistas, dos seus apoiadores e dos “policy makers”.
O autor é Professor de Ciência Atmosférica do MIT.
Publicado por The Wall Street Journal em junho de 2006
Tradução de Antônio Emílio Angueth de Araújo.
terça-feira, fevereiro 13, 2007
O MALOGRO DA REVOLUÇÃO ESCOLAR NA FRANÇA E EM OUTROS PAÍSES
O MALOGRO DA REVOLUÇÃO ESCOLAR NA FRANÇA E EM OUTROS PAÍSES
Os “dogmas” do igualitarismo e da co-educação, rejeitados por pais de alunos em diversas nações, são também questionados por cientistas e associações desejosos do retorno ao ensino tradicional
por José Antonio Ureta
O método pedagógico do ditado volta ao ensino na França. Não na escola primária, mas na faculdade!
Os calouros do Instituto Universitário de Tecnologia de Grenoble (IUTG) foram recebidos, no início do ano acadêmico atualmente em curso no hemisfério Norte, com a prática do ditado. Antigamente ela era julgada supérflua a partir do ciclo colegial, e mais recentemente fora praticamente abolida em todos os níveis. Agora retorna na faculdade. Motivo: as empresas queixam-se de que os diplomados do IUTG, contratados por elas, não sabem escrever corretamente.
“Um quarto dos alunos tem problemas no uso da língua”, confirma Pierre Aliphat, presidente da Comissão de Formação do órgão que reúne as principais universidades francesas. “Estamos pagando por quinze ou vinte anos de desvio na maneira de ensinar a ortografia e a gramática na escola primária e no curso secundário”, assevera o pedagogo.(1)
O avanço, na França, dessa forma de analfabetismo funcional tornou-se tão grave que até um antigo militante de extrema esquerda, Jean-Paul Brighelli, professor de Letras em Montpellier, escreveu um livro do qual já se venderam mais de 130 mil exemplares: A fabricação do cretino — A morte programada da escola.(2)
Uma entrevista de Jean-Pierre Demailly, membro da Academia Francesa das Ciências e professor na Universidade de Grenoble I, confirma esse diagnóstico alarmante: “A escola está na iminência do naufrágio. Duas ou três décadas atrás, o ensino primário e o colegial fizeram recuos desastrosos no campo do aprendizado da língua, da gramática, da ortografia, do cálculo, da geometria, da aritmética, do raciocínio lógico”. Colocando o dedo na chaga, denuncia os responsáveis pelo temido naufrágio pedagógico: “Isso se deve, em grande medida, ao fato de que foram abandonados métodos pedagógicos comprovados, em favor de outros que repousavam unicamente sobre teorias pedagógicas abstratas ou sobre considerações teóricas desligadas da realidade”.(3)
Ou seja, as escolas e os alunos franceses serviram de malogradas cobaias para experiências educacionais malsãs, promovidas por ideólogos de teorias antitradicionais.O problema é que a mesma revolução pedagógica foi desencadeada mais ou menos em todos os países ocidentais. As nações européias, pioneiras dessa revolução, são as primeiras a colher seus frutos amargos, em particular a França. De onde ser mais viva lá do que no Brasil a reação dos pais de família e de alguns pedagogos mais avisados.Para se ter uma idéia mais precisa da profundidade da crise e da vivacidade das reações, convém fazer um retrospecto histórico que ajude o leitor a identificar quais as correntes ideológicas que estavam por trás dessa revolução do ensino, e em nome de que utopias pregaram elas dita revolução.
O caso francês parece o mais ilustrativo, motivo pelo qual nos deteremos em analisá-lo com particular atenção, focalizando especialmente o ensino público, mais homogêneo do que o ensino privado, além de ter sido o campo privilegiado para a experimentação das novas teorias pedagógicas.Disputa pelo domínio da alma infantil pós-Revolução FrancesaComo é sabido, antes da Revolução Francesa a educação estava quase integralmente a cargo da Igreja Católica, mediante escolas paroquiais, pensionatos de moças nos conventos femininos, colégios de congregações religiosas e universidades.
Desse predomínio da Igreja no ensino público resultava principalmente grande benefício para a Religião e para as almas. Mas, secundariamente, ele era benéfico também para o Estado, pois tratava-se de uma educação de qualidade, se considerados os conhecimentos da época. Entretanto, após a nacionalização dos bens eclesiásticos decretada pelos revolucionários franceses, Napoleão não só não devolveu os estabelecimentos de ensino à Igreja, mas criou um monopólio estatal para o ensino superior e uniformizou a educação pública, colocando-a sob o controle da Universidade Imperial, por ele fundada.Três décadas mais tarde, sob o regime monárquico-liberal do rei Luiz Filipe (1830-1848), houve uma certa liberalização do ensino, com a Lei Guizot, que permitiu a abertura de escolas privadas, principalmente católicas, mas deixou ainda sob a tutela da Universidade o ensino secundário e o superior. A mesma lei generalizou as Escolas Normais para a formação de mestres.Durante a breve II República (1848-1851) foi aprovada uma Constituição que, embora proclamando “o ensino é livre”, acrescentava que essa liberdade se exercia sob o controle do Estado, não admitindo exceções. O que induziu o deputado católico conde de Montalembert a descrever esse monopólio da universidade pública como um “comunismo intelectual”.
Na prática, porém, a Lei Falloux –– assim denominada de acordo com o nome do ministro monarquista católico que a inspirou –– estabeleceu, a partir do chamado Segundo Império (1851-1870), um modus vivendi entre a escola católica livre e a escola pública, dividindo o ensino primário e secundário entre elas, mas colocando-o sob o controle do Conselho Superior da Instrução Pública, do qual participavam quatro bispos católicos. Tal situação de boa vizinhança perdurou durante todo o período de governo do imperador Napoleão III.
Jules Ferry, várias vezes ministro da Instrução Pública da França, promoveu reformas drásticas para afastar o mais possível a Igreja da educação Porém, com a queda do II Império e o advento da III República, correntes políticas anticatólicas tomaram as rédeas do governo francês e puseram em prática uma política educacional marcadamente anticlerical. Jules Ferry, um dos políticos mais influentes do regime, várias vezes ministro da Instrução Pública e até presidente do Conselho de Ministros (em 1880), promoveu reformas drásticas para afastar o mais possível a Igreja da educação. Além de instituir o ensino primário obrigatório, eliminou a Religião das escolas, impondo a estrita laicidade do ensino, e retirou aos membros das congregações religiosas a licença de ensinar. Ao mesmo tempo, Ferry estendeu até o secundário o ensino público laico e gratuito para as moças; criou uma Escola Normal Feminina para a formação de mestras, segundo o postulado de que “aquele que tem a mulher, tem tudo”. De fato, das Escolas Normais tanto masculinas quanto femininas saíam cada ano o que os franceses chamam jocosamente “hussardos negros da República”, em alusão aos casacos pretos usados pelos professores no século XIX. Isso porque os mestres de escola formavam uma verdadeira legião de “missionários” e “missionárias”, encarregados de “evangelizar” as crianças com o novo “credo” laico e socialista das forças políticas que dirigiam a França republicana.
O objetivo dos que tinham em suas mãos as rédeas da instrução pública francesa era o de formar os jovens nos princípios revolucionários, seguindo o lema de Jean Macé, condiscípulo de Ferry e fundador da Liga do Ensino: “Aquele que tem as escolas da França, tem a França”.Porém, visando obter o prestígio necessário para atingir esse resultado, a escola pública rivalizava com a escola privada na qualidade da educação oferecida, procurando realizar a utopia de Jules Ferry de “que os camponeses possam recitar Virgílio enquanto sulcam a terra com o arado”. Igualmente, em matéria de formação moral dos alunos, os professores laicos rivalizavam com o vigário no intento de educar cidadãos honrados e trabalhadores. Pode-se afirmar que tal ensino público de qualidade, e seguindo padrões tradicionais de moral, perdurou na França até a Segunda Guerra Mundial.Nova utopia: nivelar as classes sociais pela educaçãoApós o conflito mundial de 1939-1945, a instrução pública foi dominada por militantes de esquerda (comunistas e socialistas), tanto pelo imenso poder que exerceram a partir de então nos poderosos sindicatos de professores, quanto por terem infiltrado seus elementos em toda a estrutura administrativa do Ministério da Educação.
Notadamente durante a década de 1960-1970, esses detentores das rédeas da educação pública passaram a ter um segundo objetivo revolucionário: promover a igualdade social. De fato, até o conflito mundial, apesar do crescimento excepcional da escolarização, as naturais desigualdades de educação ainda eram muito grandes. Havia claramente duas linhas paralelas: para os filhos de operários, uma educação básica, que eventualmente se estendia a uma educação técnica; e uma educação acadêmica de alto nível para os filhos das classes superiores, que em muitos casos abria-lhes depois as portas da universidade. Tal situação tendia a tornar estável a hierarquia social, pois somente os mais capazes da classe operária podiam ascender às classes superiores.
Para atingir seus objetivos revolucionários de eliminar gradualmente as classes sociais, os ideólogos socialistas, particularmente os representantes de escolas de sociologia obcecadas pela igualdade social — por exemplo, os seguidores de Pierre Boudieu, o qual afirmava ser a escola uma máquina de reprodução das elites — propuseram programas educativos tendentes a fornecer, a todos os alunos, “igualdade de oportunidades” na educação. Isto compensaria, segundo eles, a desvantagem inicial de instrução de que padecem as crianças provenientes de famílias de condição modesta.Com a vitória do candidato socialista François Mitterrand, em 1981, houve uma tentativa de nacionalizar o ensino privado. Contudo, o projeto fracassou devido à oposição dos pais de família, que realizaram marcha com 1 milhão de participantes, acarretando o abandono da reforma e a queda do ministro Savary.
Mesmo antes disso, os programas de educação já tinham sido vítimas dessa corrente sociológica igualitária, a qual conseguiu instituir um programa único durante quase todo o curso colegial, destinado a eliminar a antiga diferença entre as escolas técnicas e o curso acadêmico geral. O Colégio Único devia encorajar o maior número de alunos a continuar no Liceu com os estudos gerais, a caminho de uma universidade aberta a todos.
Posteriormente foram criadas nas periferias urbanas, onde residem as famílias pobres e os imigrantes, Zonas de Educação Prioritária, cujos estabelecimentos de ensino recebem subsídios especiais para compensar o déficit de educação dos alunos (maior número de professores, classes com menos alunos, etc.). Houve, por isso mesmo, um crescimento exponencial do gasto público: na França, ele é superior ao montante recolhido pelo imposto de renda e representa 7% do PIB, sendo os maiores beneficiários dessa situação os ensinos primário e secundário.
Daí em diante, segundo esses sociólogos marxistas, a desigual posição de cada um na sociedade resultaria não mais do nascimento, mas unicamente do mérito individual. Com isso, as classes sociais iriam gradualmente se aproximando até desaparecerem, realizando assim a utopia igualitária do comuno-socialismo.
Efeitos da Revolução de Maio de 68 na educaçãoO Prof. Philippe Meirieu, um dos líderes da corrente de pedagogos maníacos da “autoconstrução” do aluno Concomitantemente, fizeram-se sentir os efeitos catastróficos da revolução estudantil da Sorbonne, em maio de 1968, os quais podem ser comparados aos de uma bomba atômica. Numa primeira fase, houve verdadeira explosão social de caráter libertário, que teve como principal slogan “é proibido proibir”. Logo após, verificou-se um refluxo, por causa da reação que seus excessos provocaram na imensa maioria dos franceses. Mas, numa terceira fase, começou uma lenta e persistente irradiação dos princípios libertários de 1968 para toda a sociedade, impregnando com seus efeitos maléficos todas as instituições sociais: o exercício da autoridade por um superior (pai, professor, patrão, policial, juiz, etc.) passou a ser visto com maus olhos, na medida em que coloca entraves à expressão livre e espontânea dos sentimentos e desejos dos seus subordinados.Essa impregnação libertária não tardou a entrar em choque com a escola tradicional, na sua procura de um terceiro objetivo revolucionário: a criação de um homem novo.No passado, o mestre era o “magister” (em latim, aquele que é mais, que sabe mais, e que transmite à criança seu saber), cuja função consistia em “e-ducere” (elevar, conduzir para fora de si), no seio de uma “scholè” (que, em grego, significa pausa, lazer fecundo). Ou seja, o clima da escola devia ser um santuário onde não penetravam as agitações da vida social.
A escola tradicional sofreu então o impacto de toda uma corrente de pedagogos maníacos da “autoconstrução” do aluno, cujo principal representante é hoje na França o Prof. Philippe Merieu, do Instituto Nacional de Pesquisas Pedagógicas, instituição encarregada de estabelecer os programas de estudo das Escolas Normais formadoras dos mestres.Sob sua égide a escola passou a ser, não mais um santuário, mas um lugar de vida, aberta a todos os ventos que sopram sobre a sociedade. Em lugar de ser um lugar de transmissão do saber, passou a ter como função principal a de incentivar a autonomia de rapazes e moças, pela qual cada aluno deve construir, ele próprio, seu saber. Em conseqüência, é o professor que deve entrar na escola do aluno, e não o contrário.Numa palavra, trata-se de uma escola de autodidatas. Um relatório oficial do Ministério da Educação, denominado Relatório Migeon, declarava o seguinte: “A apropriação dos conhecimentos é o oposto da transmissão dos conhecimentos daquele que sabe àquele que não sabe”. O Sr. Philippe Merieu declarava que “a criança deve ser a autora de sua educação, de seu projeto pessoal, de sua própria construção de saberes”, pelo que “cada vez que se explica algo ao aluno, isso o impede de inventar” (sic!).
Do ponto de vista da formação do caráter, mais do que uma escola, trata-se de uma república de alunos, organizada segundo os princípios socialistas de igualdade e liberdade radicais. Nessa pseudo-escola não há hierarquia entre professores e estudantes, não há notas (para não haver concorrência entre os alunos), não se repete o ano, não se orienta os alunos numa direção determinada segundo suas aptidões, e, acima de tudo, não há disciplina. Para avaliar o grau de preparo dos pedagogos em formação para esse novo estilo de educação, foi proposto a dois grupos de estudantes do Instituto Universitário de Formação de Mestres, de Paris, o seguinte caso: oferecer soluções para acabar com uma desordem provocada pelos alunos numa sala de aulas. A solução proposta pelo primeiro grupo foi a seguinte: o professor devia negociar com os alunos o nível de barulho e de movimentação aceitáveis daí em diante; a do segundo grupo foi que o professor devia fazer os alunos praticarem a ioga!Novos métodos revolucionários de aprendizadoNeste manual de leitura de 176 páginas, descobre- se a primeira vogal somente na página 26... Aparentemente para combater o “individualismo” da sociedade burguesa e favorecer o “espírito coletivo” da nova sociedade socialista, esses neopedagogos inventaram novas técnicas de ensino, notadamente para o aprendizado da leitura e da aritmética.No método tradicional de aprendizado da leitura, ensinava-se primeiro ao aluno cada uma das letras; depois, a reuni-las em sílabas e a familiarizar-se com o som das sílabas; em seguida, a compor e reconhecer as palavras; e, finalmente, as frases. Ou seja, partia-se da unidade, a letra, e iam-se formando grupos cada vez maiores, até um texto longo. Em oposição a esse método natural, inventou-se o chamado método global de aprendizado, o qual pretendia fazer o caminho contrário, indo diretamente às palavras e as frases. Esse método foi, na realidade, uma adaptação de um sistema empregado originariamente na Escola de Surdos-mudos de Paris, segundo o qual não se ensinava previamente as letras, as sílabas e os sons — o que não teria sentido, tratando-se de surdos-mudos —, mas aprendia-se a “fotografar” e memorizar as palavras inteiras, como se fossem ideogramas chineses. Daí seu nome de método global.Assim, por exemplo, no livro Je lis avec Dagobert (Eu leio com Dagoberto), um manual de leitura de 176 páginas, descobre-se a primeira vogal somente na página 26. A primeira consoante figura na página 46, e a palavra sílaba é mencionada pela primeira vez na página 99, muito além da metade do livro!Analogamente no ensino das operações aritméticas. Sob o influxo de um grupo esotérico de matemáticos da Escola Normal Superior de Paris, chamado grupo Bourbaki, os programas escolares impuseram o ensino das chamadas matemáticas modernas, e notadamente da teoria dos conjuntos. Ao invés de começar pela idéia de “unidade” (um pauzinho, dois pauzinhos), unidades que vão se adicionando e subtraindo, etc., obriga-se os alunos a abordar diretamente um coletivo de elementos –– digamos, “um sub-conjunto de cinco peras” –– ao qual se acrescenta ou do qual se subtrai um outro grupo –– digamos, “um sub-conjunto de 3 peras” –– formando um “conjunto de 8 peras” (ou um “conjunto de 2 peras”, no caso de uma subtração). O que, na aritmética, equivale ao que é, na leitura, aprender as palavras sem ter aprendido as letras. Isso supõe, por parte das crianças, aptidões intelectuais muito acima da média geral.Também, nesse ensino moderno das matemáticas, intentou-se o uso de uma base de numeração distinta da base decimal (como na informática, em que a base é binária). Isso equivale, mais ou menos, a ensinar a física a partir da lei da relatividade! Só os gênios conseguem acompanhar.O resultado foi que a maioria dos alunos não aprendia direito as noções básicas da aritmética. Interpelado a respeito desse insucesso, um ex-ministro francês da educação, o filósofo Luc Ferry, chegou a declarar: “Não há problema: para isso podem usar a calculadora”!O que há de comum entre o método global de leitura e a teoria dos conjuntos é, ao que parece, o ódio pelo ser individual como base do universo criado, e portanto do Ser que o criou.
Obrigar as crianças a pensar primeiro “no coletivo” não será uma forma de prepará-las para o socialismo, até quiçá para o panteísmo? É de se suspeitar...A “rebelião” dos pais de famíliaO fracasso do ensino público tem favorecido a criação de vários movimentos de pais de alunos que, indignados com o efeito pernicioso que as experiências pedagógicas têm provocado na instrução de seus filhos, começaram a reagir, alertando o público, os meios acadêmicos, os políticos e a mídia.O seguinte artigo, do conhecido quotidiano parisiense “Le Figaro”, retrata a fisionomia e a ação dos mais conhecidos movimentos de reação:Esses rebeldes no assalto da fortaleza “Educação Nacional”Marie-Estelle Pech“Le Figaro”, 20-10-2006A partir de dois ou três anos atrás, graças a seu caráter militante sem tréguas e à sua presença crescente na mídia, certas associações pesam cada vez mais no debate sobre a educação.“SOS Educação”, “Salvar a Literatura”, “Salvar as Matemáticas”, Laurent Lafforgue, Jean-Claude Brighelli, Marc Le Bris ou Rachel Boutonnet... De dois ou três anos para cá, associações e personalidades interferem no debate político sobre a educação, quebrando o monopólio do diálogo entre o ministro da Educação e os sindicatos de professores.
Nem todos defendem as mesmas teses nem propõem as mesmas soluções, mas eles estão de acordo no essencial: a constatação do estado catastrófico do ensino na França. No estilo de Fanny Cappel, diplomada em Letras Clássicas e membro de “Salvar a Literatura”, uma associação de cerca de 400 professores, todos denunciam o impacto de “certos dogmas pedagógicos” sobre a formação dos mestres: “Dogmas tão absurdos quanto perigosos, que impedem os professores de exercer livremente sua profissão, e que impedem os alunos de aprender qualquer coisa de modo sólido”.Igualmente, todos deploram o “nível lamentável” dos que são aprovados no bacharelado, responsável pelo insucesso de 40% dentre eles no primeiro ciclo universitário. “Salvar a Literatura”, bem como “SOS Educação” estigmatizam um “igualitarismo obtuso” que, sob pretexto de oferecer a todos um “pretenso sucesso”, baixou o nível dos diplomas, eliminou a repetição em caso de fracasso nos exames, uniformizou o curso de todos os alunos e induziu a uma “heterogeneidade incontrolável” nas salas de aula.
Todos estão de acordo em postular um “retorno aos fundamentos”, apreciado pelo atual ministro da Educação Nacional, particularmente nas escolas primárias. Laurent Lafforgue é um defensor fervoroso desse retorno ao básico. Esse conhecido matemático, que ganhou a medalha Fields [principal prêmio internacional de matemática], tornou-se conhecido do grande público no ano passado, após ter comparado os “especialistas e sindicatos da Educação Nacional” aos khmers rouges [as milícias comunistas que promoveram o genocídio do Cambodge em 1975]. Uma afronta que lhe valeu a exclusão do Alto Conselho da Educação, responsável pela reforma dos programas. Para ele, o sistema de ensino público está em via de “destruição total”, devido a políticas impostas pelo “conjunto da nomenklatura da Educação Nacional”.Os pedagogos no banco dos acusadosSignatário de um apelo recente em favor da “refundação da escola”, juntamente com Rechel Boutonnet (a mestra que prega em seus best sellers o retorno do método silábico), e Jean-Claude Brighelli, Lafforgue freqüenta hoje os colóquios sobre a educação nacional. Recentemente, numa reunião organizada pela associação “Família, escola, educação”, ele dedicou seu tempo a denunciar a desestruturação do ensino na escola primária e suas repercussões no ensino médio e superior. Para o matemático, “pode-se resumir uma boa parte dos males atuais dizendo que quiseram proscrever todo e qualquer ensino explícito, qualificado de dogmático, e substituí-lo por um espírito que pretensamente favorece a experiência e a descoberta pessoais”. Assim, “onde os antigos programas do primário exigiam aprender as conjugações verbais, os novos convidam a observar as variações da forma verbal”.
Os pedagogos, sempre e ainda mais agora, no banco dos réus.No que diz respeito às soluções, a unanimidade se reduz a pedaços. “SOS Educação” aprecia “Salvar a Literatura”, mas esta última não retribui o apreço. Deseja distanciar-se de “pressupostos ideológicos” que ela não partilha.“Salvar a Literatura” acredita numa escola republicana forte, capaz de transmitir a todos os alunos que lhe são confiados –– “quaisquer que sejam sua origem social, confessional, cultural" –– um patrimônio comum de conhecimentos de alcance universal, verdadeira base da Nação.
Os militantes de “SOS Educação” seriam, segundo Fanny Cappel, ultra-liberais que querem estender “abusivamente a todos os campos da atividade humana o conceito, aliás desviado, de liberdade...”.
O feminismo e a co-educação obrigatóriaOutro aspecto da revolução pedagógica desenvolvida na segunda metade do século XX foi o de tornar obrigatória ou, pelo menos, de favorecer abertamente a co-educação, não somente na escola primária mas durante todo o curso colegial e o liceu.Segundo as feministas da primeira hora (cuja inspiradora foi Simone de Beavoir em seu livro O Segundo Sexo, no qual afirmava que “a mulher não nasce, mas se faz”), a educação mista deveria diminuir as desigualdades entre homens e mulheres no acesso ao trabalho e às altas funções. Mais ainda, deveria contribuir para acabar com os estereótipos feminino e masculino, os quais, segundo o feminismo, perpetuam a sociedade patriarcal, necessariamente opressiva para as mulheres.
Frutos amargos da revolução pedagógicaGilles de Robien, ministro francês de educação, tentou várias vezes corrigir o rumo do ensino Passaram-se 40 anos desde que se realizaram essas primeiras experiências. Pouco mais tarde, tais métodos “modernos” de ensino foram impostos, em maior ou menor medida, nos programas educativos de quase todos os países ocidentais. Qual foi o resultado? Um verdadeiro desastre...Senão, vejamos o caso francês. Quanto às operações básicas da aritmética, o panorama é catastrófico. Numa avaliação dos alunos de 2ª série, o resultado foi que somente 1 aluno em cada 4 consegue fazer uma divisão de 178,8 por 8! De fato, o ensino segundo o método das matemáticas modernas já foi abandonado há um certo tempo.Quanto aos resultados do método global de aprendizado da leitura, segundo dados fornecidos pelo Movimento SLECC (acrônimo de Saber Ler Escrever Contar Calcular), de 15 a 20% dos alunos que entram no colegial ainda não sabem ler, e 13% dos alunos que terminam a 1ª série continuam sem ter aprendido (mas, segundo a Sra. Ketherine Weiland, diretora da Inspeção Geral de Letras do Ministério da Educação, isso não é grave porque eles ainda não terminaram os estudos). O Relatório Périssol descobriu que 11% dos jovens de 17 a 22 anos têm dificuldades de leitura e escrita, suficientes para que sua vida diária seja afetada. Trata-se, portanto, de analfabetos funcionais.Esse diagnóstico de naufrágio provocou o que o jornal “Le Monde” qualificou com o título A querela dos globalistas e dos silábicos. De um lado, segundo o quotidiano, “os partidários do método global. Esses defendem uma técnica que se assemelha à magia: em poucas palavras, não se aprendem nem os sons, nem as letras, nem as sílabas: fotografam-se as palavras e repetem-se. [...] Do outro lado, os partidários do método silábico. O dogma difere: a criança é convidada a associar a cada sílaba um som e a formar pacientemente palavras, e, depois frases. [...] Não falta mais nada para desencadear uma nova guerra escolar. [...] A leitura tornou-se nossa mais recente guerra de religião! Essa rachadura certamente separa hoje mais do que a divisão entre a esquerda e a direita, entre o Mac[Intosh] e o PC, entre [os dicionários] Petit Robert e Larousse”.(4)Na realidade, é uma querela entre os professores formados nas Escolas Normais, partidários dos métodos ditos “modernos”, e os pais de família que desejam voltar aos métodos tradicionais, apoiados numa minoria de professores com bom senso.
O resultado da querela foi que o atual ministro francês de educação, Gilles de Robien, passou uma circular anunciando a retomada do método silábico, a qual suscitou uma rebelião dos professores apoiada pelos diretores de estabelecimentos, 12.000 dos quais fizeram uma manifestação em Paris, o que forçou o ministro a voltar vergonhosamente atrás.
Quando o ministro Robien anunciou no diário “Le Figaro” que iria iniciar a reforma do ensino da gramática e do cálculo na escola primária, e, especificamente, que as quatro operações aritméticas deveriam ser aprendidas o mais cedo possível, os mesmos especialistas da pedagogia replicaram, no dia seguinte, que o ministro não entende nada de educação e que, segundo seus estudos, o aprendizado precoce da divisão é nefasto para os alunos (sic!).(5) Tal é o peso dos preconceitos pedagógicos e dos interesses corporativos dos sindicatos de professores. Os alunos, que vão às favas!Repercussão da revolução escolar no ensino universitárioEstudantes franceses participam de manifestação em Paris junto com a CUT e partidos de esquerda Essa deterioração inexorável do ensino primário e secundário tem afetado as universidades francesas de duas maneiras.
De um lado, como o maior esforço financeiro tem sido dirigido para as Zonas de Educação Prioritária, sobra muito pouco dinheiro público para as universidades, as quais carecem dos professores necessários para atender adequadamente o conjunto dos estudantes, assim como lhes faltam laboratórios e equipamentos de pesquisa de alta tecnologia.
De outro lado, exceto no grupo reduzido das chamadas Grandes Escolas, nas universidades francesas não há um processo de seleção de candidatos: qualquer estudante que, no fim do Liceu, consegue passar no exame de bacharelado tem direito de se inscrever numa faculdade. Mas grande parte dos que ingressam nas faculdades não estão preparados. O resultado é que 40% dos que começam estudos universitários não conseguem terminar o 2º ano e obter um Diploma de Estudos Universitários Gerais. Dessa maneira, a cada ano letivo, 80 mil estudantes deixam a faculdade sem nenhum diploma. A verdadeira seleção dá-se nesse momento, porque continuam os estudos superiores rumo ao mestrado e ao doutorado somente aqueles que teriam conseguido passar nos exames de seleção, caso houvesse um filtro de entrada. Com isso as universidades perderam tempo e dinheiro, e os estudantes capazes de continuar os estudos foram afetados ao receber um ensino necessariamente inferior, em anfiteatros superlotados e sem um acompanhamento personalizado, por causa do excesso de alunos.
O resultado dessa situação foi que as universidades francesas manifestamente estão perdendo a corrida em relação a suas concorrentes estrangeiras. Segundo a chamada classificação de Shangai, que cataloga as 500 melhores universidades do mundo de acordo com um leque de critérios objetivos, somente três universidades francesas situam-se entre as 100 primeiras, sendo que a melhor colocada ocupa o 45º lugar!Isso constitui um golpe muito duro não somente para o orgulho nacional francês, mas sobretudo para o desenvolvimento do país, porque suas melhores cabeças começam a migrar para centros de alta tecnologia situados nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos. E lá se estabelecem depois para trabalhar.“S.O.S. Educação”: exemplo de reação bem sucedidaNa ponta de lança do combate à degradação do ensino público e ao predomínio dos sindicatos de professores na preparação dos programas escolares, encontra-se na França a associação “S.O.S. Educação”.
A entidade foi fundada em novembro de 2001, por um grupo de jovens pais de alunos reunidos em torno de Sylvain Marbach, engenheiro de pesquisas, e de Domitille Létondot, psicóloga escolar. Esses jovens pais de família foram todos educados na década de 1980/1990 e ficaram escandalizados com as deficiências de um sistema supostamente democrático, mas que não corresponde às necessidades da maioria dos alunos. Decidiram então criar um movimento para informar os cidadãos sobre o estado da escola e defender suas idéias junto aos políticos.
O programa da associação resume-se em 10 pontos:1. Dar prioridade à transmissão do saber; 2. Adaptar os cursos ao nível dos alunos;3. Todas as crianças devem saber ler no fim da escola primária; o método global deve ser substituído pelo método silábico;4. Verificar os conhecimentos adquiridos pelos alunos antes de admitir seu ingresso no colégio e no liceu;5. Dar uma qualificação profissional já no fim dos estudos secundários; revalorizar as escolas técnicas e, para certas profissões, permitir aprendizes desde a idade de 14 anos;6. Restaurar o prestígio e a autoridade dos professores;7. Restaurar a disciplina dentro da aula; enviar os pré-delinqüentes para internatos de reabilitação;8. Organizar cursos de civismo, que ensinem aos alunos seus deveres, pelo menos tanto quanto são ensinados os seus direitos;9. Limitar o poder dos sindicatos de professores na Educação Nacional;10.
Sancionar os professores que cometem faltas graves.Um artigo de “Le Monde”, de 8 de novembro de 2006, sob o título O marketing de SOS Educação para impor o b.a.-ba, reconheceu a vitalidade e a eficácia dos métodos da associação:“Na sede da associação, no 13º bairro de Paris, oito empregados e voluntários se empenham, por meio da Internet e de remessas de mala-direta, em enviar duas mensagens: subjacente à denúncia dos resultados desastrosos de método global [do aprendizado da leitura], defende-se uma vigorosa ideologia anti-funcionários.
“SOS Educação” combate as ‘velhas’ organizações ‘subvencionadas’ que são seus olhos; os sindicatos de professores; os movimentos pedagógicos; e, em geral, o que ela chama de ‘corporativismos’; por vezes, ‘agitadores que fazem subversão nas escolas’. A associação define-se como ‘rigorosamente independente de toda e qualquer organização política, sindical ou profissional’, assumindo uma orientação baseada na ‘ética da responsabilidade individual’.
Seu público é composto por todos aqueles que vêem nas ‘pedagogias modernas’ um ‘desastre’, que esperam ‘o restabelecimento da autoridade dos professores’, a ‘reintrodução dos cursos de Moral’, ou ainda ‘um exame de admissão no colegial’, e estão dispostos a contribuir financeiramente para a causa. O emprego da mala-direta teve seus efeitos positivos: a associação congrega 220.000 simpatizantes — pessoas que responderam positivamente a seu ‘referendum nacional sobre a educação’, lançado em 2005 — bem como 64.000 membros que contribuíram com uma cotização mínima de 15 euros [40 reais]”.*________________*Cfr. Le marketing e SOS Education pour imposer le b.a. –ba, Luc Cédelle, in "Le Monde", 8-11-2006.Desmentido o mito da “igualdade de oportunidades”Um socialista empedernido poderia eventualmente admitir que o ensino francês está perdendo competitividade face a seus concorrentes, principalmente em relação aos países anglo-saxões. Mas, reconhecido isso, ele apressar-se-ia em insistir que, mesmo assim, trata-se de um imperativo moral: a educação de massas não procura a excelência de uns poucos privilegiados, mas a “igualdade de oportunidades” para todos e a eliminação das desigualdades sociais.Entretanto, mais uma vez os resultados, 40 anos depois, provam que a realidade desmente essa utopia.Certamente houve, na segunda metade do século XX, um crescimento excepcional da escolarização: em 50 anos, a duração média da escolaridade passou de 7 a 14 anos; e a proporção de bacharéis entre os egressos do liceu passou de 5%, em 1950, a cerca de 80% em 2006. Se nos anos 40 somente 6% de filhos de operários passavam o bacharelado, ao lado de 25% de filhos de empregados e 66% de filhos de profissionais, na geração atual essa proporção passou a 30%, 50% e 75% respectivamente (ou seja, atualmente cinco vezes mais filhos de operários e duas vezes mais filhos de empregados obtêm o bacharelado do que 60 anos atrás).
Porém, todos os estudos sociológicos confirmam que isso não representou uma mudança na “pirâmide” dos resultados acadêmicos, nem na “pirâmide” dos empregos após os estudos, nem na pirâmide social. Um dos motivos é que o aumento do número de diplomas os desvalorizou: hoje, para obter um bom emprego, não basta um diploma, é necessário o bom diploma da faculdade prestigiosa. Outra explicação é que as carreiras universitárias longas, que conduzem aos cargos mais elevados e mais bem remunerados, continuam sendo primordialmente procuradas pelos filhos de profissionais, ao passo que os filhos de operários ingressam majoritariamente em carreiras técnicas curtas, quando não começam a trabalhar logo após o fim dos estudos secundários. Dessa forma, apesar dos fortes investimentos financeiros do Estado, permanece quase inalterada a pirâmide social. A natureza se vinga.Em inícios de 2006, o jornal esquerdista “Le Monde” publicou interessante série de artigos sobre a crise social francesa. O quarto da série, escrito pelo jornalista Thomas Piketty, versou sobre Educação: as promessas da discriminação positiva. Ele constatava amargamente que “a elevação geral dos níveis de educação suscitou frustrações à altura das esperanças que ela tinha feito nascer. As desigualdades de percurso e de sucesso escolar apenas se deslocaram para cima, quando não aumentaram”.
A explicação do articulista é simples de compreender: “Antigamente a desigualdade era bruta: alguns deviam começar a trabalhar aos 14 ou 16 anos para ganhar sua vida, enquanto outros tinham a chance de poder continuar seus estudos. Hoje todos podem, ou crêem poder, atingir uma formação longa; mas desigualdades mais sutis reaparecem no caminho (entre cursos geral e profissional no liceu, entre as diferentes carreiras no ensino superior...).
Aqueles que perdem a boa opção, e que no fim dos estudos conhecem o maior índice de desemprego, são freqüentemente os mesmos que antigamente começavam a trabalhar mais cedo — só que agora nem sequer encontram emprego”.(6)A razão da persistência dessas desigualdades de resultado, primeiro na educação e depois no curso da vida, encontra-se na existência da família, esteio de toda sociedade bem constituída.Um meio para eliminar a família: educação estatalO ensino socialista conduz à eliminação da família: a educação das crianças deve ser diretamente realizada pelo Estado Nos primórdios dessas experiências de engenharia social, o Instituto Nacional de Estudos Demográficos da França publicou, em 1961, um trabalho intitulado O sucesso social na França, que estudava as circunstâncias exteriores — familiares e sociais — suscetíveis de influenciar a carreira das pessoas. Referindo-se à família, o estudo chegava, sem pestanejar, à seguinte conclusão: “Enquanto ela continuar a preencher, na sociedade, suas funções essenciais de identificação social e de perpetuação de um nome, assim como de educação das crianças, parece muito difícil garantir a todos a igualdade completa de oportunidades”.(7) (Por isso, para Engels, o comunismo devia conduzir à eliminação da família, e a educação das crianças deveria ser diretamente realizada pelo Estado).
De fato, estudos americanos recentes confirmam, de modo insofismável, que é mesmo no interior da família, e desde o começo da vida, que as normais diferenças de nível educacional começam a aparecer entre as crianças.Dois psicólogos infantis da Universidade de Kansas (EUA), Betty Hart e Todd R. Risley, fizeram uma pesquisa aprofundada a respeito da aquisição da linguagem. Analisaram 42 famílias de Kansas City, que visitaram mensalmente durante três anos após o nascimento de uma criança, gravando tudo o que era dito entre a criança e os pais. Após transcrever cada encontro, os pesquisadores analisaram o estilo de comunicação de cada casal e o respectivo desenvolvimento da linguagem de sua criança.
Descobriram, primeiramente, que o crescimento do vocabulário das crianças variava enormemente de uma classe social para outra, e que a diferença entre as classes começava muito cedo na vida.Aos três anos de idade, as crianças cujos pais eram profissionais tinham um vocabulário de aproximadamente 1.100 palavras, enquanto as crianças de famílias pobres tinham um vocabulário de aproximadamente 525 palavras. Em seguida descobriram que o coeficiente intelectual das crianças era proporcional ao seu vocabulário: o coeficiente médio das crianças filhas de profissionais era de 117, enquanto o das crianças nascidas em famílias modestas, somente de 79.
O mesmo estudo concluiu que, nos primeiros três anos de vida, as crianças de famílias abastadas recebiam, em média, 500.000 expressões de encorajamento contra apenas 80.000 desencorajamentos; enquanto as crianças pobres recebiam apenas 75.000 encorajamentos contra 200.000 expressões de desencorajamento.
Dessa maneira, Hart e Risley mostraram que o tipo de linguagem em relação ao qual as crianças são expostas na primeira infância apresenta uma relação direta com o coeficiente intelectual, a atitude face à vida e os posteriores sucessos ou insucessos acadêmicos da criança.
Outro estudo da antropóloga Annette Lareau e sua equipe, que se instalaram por três semanas seguidas nos lares de famílias de diferentes condições sociais, constatou que as famílias de classe média e alta seguem uma estratégia similar para cultivar seus filhos: eles conversam com seus filhos, tratando-os como adultos em formação, e por isso encorajando-os a fazer perguntas, a pôr em dúvida pressupostos tidos como verdadeiros e a negociar as regras de comportamento no lar. Ao mesmo tempo essas famílias planejam e aplicam incontáveis atividades para desenvolver os talentos das crianças: aulas de piano, visitas a museus, prática de esportes, etc. Enquanto nas famílias operárias dá-se mais liberdade aos filhos para preencher seu tempo livre (brincando na rua com amigos, por exemplo), mas menos liberdade no relacionamento com os adultos.
A conclusão do articulista do diário “The New York Times”, que resumiu o resultado dessas e outras pesquisas do mesmo gênero, foi que “postas em conjunto, as conclusões desses pesquisadores podem ser um pouco desestabilizadoras. [...] Seus trabalhos sugerem que as desvantagens que a pobreza impõe às crianças não são primordialmente relativas a bens materiais. [...] As verdadeiras vantagens que obtêm as crianças da classe média provêm de processos mais sutis: a linguagem que usam os pais, as atitudes face à vida que eles transmitem. Qualquer que seja o método empregado para avaliar a educação das crianças, os pais de classe média tendem a fazê-lo de modo diferente dos pais pobres — e a via que eles seguem tende a fornecer a suas crianças um conjunto de vantagens”.(8)O sucesso do ensino diferenciado entre as classesTony Blair praticamente eliminou, na Inglaterra, o sistema de escola única, instaurando maior concorrência entre as escolas públicas. Na foto o St. John's College, em Cambridge. Contrariamente à França, onde as escolas de sociólogos igualitários gastaram fortunas para tentar provar que bastava fornecer aos alunos uma “igualdade de oportunidades” num sistema escolar único, para assim compensar as desvantagens provenientes da educação familiar, nos Estados Unidos têm-se realizado numerosas experiências, com êxito, a partir do pressuposto contrário: o favorecimento de escolas diferenciadas.
Trata-se de escolas privadas financiadas pelo Estado, que se instalam nos bairros mais pobres e recebem unicamente alunos provenientes de minorias desfavorecidas, como os imigrantes hispânicos ou os negros. Nessas escolas, o horário acadêmico é mais longo e os professores oferecem tutoria adicional após o fim das aulas, assim como aulas aos sábados. Igualmente, os professores tentam modelar o comportamento dos alunos, motivando-os por meio de cartazes, slogans, prêmios e castigos. Pois está provado que crianças respeitosas, disciplinadas e laboriosas alcançam melhores resultados escolares e obtêm melhores empregos no fim dos estudos.A mensagem inerente ao sucesso dessas escolas é, segundo o mesmo articulista do “The New York Times”, a seguinte: “Para conseguir que os alunos pobres compensem as desvantagens, eles não podem receber a mesma educação fornecida aos alunos da classe média, mas uma educação muito melhor: precisam ficar mais tempo nas aulas do que os alunos da classe média, ter professores mais bem treinados e um currículo que os prepare psicológica, emocional e intelectualmente para os desafios que deverão enfrentar no futuro”.(9) Por exemplo, numa das escolas que seguem esse princípio, instalada no Bronx, bairro pobre da cidade de Nova York, a média dos alunos obteve, no teste de controle de 2006, resultados 12% acima da média do estado de Nova York.
Apesar dos excelentes resultados obtidos por essas escolas pioneiras, os principais opositores ao financiamento público de tais escolas especializadas são... os sindicatos de professores! Baseados nos mesmos preconceitos libertários e igualitários de seus colegas franceses, que saem às ruas para fazer manifestações e obrigam o ministro a dar marcha à ré...Para resolver uma crise escolar similar na Inglaterra (segundo a ministra da Educação Ruth Kelly, 40% dos alunos têm um nível escolar insuficiente; de acordo com estatísticas, uma criança de cada cinco não domina o inglês no fim da escola primária, e uma de cada quatro não está à altura em matemática), o governo trabalhista de Tony Blair praticamente eliminou o sistema de escola única, instaurando maior concorrência entre as escolas públicas. Estas, caso o desejem, poderão desfrutar de plena autonomia em relação às autoridades locais que as gerem, e passar a ser administradas por um trust, uma fundação, uma igreja ou um grupo de pais de alunos.(10)Está comprovado o fracasso rotundo da co-educaçãoAté agora, questionar o “dogma” da educação mista acarretava quase inevitavelmente, no Brasil, ser tachado de “retrógrado”, “machista” e outros epítetos do mesmo naipe.Surpreendentemente, em alguns países desenvolvidos, atualmente até as correntes de esquerda e os movimentos feministas começaram a discutir o “dogma”, e a exigir, com base em rigorosos estudos científicos e estatísticas, o reconhecimento do fracasso educativo dos colégios que adotaram a co-educação, como também a necessidade de aceitar o fato de que rapazes e moças são diferentes. Em conseqüência, necessitam de uma educação diferenciada.
Em alguns desses países, a discussão já deu margem à adoção de medidas concretas, como a criação de estabelecimentos educativos públicos single sex (sexo único), ou a separação, dentro de um mesmo colégio, de aulas para rapazes e aulas para moças, numa certa faixa etária.Convém citar, a esse propósito, os interessantes dados fornecidos por um estudo de Maria Calvo Charro, Professora de Direito Administrativo na Universidade Carlos III, de Madrid, sob o título Todos iguais, mas diferentes — O Direito a uma Educação Diferenciada.A acadêmica espanhola cita o caso do estado australiano de New South Wales, o mais populoso da Austrália, onde, em 2001, os pedidos de inscrição nas escolas públicas mistas tinham caído 50%; ou ainda o caso dos länder alemães de Berlim e Renânia do Norte-Westfália, nos quais, desde 1998, por iniciativa dos socialistas e dos verdes, e com o apoio dos movimentos feministas, foram autorizadas as aulas diferenciadas por sexo, após uma investigação séria.Na Grã Bretanha, diz a autora, os melhores colégios não são mistos. Em 2004, o ministro da Educação da época, David Miliband, mostrou a necessidade de insistir nos benefícios obtidos pelos jovens na educação em colégios diferenciados. Mais recentemente, após quatro anos de investigação, um informe preparado pela Faculdade de Educação da Universidade de Cambridge (universidade que obteve, aliás, o 2º lugar no ranking mundial de universidades da classificação da Shangai, acima citado), analisou pormenorizadamente os benefícios que resultam da educação diferenciada, comparada com a educação mista.Na província francófona de Québec, no Canadá, o prestigioso Conselho Superior da Educação julgou necessária, num informe de 1998, uma radical reforma pedagógica destinada a separar moças e rapazes nos colégios, a qual já está sendo posta em prática.Nos Estados Unidos, já em 2002, a administração Bush derrogou a obrigatoriedade da co-educação, imposta naquele país por uma lei de 1972. Em 24 de outubro do ano passado, a secretária de Educação, Margaret Spellings, anunciou novos regulamentos que dão ainda maior flexibilidade aos estabelecimentos educacionais para oferecer aos pais opções adicionais para educar os filhos em regime de separação de sexos.
O exemplo emblemático de sucesso na educação diferenciada é a Young Women’s Leadership Academy, do bairro pobre de East Harlem, que consegue 100% de sucesso de suas alunas (nos dois últimos anos, todas as alunas egressas desse estabelecimento conseguiram entrar na universidade), face à magra média de 42% das escolas mistas de Nova York.Diferenças dos sexos: inatas, e não produto de condicionamentos Steven Rhoads, em seu livro, demonstra cientificamente que as diferenças entre os sexos começam antes do nascimento Qual a razão dessa nova tendência? –– pergunta a Dra. Calvo Charro. “Simplesmente, o reconhecimento de algo que temos tentado negar ao longo dos últimos anos, e que, sem embargo, é evidente, uma vez que o constatamos na nossa vida diária no relacionamento com o sexo oposto: porque somos diferentes”. E explica: “Décadas de investigação na neurociência, na endocrinologia genética, na psicologia do desenvolvimento, demonstram que as diferenças entre os sexos nas suas aptidões, formas de sentir, de trabalhar, de reagir, não são unicamente o resultados de uns papéis tradicionalmente atribuídos a homens e mulheres, nem de condicionamentos histórico-culturais, mas são inatas”. A professora espanhola cita o livro Taking sex differences seriously (Tomando a sério as diferenças entre os sexos), de Steven Rhoads, cujas conclusões científicas demonstram que as diferenças entre os sexos começam antes do nascimento.Mesmo uma conhecida feminista, a deputada socialista alemã Heidi Simonis, reconhece que “é preciso desfazer-se definitivamente do preconceito de que as moças precisam de aulas conjuntas com os rapazes para não ficar em desvantagem no trabalho profissional. Isso é totalmente falso, assim como a afirmação de que rapazes e moças aprendem a conhecer-se melhor estando juntos”.
A parlamentar sueca Chris Heister, presidente da Comissão para o Estudo da Educação daquele país nórdico, apresentou, em julho de 2004, um informe definitivo sobre essa questão, intitulado Todos somos diferentes. Nele se reconhece que o fracasso atual da educação provém do empenho em desprezar as diferenças entre os sexos. Diz o documento: “Tem-se demonstrado que as meninas, quando pequenas, entre os 7 e os 15 anos, assimilam com mais rapidez que os meninos. De outro lado, é preciso tomar em linha de conta que as moças atingem a maturidade muito antes que os rapazes; mesmo que tenham a mesma idade, não se pode tratá-los de igual maneira”.Conclui a Dra. Calvo Charro: “Diversos estudos sobre a co-educação, levados a cabo por pedagogos, psicólogos, psiquiatras e demais profissionais, levam-nos a reconhecer uma série de efeitos amplamente demonstrados: 1) não se consegue a pretensa igualdade de oportunidades e de sexos; pelo contrário, os estereótipos se radicalizam; 2) o rendimento escolar é mais baixo do que nos colégios diferenciados; 3) a violência de gênero é muito elevada; e 4) o conhecimento do sexo oposto, paradoxalmente, é desvirtuado, posto que as moças e os rapazes não se mostram como são, mas como o sexo oposto gostaria que fossem, ocultando muitas reações, sentimentos e idéias por temor do escárnio e da incompreensão, gerando muitas vezes reações de frustração nas moças e de violência machista nos rapazes”.
Novo “sexo débil”: fruto da co-educaçãoAs principais vítimas, curiosamente, não são as moças, mas os rapazes. De fato, os professores gostariam que eles se comportassem de maneira ordenada e tomassem apontamentos meticulosos, como fazem as moças, e tendem a “criminalizar” a conduta dos rapazes. A doença escolar atualmente mais estudada é o suposto “transtorno de déficit de atenção com hiperatividade”, que é tratado com remédios cujo elemento ativo é uma droga com efeito “calmante”, o metilfedinato (calcula-se que, em alguns distritos escolares dos Estados Unidos, entre 20 e 25% dos meninos estão sob os efeitos desse medicamento). Quando, na realidade, sua única “doença” é a de serem meninos e rapazes: ativos, enérgicos, competitivos e irrequietos, se comparados com suas disciplinadas colegas!Não é portanto de se estranhar que, por causa da prevalência da educação indiferenciada, na imensa maioria dos países desenvolvidos, sejam hoje as mulheres que obtenham os primeiros lugares nos liceus e ingressem em maior número nas universidades. O que reforça nos rapazes o preconceito de que “estudar é negócio para moças”. A revista “Business Week” publicou em maio de 2003 um preocupante artigo sobre como os rapazes estão sendo “marginalizados”, dessa forma, do sistema educativo, transformando-se no “sexo débil” dos novos tempos.O lançamento do livro As armadilhas da educação mista, no mesmo ano de 2003, provocou na França viva controvérsia na sociedade e entre os políticos. Seu autor, Michel Fize, é um conhecido especialista nos temas da adolescência, juventude e família, membro do Centro Nacional da Pesquisa Científica. Entre 1997 e 2002, foi assessor técnico da então Ministra da Juventude e Esportes, nem mais nem menos que Marie-Georges Buffet, a atual secretária-geral do Partido Comunista Francês e candidata à presidência da República!Como vencer a crise e voltar ao sistema educativo eficiente?Analisado sumariamente o fracasso rotundo da revolução pedagógica — tanto do ponto de vista estritamente pedagógico, pelo insucesso dos novos métodos de aprendizado, quanto do ponto de vista social, pelo fracasso das políticas visando combater as desigualdades sociais e sexuais — cabe perguntar: qual é a solução para restaurar um sistema educativo eficiente, que satisfaça os pais e beneficie os alunos e a sociedade em seu conjunto?Os partidos de esquerda e alguns centros acadêmicos retrógrados ainda pregam a mesma receita “politicamente correta”, que não deu certo no passado: aumento do gasto público na educação primária e secundária; manutenção de um sistema único de ensino público; imposição de programas uniformes de educação, tanto para os estabelecimentos públicos quanto para os privados; luta contra a violência e sexismo no interior dos colégios e liceus, pregação da tolerância, etc.
A verdadeira solução entretanto consiste em “adorar o que foi queimado e queimar o que foi adorado”. Ou seja, em reconhecer que os sexos são diferentes; que há classes sociais com níveis culturais diversos; que as capacidades individuais são desiguais; e que, portanto, a melhor educação é aquela que mais perfeitamente se adapte ao público-alvo. Portanto, uma educação autônoma e diferenciada.
Os poderes públicos devem reconhecer que os pais de família são os primeiros educadores de seus filhos, e que o papel do Estado não é substituí-los, mas fornecer-lhes um leque de opções, a fim de facilitar-lhes a melhor escolha dentro de suas possibilidades; e, quando necessário, ajudá-los com subsídios personalizados a superar os eventuais handicaps de que padecem seus filhos, devido à pobreza e à deficiente cultura do ambiente familiar.
É preciso ainda reconhecer que, na formação da criança, é fundamental o papel da autoridade (dos pais, dos professores, etc.), da disciplina e do esforço pessoal, renunciando ao pressuposto absurdo de que os alunos podem se auto-educar, e desenvolver espontaneamente suas virtudes morais e seus talentos intelectuais. Nesse sentido, é preciso dar novamente um lugar de destaque ao ensino da Religião e da Moral verdadeiras.É necessário, finalmente, abandonar os preconceitos ridículos que impuseram, em nome da igualdade dos sexos e da liberação da mulher, a educação mista de rapazes e moças, praticamente no mundo inteiro e até na maioria dos estabelecimentos católicos de ensino.
Finalmente é imperioso reconhecer, como afirma William Bennett, autor do Livro das Virtudes para Meninos e Jovens, que a família é o primeiro e melhor Ministério de Saúde, o primeiro e melhor Ministério da Educação e o primeiro e melhor Ministério de Bem-estar Social. É ela que pode mais adequadamente, pela mera convivência no lar, satisfazer as necessidades emocionais, morais e educativas dos mais jovens.
A restauração da educação passa, pois, pela restauração da família. E esta depende, por sua vez, da restauração religiosa e moral de nosso ambiente cultural. O que somente pode ser obtido caso os homens abram suas almas à graça divina, dispensada principalmente mediante os sacramentos, dos quais a Igreja Católica é a depositária.Sem restauração religiosa, é impensável uma restauração pedagógica. Dela depende o futuro de nossas crianças e do mundo.
Santa Ana ensina a Nossa Senhora menina “A família é o primeiro e melhor Ministério de Saúde, o primeiro e melhor Ministério da Educação e o primeiro e melhor Ministério de Bem-estar Social. É ela que pode mais adequadamente, pela mera convivência no lar, satisfazer as necessidades emocionais, morais e educativas dos mais jovens”.
Os “dogmas” do igualitarismo e da co-educação, rejeitados por pais de alunos em diversas nações, são também questionados por cientistas e associações desejosos do retorno ao ensino tradicional
por José Antonio Ureta
O método pedagógico do ditado volta ao ensino na França. Não na escola primária, mas na faculdade!
Os calouros do Instituto Universitário de Tecnologia de Grenoble (IUTG) foram recebidos, no início do ano acadêmico atualmente em curso no hemisfério Norte, com a prática do ditado. Antigamente ela era julgada supérflua a partir do ciclo colegial, e mais recentemente fora praticamente abolida em todos os níveis. Agora retorna na faculdade. Motivo: as empresas queixam-se de que os diplomados do IUTG, contratados por elas, não sabem escrever corretamente.
“Um quarto dos alunos tem problemas no uso da língua”, confirma Pierre Aliphat, presidente da Comissão de Formação do órgão que reúne as principais universidades francesas. “Estamos pagando por quinze ou vinte anos de desvio na maneira de ensinar a ortografia e a gramática na escola primária e no curso secundário”, assevera o pedagogo.(1)
O avanço, na França, dessa forma de analfabetismo funcional tornou-se tão grave que até um antigo militante de extrema esquerda, Jean-Paul Brighelli, professor de Letras em Montpellier, escreveu um livro do qual já se venderam mais de 130 mil exemplares: A fabricação do cretino — A morte programada da escola.(2)
Uma entrevista de Jean-Pierre Demailly, membro da Academia Francesa das Ciências e professor na Universidade de Grenoble I, confirma esse diagnóstico alarmante: “A escola está na iminência do naufrágio. Duas ou três décadas atrás, o ensino primário e o colegial fizeram recuos desastrosos no campo do aprendizado da língua, da gramática, da ortografia, do cálculo, da geometria, da aritmética, do raciocínio lógico”. Colocando o dedo na chaga, denuncia os responsáveis pelo temido naufrágio pedagógico: “Isso se deve, em grande medida, ao fato de que foram abandonados métodos pedagógicos comprovados, em favor de outros que repousavam unicamente sobre teorias pedagógicas abstratas ou sobre considerações teóricas desligadas da realidade”.(3)
Ou seja, as escolas e os alunos franceses serviram de malogradas cobaias para experiências educacionais malsãs, promovidas por ideólogos de teorias antitradicionais.O problema é que a mesma revolução pedagógica foi desencadeada mais ou menos em todos os países ocidentais. As nações européias, pioneiras dessa revolução, são as primeiras a colher seus frutos amargos, em particular a França. De onde ser mais viva lá do que no Brasil a reação dos pais de família e de alguns pedagogos mais avisados.Para se ter uma idéia mais precisa da profundidade da crise e da vivacidade das reações, convém fazer um retrospecto histórico que ajude o leitor a identificar quais as correntes ideológicas que estavam por trás dessa revolução do ensino, e em nome de que utopias pregaram elas dita revolução.
O caso francês parece o mais ilustrativo, motivo pelo qual nos deteremos em analisá-lo com particular atenção, focalizando especialmente o ensino público, mais homogêneo do que o ensino privado, além de ter sido o campo privilegiado para a experimentação das novas teorias pedagógicas.Disputa pelo domínio da alma infantil pós-Revolução FrancesaComo é sabido, antes da Revolução Francesa a educação estava quase integralmente a cargo da Igreja Católica, mediante escolas paroquiais, pensionatos de moças nos conventos femininos, colégios de congregações religiosas e universidades.
Desse predomínio da Igreja no ensino público resultava principalmente grande benefício para a Religião e para as almas. Mas, secundariamente, ele era benéfico também para o Estado, pois tratava-se de uma educação de qualidade, se considerados os conhecimentos da época. Entretanto, após a nacionalização dos bens eclesiásticos decretada pelos revolucionários franceses, Napoleão não só não devolveu os estabelecimentos de ensino à Igreja, mas criou um monopólio estatal para o ensino superior e uniformizou a educação pública, colocando-a sob o controle da Universidade Imperial, por ele fundada.Três décadas mais tarde, sob o regime monárquico-liberal do rei Luiz Filipe (1830-1848), houve uma certa liberalização do ensino, com a Lei Guizot, que permitiu a abertura de escolas privadas, principalmente católicas, mas deixou ainda sob a tutela da Universidade o ensino secundário e o superior. A mesma lei generalizou as Escolas Normais para a formação de mestres.Durante a breve II República (1848-1851) foi aprovada uma Constituição que, embora proclamando “o ensino é livre”, acrescentava que essa liberdade se exercia sob o controle do Estado, não admitindo exceções. O que induziu o deputado católico conde de Montalembert a descrever esse monopólio da universidade pública como um “comunismo intelectual”.
Na prática, porém, a Lei Falloux –– assim denominada de acordo com o nome do ministro monarquista católico que a inspirou –– estabeleceu, a partir do chamado Segundo Império (1851-1870), um modus vivendi entre a escola católica livre e a escola pública, dividindo o ensino primário e secundário entre elas, mas colocando-o sob o controle do Conselho Superior da Instrução Pública, do qual participavam quatro bispos católicos. Tal situação de boa vizinhança perdurou durante todo o período de governo do imperador Napoleão III.
Jules Ferry, várias vezes ministro da Instrução Pública da França, promoveu reformas drásticas para afastar o mais possível a Igreja da educação Porém, com a queda do II Império e o advento da III República, correntes políticas anticatólicas tomaram as rédeas do governo francês e puseram em prática uma política educacional marcadamente anticlerical. Jules Ferry, um dos políticos mais influentes do regime, várias vezes ministro da Instrução Pública e até presidente do Conselho de Ministros (em 1880), promoveu reformas drásticas para afastar o mais possível a Igreja da educação. Além de instituir o ensino primário obrigatório, eliminou a Religião das escolas, impondo a estrita laicidade do ensino, e retirou aos membros das congregações religiosas a licença de ensinar. Ao mesmo tempo, Ferry estendeu até o secundário o ensino público laico e gratuito para as moças; criou uma Escola Normal Feminina para a formação de mestras, segundo o postulado de que “aquele que tem a mulher, tem tudo”. De fato, das Escolas Normais tanto masculinas quanto femininas saíam cada ano o que os franceses chamam jocosamente “hussardos negros da República”, em alusão aos casacos pretos usados pelos professores no século XIX. Isso porque os mestres de escola formavam uma verdadeira legião de “missionários” e “missionárias”, encarregados de “evangelizar” as crianças com o novo “credo” laico e socialista das forças políticas que dirigiam a França republicana.
O objetivo dos que tinham em suas mãos as rédeas da instrução pública francesa era o de formar os jovens nos princípios revolucionários, seguindo o lema de Jean Macé, condiscípulo de Ferry e fundador da Liga do Ensino: “Aquele que tem as escolas da França, tem a França”.Porém, visando obter o prestígio necessário para atingir esse resultado, a escola pública rivalizava com a escola privada na qualidade da educação oferecida, procurando realizar a utopia de Jules Ferry de “que os camponeses possam recitar Virgílio enquanto sulcam a terra com o arado”. Igualmente, em matéria de formação moral dos alunos, os professores laicos rivalizavam com o vigário no intento de educar cidadãos honrados e trabalhadores. Pode-se afirmar que tal ensino público de qualidade, e seguindo padrões tradicionais de moral, perdurou na França até a Segunda Guerra Mundial.Nova utopia: nivelar as classes sociais pela educaçãoApós o conflito mundial de 1939-1945, a instrução pública foi dominada por militantes de esquerda (comunistas e socialistas), tanto pelo imenso poder que exerceram a partir de então nos poderosos sindicatos de professores, quanto por terem infiltrado seus elementos em toda a estrutura administrativa do Ministério da Educação.
Notadamente durante a década de 1960-1970, esses detentores das rédeas da educação pública passaram a ter um segundo objetivo revolucionário: promover a igualdade social. De fato, até o conflito mundial, apesar do crescimento excepcional da escolarização, as naturais desigualdades de educação ainda eram muito grandes. Havia claramente duas linhas paralelas: para os filhos de operários, uma educação básica, que eventualmente se estendia a uma educação técnica; e uma educação acadêmica de alto nível para os filhos das classes superiores, que em muitos casos abria-lhes depois as portas da universidade. Tal situação tendia a tornar estável a hierarquia social, pois somente os mais capazes da classe operária podiam ascender às classes superiores.
Para atingir seus objetivos revolucionários de eliminar gradualmente as classes sociais, os ideólogos socialistas, particularmente os representantes de escolas de sociologia obcecadas pela igualdade social — por exemplo, os seguidores de Pierre Boudieu, o qual afirmava ser a escola uma máquina de reprodução das elites — propuseram programas educativos tendentes a fornecer, a todos os alunos, “igualdade de oportunidades” na educação. Isto compensaria, segundo eles, a desvantagem inicial de instrução de que padecem as crianças provenientes de famílias de condição modesta.Com a vitória do candidato socialista François Mitterrand, em 1981, houve uma tentativa de nacionalizar o ensino privado. Contudo, o projeto fracassou devido à oposição dos pais de família, que realizaram marcha com 1 milhão de participantes, acarretando o abandono da reforma e a queda do ministro Savary.
Mesmo antes disso, os programas de educação já tinham sido vítimas dessa corrente sociológica igualitária, a qual conseguiu instituir um programa único durante quase todo o curso colegial, destinado a eliminar a antiga diferença entre as escolas técnicas e o curso acadêmico geral. O Colégio Único devia encorajar o maior número de alunos a continuar no Liceu com os estudos gerais, a caminho de uma universidade aberta a todos.
Posteriormente foram criadas nas periferias urbanas, onde residem as famílias pobres e os imigrantes, Zonas de Educação Prioritária, cujos estabelecimentos de ensino recebem subsídios especiais para compensar o déficit de educação dos alunos (maior número de professores, classes com menos alunos, etc.). Houve, por isso mesmo, um crescimento exponencial do gasto público: na França, ele é superior ao montante recolhido pelo imposto de renda e representa 7% do PIB, sendo os maiores beneficiários dessa situação os ensinos primário e secundário.
Daí em diante, segundo esses sociólogos marxistas, a desigual posição de cada um na sociedade resultaria não mais do nascimento, mas unicamente do mérito individual. Com isso, as classes sociais iriam gradualmente se aproximando até desaparecerem, realizando assim a utopia igualitária do comuno-socialismo.
Efeitos da Revolução de Maio de 68 na educaçãoO Prof. Philippe Meirieu, um dos líderes da corrente de pedagogos maníacos da “autoconstrução” do aluno Concomitantemente, fizeram-se sentir os efeitos catastróficos da revolução estudantil da Sorbonne, em maio de 1968, os quais podem ser comparados aos de uma bomba atômica. Numa primeira fase, houve verdadeira explosão social de caráter libertário, que teve como principal slogan “é proibido proibir”. Logo após, verificou-se um refluxo, por causa da reação que seus excessos provocaram na imensa maioria dos franceses. Mas, numa terceira fase, começou uma lenta e persistente irradiação dos princípios libertários de 1968 para toda a sociedade, impregnando com seus efeitos maléficos todas as instituições sociais: o exercício da autoridade por um superior (pai, professor, patrão, policial, juiz, etc.) passou a ser visto com maus olhos, na medida em que coloca entraves à expressão livre e espontânea dos sentimentos e desejos dos seus subordinados.Essa impregnação libertária não tardou a entrar em choque com a escola tradicional, na sua procura de um terceiro objetivo revolucionário: a criação de um homem novo.No passado, o mestre era o “magister” (em latim, aquele que é mais, que sabe mais, e que transmite à criança seu saber), cuja função consistia em “e-ducere” (elevar, conduzir para fora de si), no seio de uma “scholè” (que, em grego, significa pausa, lazer fecundo). Ou seja, o clima da escola devia ser um santuário onde não penetravam as agitações da vida social.
A escola tradicional sofreu então o impacto de toda uma corrente de pedagogos maníacos da “autoconstrução” do aluno, cujo principal representante é hoje na França o Prof. Philippe Merieu, do Instituto Nacional de Pesquisas Pedagógicas, instituição encarregada de estabelecer os programas de estudo das Escolas Normais formadoras dos mestres.Sob sua égide a escola passou a ser, não mais um santuário, mas um lugar de vida, aberta a todos os ventos que sopram sobre a sociedade. Em lugar de ser um lugar de transmissão do saber, passou a ter como função principal a de incentivar a autonomia de rapazes e moças, pela qual cada aluno deve construir, ele próprio, seu saber. Em conseqüência, é o professor que deve entrar na escola do aluno, e não o contrário.Numa palavra, trata-se de uma escola de autodidatas. Um relatório oficial do Ministério da Educação, denominado Relatório Migeon, declarava o seguinte: “A apropriação dos conhecimentos é o oposto da transmissão dos conhecimentos daquele que sabe àquele que não sabe”. O Sr. Philippe Merieu declarava que “a criança deve ser a autora de sua educação, de seu projeto pessoal, de sua própria construção de saberes”, pelo que “cada vez que se explica algo ao aluno, isso o impede de inventar” (sic!).
Do ponto de vista da formação do caráter, mais do que uma escola, trata-se de uma república de alunos, organizada segundo os princípios socialistas de igualdade e liberdade radicais. Nessa pseudo-escola não há hierarquia entre professores e estudantes, não há notas (para não haver concorrência entre os alunos), não se repete o ano, não se orienta os alunos numa direção determinada segundo suas aptidões, e, acima de tudo, não há disciplina. Para avaliar o grau de preparo dos pedagogos em formação para esse novo estilo de educação, foi proposto a dois grupos de estudantes do Instituto Universitário de Formação de Mestres, de Paris, o seguinte caso: oferecer soluções para acabar com uma desordem provocada pelos alunos numa sala de aulas. A solução proposta pelo primeiro grupo foi a seguinte: o professor devia negociar com os alunos o nível de barulho e de movimentação aceitáveis daí em diante; a do segundo grupo foi que o professor devia fazer os alunos praticarem a ioga!Novos métodos revolucionários de aprendizadoNeste manual de leitura de 176 páginas, descobre- se a primeira vogal somente na página 26... Aparentemente para combater o “individualismo” da sociedade burguesa e favorecer o “espírito coletivo” da nova sociedade socialista, esses neopedagogos inventaram novas técnicas de ensino, notadamente para o aprendizado da leitura e da aritmética.No método tradicional de aprendizado da leitura, ensinava-se primeiro ao aluno cada uma das letras; depois, a reuni-las em sílabas e a familiarizar-se com o som das sílabas; em seguida, a compor e reconhecer as palavras; e, finalmente, as frases. Ou seja, partia-se da unidade, a letra, e iam-se formando grupos cada vez maiores, até um texto longo. Em oposição a esse método natural, inventou-se o chamado método global de aprendizado, o qual pretendia fazer o caminho contrário, indo diretamente às palavras e as frases. Esse método foi, na realidade, uma adaptação de um sistema empregado originariamente na Escola de Surdos-mudos de Paris, segundo o qual não se ensinava previamente as letras, as sílabas e os sons — o que não teria sentido, tratando-se de surdos-mudos —, mas aprendia-se a “fotografar” e memorizar as palavras inteiras, como se fossem ideogramas chineses. Daí seu nome de método global.Assim, por exemplo, no livro Je lis avec Dagobert (Eu leio com Dagoberto), um manual de leitura de 176 páginas, descobre-se a primeira vogal somente na página 26. A primeira consoante figura na página 46, e a palavra sílaba é mencionada pela primeira vez na página 99, muito além da metade do livro!Analogamente no ensino das operações aritméticas. Sob o influxo de um grupo esotérico de matemáticos da Escola Normal Superior de Paris, chamado grupo Bourbaki, os programas escolares impuseram o ensino das chamadas matemáticas modernas, e notadamente da teoria dos conjuntos. Ao invés de começar pela idéia de “unidade” (um pauzinho, dois pauzinhos), unidades que vão se adicionando e subtraindo, etc., obriga-se os alunos a abordar diretamente um coletivo de elementos –– digamos, “um sub-conjunto de cinco peras” –– ao qual se acrescenta ou do qual se subtrai um outro grupo –– digamos, “um sub-conjunto de 3 peras” –– formando um “conjunto de 8 peras” (ou um “conjunto de 2 peras”, no caso de uma subtração). O que, na aritmética, equivale ao que é, na leitura, aprender as palavras sem ter aprendido as letras. Isso supõe, por parte das crianças, aptidões intelectuais muito acima da média geral.Também, nesse ensino moderno das matemáticas, intentou-se o uso de uma base de numeração distinta da base decimal (como na informática, em que a base é binária). Isso equivale, mais ou menos, a ensinar a física a partir da lei da relatividade! Só os gênios conseguem acompanhar.O resultado foi que a maioria dos alunos não aprendia direito as noções básicas da aritmética. Interpelado a respeito desse insucesso, um ex-ministro francês da educação, o filósofo Luc Ferry, chegou a declarar: “Não há problema: para isso podem usar a calculadora”!O que há de comum entre o método global de leitura e a teoria dos conjuntos é, ao que parece, o ódio pelo ser individual como base do universo criado, e portanto do Ser que o criou.
Obrigar as crianças a pensar primeiro “no coletivo” não será uma forma de prepará-las para o socialismo, até quiçá para o panteísmo? É de se suspeitar...A “rebelião” dos pais de famíliaO fracasso do ensino público tem favorecido a criação de vários movimentos de pais de alunos que, indignados com o efeito pernicioso que as experiências pedagógicas têm provocado na instrução de seus filhos, começaram a reagir, alertando o público, os meios acadêmicos, os políticos e a mídia.O seguinte artigo, do conhecido quotidiano parisiense “Le Figaro”, retrata a fisionomia e a ação dos mais conhecidos movimentos de reação:Esses rebeldes no assalto da fortaleza “Educação Nacional”Marie-Estelle Pech“Le Figaro”, 20-10-2006A partir de dois ou três anos atrás, graças a seu caráter militante sem tréguas e à sua presença crescente na mídia, certas associações pesam cada vez mais no debate sobre a educação.“SOS Educação”, “Salvar a Literatura”, “Salvar as Matemáticas”, Laurent Lafforgue, Jean-Claude Brighelli, Marc Le Bris ou Rachel Boutonnet... De dois ou três anos para cá, associações e personalidades interferem no debate político sobre a educação, quebrando o monopólio do diálogo entre o ministro da Educação e os sindicatos de professores.
Nem todos defendem as mesmas teses nem propõem as mesmas soluções, mas eles estão de acordo no essencial: a constatação do estado catastrófico do ensino na França. No estilo de Fanny Cappel, diplomada em Letras Clássicas e membro de “Salvar a Literatura”, uma associação de cerca de 400 professores, todos denunciam o impacto de “certos dogmas pedagógicos” sobre a formação dos mestres: “Dogmas tão absurdos quanto perigosos, que impedem os professores de exercer livremente sua profissão, e que impedem os alunos de aprender qualquer coisa de modo sólido”.Igualmente, todos deploram o “nível lamentável” dos que são aprovados no bacharelado, responsável pelo insucesso de 40% dentre eles no primeiro ciclo universitário. “Salvar a Literatura”, bem como “SOS Educação” estigmatizam um “igualitarismo obtuso” que, sob pretexto de oferecer a todos um “pretenso sucesso”, baixou o nível dos diplomas, eliminou a repetição em caso de fracasso nos exames, uniformizou o curso de todos os alunos e induziu a uma “heterogeneidade incontrolável” nas salas de aula.
Todos estão de acordo em postular um “retorno aos fundamentos”, apreciado pelo atual ministro da Educação Nacional, particularmente nas escolas primárias. Laurent Lafforgue é um defensor fervoroso desse retorno ao básico. Esse conhecido matemático, que ganhou a medalha Fields [principal prêmio internacional de matemática], tornou-se conhecido do grande público no ano passado, após ter comparado os “especialistas e sindicatos da Educação Nacional” aos khmers rouges [as milícias comunistas que promoveram o genocídio do Cambodge em 1975]. Uma afronta que lhe valeu a exclusão do Alto Conselho da Educação, responsável pela reforma dos programas. Para ele, o sistema de ensino público está em via de “destruição total”, devido a políticas impostas pelo “conjunto da nomenklatura da Educação Nacional”.Os pedagogos no banco dos acusadosSignatário de um apelo recente em favor da “refundação da escola”, juntamente com Rechel Boutonnet (a mestra que prega em seus best sellers o retorno do método silábico), e Jean-Claude Brighelli, Lafforgue freqüenta hoje os colóquios sobre a educação nacional. Recentemente, numa reunião organizada pela associação “Família, escola, educação”, ele dedicou seu tempo a denunciar a desestruturação do ensino na escola primária e suas repercussões no ensino médio e superior. Para o matemático, “pode-se resumir uma boa parte dos males atuais dizendo que quiseram proscrever todo e qualquer ensino explícito, qualificado de dogmático, e substituí-lo por um espírito que pretensamente favorece a experiência e a descoberta pessoais”. Assim, “onde os antigos programas do primário exigiam aprender as conjugações verbais, os novos convidam a observar as variações da forma verbal”.
Os pedagogos, sempre e ainda mais agora, no banco dos réus.No que diz respeito às soluções, a unanimidade se reduz a pedaços. “SOS Educação” aprecia “Salvar a Literatura”, mas esta última não retribui o apreço. Deseja distanciar-se de “pressupostos ideológicos” que ela não partilha.“Salvar a Literatura” acredita numa escola republicana forte, capaz de transmitir a todos os alunos que lhe são confiados –– “quaisquer que sejam sua origem social, confessional, cultural" –– um patrimônio comum de conhecimentos de alcance universal, verdadeira base da Nação.
Os militantes de “SOS Educação” seriam, segundo Fanny Cappel, ultra-liberais que querem estender “abusivamente a todos os campos da atividade humana o conceito, aliás desviado, de liberdade...”.
O feminismo e a co-educação obrigatóriaOutro aspecto da revolução pedagógica desenvolvida na segunda metade do século XX foi o de tornar obrigatória ou, pelo menos, de favorecer abertamente a co-educação, não somente na escola primária mas durante todo o curso colegial e o liceu.Segundo as feministas da primeira hora (cuja inspiradora foi Simone de Beavoir em seu livro O Segundo Sexo, no qual afirmava que “a mulher não nasce, mas se faz”), a educação mista deveria diminuir as desigualdades entre homens e mulheres no acesso ao trabalho e às altas funções. Mais ainda, deveria contribuir para acabar com os estereótipos feminino e masculino, os quais, segundo o feminismo, perpetuam a sociedade patriarcal, necessariamente opressiva para as mulheres.
Frutos amargos da revolução pedagógicaGilles de Robien, ministro francês de educação, tentou várias vezes corrigir o rumo do ensino Passaram-se 40 anos desde que se realizaram essas primeiras experiências. Pouco mais tarde, tais métodos “modernos” de ensino foram impostos, em maior ou menor medida, nos programas educativos de quase todos os países ocidentais. Qual foi o resultado? Um verdadeiro desastre...Senão, vejamos o caso francês. Quanto às operações básicas da aritmética, o panorama é catastrófico. Numa avaliação dos alunos de 2ª série, o resultado foi que somente 1 aluno em cada 4 consegue fazer uma divisão de 178,8 por 8! De fato, o ensino segundo o método das matemáticas modernas já foi abandonado há um certo tempo.Quanto aos resultados do método global de aprendizado da leitura, segundo dados fornecidos pelo Movimento SLECC (acrônimo de Saber Ler Escrever Contar Calcular), de 15 a 20% dos alunos que entram no colegial ainda não sabem ler, e 13% dos alunos que terminam a 1ª série continuam sem ter aprendido (mas, segundo a Sra. Ketherine Weiland, diretora da Inspeção Geral de Letras do Ministério da Educação, isso não é grave porque eles ainda não terminaram os estudos). O Relatório Périssol descobriu que 11% dos jovens de 17 a 22 anos têm dificuldades de leitura e escrita, suficientes para que sua vida diária seja afetada. Trata-se, portanto, de analfabetos funcionais.Esse diagnóstico de naufrágio provocou o que o jornal “Le Monde” qualificou com o título A querela dos globalistas e dos silábicos. De um lado, segundo o quotidiano, “os partidários do método global. Esses defendem uma técnica que se assemelha à magia: em poucas palavras, não se aprendem nem os sons, nem as letras, nem as sílabas: fotografam-se as palavras e repetem-se. [...] Do outro lado, os partidários do método silábico. O dogma difere: a criança é convidada a associar a cada sílaba um som e a formar pacientemente palavras, e, depois frases. [...] Não falta mais nada para desencadear uma nova guerra escolar. [...] A leitura tornou-se nossa mais recente guerra de religião! Essa rachadura certamente separa hoje mais do que a divisão entre a esquerda e a direita, entre o Mac[Intosh] e o PC, entre [os dicionários] Petit Robert e Larousse”.(4)Na realidade, é uma querela entre os professores formados nas Escolas Normais, partidários dos métodos ditos “modernos”, e os pais de família que desejam voltar aos métodos tradicionais, apoiados numa minoria de professores com bom senso.
O resultado da querela foi que o atual ministro francês de educação, Gilles de Robien, passou uma circular anunciando a retomada do método silábico, a qual suscitou uma rebelião dos professores apoiada pelos diretores de estabelecimentos, 12.000 dos quais fizeram uma manifestação em Paris, o que forçou o ministro a voltar vergonhosamente atrás.
Quando o ministro Robien anunciou no diário “Le Figaro” que iria iniciar a reforma do ensino da gramática e do cálculo na escola primária, e, especificamente, que as quatro operações aritméticas deveriam ser aprendidas o mais cedo possível, os mesmos especialistas da pedagogia replicaram, no dia seguinte, que o ministro não entende nada de educação e que, segundo seus estudos, o aprendizado precoce da divisão é nefasto para os alunos (sic!).(5) Tal é o peso dos preconceitos pedagógicos e dos interesses corporativos dos sindicatos de professores. Os alunos, que vão às favas!Repercussão da revolução escolar no ensino universitárioEstudantes franceses participam de manifestação em Paris junto com a CUT e partidos de esquerda Essa deterioração inexorável do ensino primário e secundário tem afetado as universidades francesas de duas maneiras.
De um lado, como o maior esforço financeiro tem sido dirigido para as Zonas de Educação Prioritária, sobra muito pouco dinheiro público para as universidades, as quais carecem dos professores necessários para atender adequadamente o conjunto dos estudantes, assim como lhes faltam laboratórios e equipamentos de pesquisa de alta tecnologia.
De outro lado, exceto no grupo reduzido das chamadas Grandes Escolas, nas universidades francesas não há um processo de seleção de candidatos: qualquer estudante que, no fim do Liceu, consegue passar no exame de bacharelado tem direito de se inscrever numa faculdade. Mas grande parte dos que ingressam nas faculdades não estão preparados. O resultado é que 40% dos que começam estudos universitários não conseguem terminar o 2º ano e obter um Diploma de Estudos Universitários Gerais. Dessa maneira, a cada ano letivo, 80 mil estudantes deixam a faculdade sem nenhum diploma. A verdadeira seleção dá-se nesse momento, porque continuam os estudos superiores rumo ao mestrado e ao doutorado somente aqueles que teriam conseguido passar nos exames de seleção, caso houvesse um filtro de entrada. Com isso as universidades perderam tempo e dinheiro, e os estudantes capazes de continuar os estudos foram afetados ao receber um ensino necessariamente inferior, em anfiteatros superlotados e sem um acompanhamento personalizado, por causa do excesso de alunos.
O resultado dessa situação foi que as universidades francesas manifestamente estão perdendo a corrida em relação a suas concorrentes estrangeiras. Segundo a chamada classificação de Shangai, que cataloga as 500 melhores universidades do mundo de acordo com um leque de critérios objetivos, somente três universidades francesas situam-se entre as 100 primeiras, sendo que a melhor colocada ocupa o 45º lugar!Isso constitui um golpe muito duro não somente para o orgulho nacional francês, mas sobretudo para o desenvolvimento do país, porque suas melhores cabeças começam a migrar para centros de alta tecnologia situados nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos. E lá se estabelecem depois para trabalhar.“S.O.S. Educação”: exemplo de reação bem sucedidaNa ponta de lança do combate à degradação do ensino público e ao predomínio dos sindicatos de professores na preparação dos programas escolares, encontra-se na França a associação “S.O.S. Educação”.
A entidade foi fundada em novembro de 2001, por um grupo de jovens pais de alunos reunidos em torno de Sylvain Marbach, engenheiro de pesquisas, e de Domitille Létondot, psicóloga escolar. Esses jovens pais de família foram todos educados na década de 1980/1990 e ficaram escandalizados com as deficiências de um sistema supostamente democrático, mas que não corresponde às necessidades da maioria dos alunos. Decidiram então criar um movimento para informar os cidadãos sobre o estado da escola e defender suas idéias junto aos políticos.
O programa da associação resume-se em 10 pontos:1. Dar prioridade à transmissão do saber; 2. Adaptar os cursos ao nível dos alunos;3. Todas as crianças devem saber ler no fim da escola primária; o método global deve ser substituído pelo método silábico;4. Verificar os conhecimentos adquiridos pelos alunos antes de admitir seu ingresso no colégio e no liceu;5. Dar uma qualificação profissional já no fim dos estudos secundários; revalorizar as escolas técnicas e, para certas profissões, permitir aprendizes desde a idade de 14 anos;6. Restaurar o prestígio e a autoridade dos professores;7. Restaurar a disciplina dentro da aula; enviar os pré-delinqüentes para internatos de reabilitação;8. Organizar cursos de civismo, que ensinem aos alunos seus deveres, pelo menos tanto quanto são ensinados os seus direitos;9. Limitar o poder dos sindicatos de professores na Educação Nacional;10.
Sancionar os professores que cometem faltas graves.Um artigo de “Le Monde”, de 8 de novembro de 2006, sob o título O marketing de SOS Educação para impor o b.a.-ba, reconheceu a vitalidade e a eficácia dos métodos da associação:“Na sede da associação, no 13º bairro de Paris, oito empregados e voluntários se empenham, por meio da Internet e de remessas de mala-direta, em enviar duas mensagens: subjacente à denúncia dos resultados desastrosos de método global [do aprendizado da leitura], defende-se uma vigorosa ideologia anti-funcionários.
“SOS Educação” combate as ‘velhas’ organizações ‘subvencionadas’ que são seus olhos; os sindicatos de professores; os movimentos pedagógicos; e, em geral, o que ela chama de ‘corporativismos’; por vezes, ‘agitadores que fazem subversão nas escolas’. A associação define-se como ‘rigorosamente independente de toda e qualquer organização política, sindical ou profissional’, assumindo uma orientação baseada na ‘ética da responsabilidade individual’.
Seu público é composto por todos aqueles que vêem nas ‘pedagogias modernas’ um ‘desastre’, que esperam ‘o restabelecimento da autoridade dos professores’, a ‘reintrodução dos cursos de Moral’, ou ainda ‘um exame de admissão no colegial’, e estão dispostos a contribuir financeiramente para a causa. O emprego da mala-direta teve seus efeitos positivos: a associação congrega 220.000 simpatizantes — pessoas que responderam positivamente a seu ‘referendum nacional sobre a educação’, lançado em 2005 — bem como 64.000 membros que contribuíram com uma cotização mínima de 15 euros [40 reais]”.*________________*Cfr. Le marketing e SOS Education pour imposer le b.a. –ba, Luc Cédelle, in "Le Monde", 8-11-2006.Desmentido o mito da “igualdade de oportunidades”Um socialista empedernido poderia eventualmente admitir que o ensino francês está perdendo competitividade face a seus concorrentes, principalmente em relação aos países anglo-saxões. Mas, reconhecido isso, ele apressar-se-ia em insistir que, mesmo assim, trata-se de um imperativo moral: a educação de massas não procura a excelência de uns poucos privilegiados, mas a “igualdade de oportunidades” para todos e a eliminação das desigualdades sociais.Entretanto, mais uma vez os resultados, 40 anos depois, provam que a realidade desmente essa utopia.Certamente houve, na segunda metade do século XX, um crescimento excepcional da escolarização: em 50 anos, a duração média da escolaridade passou de 7 a 14 anos; e a proporção de bacharéis entre os egressos do liceu passou de 5%, em 1950, a cerca de 80% em 2006. Se nos anos 40 somente 6% de filhos de operários passavam o bacharelado, ao lado de 25% de filhos de empregados e 66% de filhos de profissionais, na geração atual essa proporção passou a 30%, 50% e 75% respectivamente (ou seja, atualmente cinco vezes mais filhos de operários e duas vezes mais filhos de empregados obtêm o bacharelado do que 60 anos atrás).
Porém, todos os estudos sociológicos confirmam que isso não representou uma mudança na “pirâmide” dos resultados acadêmicos, nem na “pirâmide” dos empregos após os estudos, nem na pirâmide social. Um dos motivos é que o aumento do número de diplomas os desvalorizou: hoje, para obter um bom emprego, não basta um diploma, é necessário o bom diploma da faculdade prestigiosa. Outra explicação é que as carreiras universitárias longas, que conduzem aos cargos mais elevados e mais bem remunerados, continuam sendo primordialmente procuradas pelos filhos de profissionais, ao passo que os filhos de operários ingressam majoritariamente em carreiras técnicas curtas, quando não começam a trabalhar logo após o fim dos estudos secundários. Dessa forma, apesar dos fortes investimentos financeiros do Estado, permanece quase inalterada a pirâmide social. A natureza se vinga.Em inícios de 2006, o jornal esquerdista “Le Monde” publicou interessante série de artigos sobre a crise social francesa. O quarto da série, escrito pelo jornalista Thomas Piketty, versou sobre Educação: as promessas da discriminação positiva. Ele constatava amargamente que “a elevação geral dos níveis de educação suscitou frustrações à altura das esperanças que ela tinha feito nascer. As desigualdades de percurso e de sucesso escolar apenas se deslocaram para cima, quando não aumentaram”.
A explicação do articulista é simples de compreender: “Antigamente a desigualdade era bruta: alguns deviam começar a trabalhar aos 14 ou 16 anos para ganhar sua vida, enquanto outros tinham a chance de poder continuar seus estudos. Hoje todos podem, ou crêem poder, atingir uma formação longa; mas desigualdades mais sutis reaparecem no caminho (entre cursos geral e profissional no liceu, entre as diferentes carreiras no ensino superior...).
Aqueles que perdem a boa opção, e que no fim dos estudos conhecem o maior índice de desemprego, são freqüentemente os mesmos que antigamente começavam a trabalhar mais cedo — só que agora nem sequer encontram emprego”.(6)A razão da persistência dessas desigualdades de resultado, primeiro na educação e depois no curso da vida, encontra-se na existência da família, esteio de toda sociedade bem constituída.Um meio para eliminar a família: educação estatalO ensino socialista conduz à eliminação da família: a educação das crianças deve ser diretamente realizada pelo Estado Nos primórdios dessas experiências de engenharia social, o Instituto Nacional de Estudos Demográficos da França publicou, em 1961, um trabalho intitulado O sucesso social na França, que estudava as circunstâncias exteriores — familiares e sociais — suscetíveis de influenciar a carreira das pessoas. Referindo-se à família, o estudo chegava, sem pestanejar, à seguinte conclusão: “Enquanto ela continuar a preencher, na sociedade, suas funções essenciais de identificação social e de perpetuação de um nome, assim como de educação das crianças, parece muito difícil garantir a todos a igualdade completa de oportunidades”.(7) (Por isso, para Engels, o comunismo devia conduzir à eliminação da família, e a educação das crianças deveria ser diretamente realizada pelo Estado).
De fato, estudos americanos recentes confirmam, de modo insofismável, que é mesmo no interior da família, e desde o começo da vida, que as normais diferenças de nível educacional começam a aparecer entre as crianças.Dois psicólogos infantis da Universidade de Kansas (EUA), Betty Hart e Todd R. Risley, fizeram uma pesquisa aprofundada a respeito da aquisição da linguagem. Analisaram 42 famílias de Kansas City, que visitaram mensalmente durante três anos após o nascimento de uma criança, gravando tudo o que era dito entre a criança e os pais. Após transcrever cada encontro, os pesquisadores analisaram o estilo de comunicação de cada casal e o respectivo desenvolvimento da linguagem de sua criança.
Descobriram, primeiramente, que o crescimento do vocabulário das crianças variava enormemente de uma classe social para outra, e que a diferença entre as classes começava muito cedo na vida.Aos três anos de idade, as crianças cujos pais eram profissionais tinham um vocabulário de aproximadamente 1.100 palavras, enquanto as crianças de famílias pobres tinham um vocabulário de aproximadamente 525 palavras. Em seguida descobriram que o coeficiente intelectual das crianças era proporcional ao seu vocabulário: o coeficiente médio das crianças filhas de profissionais era de 117, enquanto o das crianças nascidas em famílias modestas, somente de 79.
O mesmo estudo concluiu que, nos primeiros três anos de vida, as crianças de famílias abastadas recebiam, em média, 500.000 expressões de encorajamento contra apenas 80.000 desencorajamentos; enquanto as crianças pobres recebiam apenas 75.000 encorajamentos contra 200.000 expressões de desencorajamento.
Dessa maneira, Hart e Risley mostraram que o tipo de linguagem em relação ao qual as crianças são expostas na primeira infância apresenta uma relação direta com o coeficiente intelectual, a atitude face à vida e os posteriores sucessos ou insucessos acadêmicos da criança.
Outro estudo da antropóloga Annette Lareau e sua equipe, que se instalaram por três semanas seguidas nos lares de famílias de diferentes condições sociais, constatou que as famílias de classe média e alta seguem uma estratégia similar para cultivar seus filhos: eles conversam com seus filhos, tratando-os como adultos em formação, e por isso encorajando-os a fazer perguntas, a pôr em dúvida pressupostos tidos como verdadeiros e a negociar as regras de comportamento no lar. Ao mesmo tempo essas famílias planejam e aplicam incontáveis atividades para desenvolver os talentos das crianças: aulas de piano, visitas a museus, prática de esportes, etc. Enquanto nas famílias operárias dá-se mais liberdade aos filhos para preencher seu tempo livre (brincando na rua com amigos, por exemplo), mas menos liberdade no relacionamento com os adultos.
A conclusão do articulista do diário “The New York Times”, que resumiu o resultado dessas e outras pesquisas do mesmo gênero, foi que “postas em conjunto, as conclusões desses pesquisadores podem ser um pouco desestabilizadoras. [...] Seus trabalhos sugerem que as desvantagens que a pobreza impõe às crianças não são primordialmente relativas a bens materiais. [...] As verdadeiras vantagens que obtêm as crianças da classe média provêm de processos mais sutis: a linguagem que usam os pais, as atitudes face à vida que eles transmitem. Qualquer que seja o método empregado para avaliar a educação das crianças, os pais de classe média tendem a fazê-lo de modo diferente dos pais pobres — e a via que eles seguem tende a fornecer a suas crianças um conjunto de vantagens”.(8)O sucesso do ensino diferenciado entre as classesTony Blair praticamente eliminou, na Inglaterra, o sistema de escola única, instaurando maior concorrência entre as escolas públicas. Na foto o St. John's College, em Cambridge. Contrariamente à França, onde as escolas de sociólogos igualitários gastaram fortunas para tentar provar que bastava fornecer aos alunos uma “igualdade de oportunidades” num sistema escolar único, para assim compensar as desvantagens provenientes da educação familiar, nos Estados Unidos têm-se realizado numerosas experiências, com êxito, a partir do pressuposto contrário: o favorecimento de escolas diferenciadas.
Trata-se de escolas privadas financiadas pelo Estado, que se instalam nos bairros mais pobres e recebem unicamente alunos provenientes de minorias desfavorecidas, como os imigrantes hispânicos ou os negros. Nessas escolas, o horário acadêmico é mais longo e os professores oferecem tutoria adicional após o fim das aulas, assim como aulas aos sábados. Igualmente, os professores tentam modelar o comportamento dos alunos, motivando-os por meio de cartazes, slogans, prêmios e castigos. Pois está provado que crianças respeitosas, disciplinadas e laboriosas alcançam melhores resultados escolares e obtêm melhores empregos no fim dos estudos.A mensagem inerente ao sucesso dessas escolas é, segundo o mesmo articulista do “The New York Times”, a seguinte: “Para conseguir que os alunos pobres compensem as desvantagens, eles não podem receber a mesma educação fornecida aos alunos da classe média, mas uma educação muito melhor: precisam ficar mais tempo nas aulas do que os alunos da classe média, ter professores mais bem treinados e um currículo que os prepare psicológica, emocional e intelectualmente para os desafios que deverão enfrentar no futuro”.(9) Por exemplo, numa das escolas que seguem esse princípio, instalada no Bronx, bairro pobre da cidade de Nova York, a média dos alunos obteve, no teste de controle de 2006, resultados 12% acima da média do estado de Nova York.
Apesar dos excelentes resultados obtidos por essas escolas pioneiras, os principais opositores ao financiamento público de tais escolas especializadas são... os sindicatos de professores! Baseados nos mesmos preconceitos libertários e igualitários de seus colegas franceses, que saem às ruas para fazer manifestações e obrigam o ministro a dar marcha à ré...Para resolver uma crise escolar similar na Inglaterra (segundo a ministra da Educação Ruth Kelly, 40% dos alunos têm um nível escolar insuficiente; de acordo com estatísticas, uma criança de cada cinco não domina o inglês no fim da escola primária, e uma de cada quatro não está à altura em matemática), o governo trabalhista de Tony Blair praticamente eliminou o sistema de escola única, instaurando maior concorrência entre as escolas públicas. Estas, caso o desejem, poderão desfrutar de plena autonomia em relação às autoridades locais que as gerem, e passar a ser administradas por um trust, uma fundação, uma igreja ou um grupo de pais de alunos.(10)Está comprovado o fracasso rotundo da co-educaçãoAté agora, questionar o “dogma” da educação mista acarretava quase inevitavelmente, no Brasil, ser tachado de “retrógrado”, “machista” e outros epítetos do mesmo naipe.Surpreendentemente, em alguns países desenvolvidos, atualmente até as correntes de esquerda e os movimentos feministas começaram a discutir o “dogma”, e a exigir, com base em rigorosos estudos científicos e estatísticas, o reconhecimento do fracasso educativo dos colégios que adotaram a co-educação, como também a necessidade de aceitar o fato de que rapazes e moças são diferentes. Em conseqüência, necessitam de uma educação diferenciada.
Em alguns desses países, a discussão já deu margem à adoção de medidas concretas, como a criação de estabelecimentos educativos públicos single sex (sexo único), ou a separação, dentro de um mesmo colégio, de aulas para rapazes e aulas para moças, numa certa faixa etária.Convém citar, a esse propósito, os interessantes dados fornecidos por um estudo de Maria Calvo Charro, Professora de Direito Administrativo na Universidade Carlos III, de Madrid, sob o título Todos iguais, mas diferentes — O Direito a uma Educação Diferenciada.A acadêmica espanhola cita o caso do estado australiano de New South Wales, o mais populoso da Austrália, onde, em 2001, os pedidos de inscrição nas escolas públicas mistas tinham caído 50%; ou ainda o caso dos länder alemães de Berlim e Renânia do Norte-Westfália, nos quais, desde 1998, por iniciativa dos socialistas e dos verdes, e com o apoio dos movimentos feministas, foram autorizadas as aulas diferenciadas por sexo, após uma investigação séria.Na Grã Bretanha, diz a autora, os melhores colégios não são mistos. Em 2004, o ministro da Educação da época, David Miliband, mostrou a necessidade de insistir nos benefícios obtidos pelos jovens na educação em colégios diferenciados. Mais recentemente, após quatro anos de investigação, um informe preparado pela Faculdade de Educação da Universidade de Cambridge (universidade que obteve, aliás, o 2º lugar no ranking mundial de universidades da classificação da Shangai, acima citado), analisou pormenorizadamente os benefícios que resultam da educação diferenciada, comparada com a educação mista.Na província francófona de Québec, no Canadá, o prestigioso Conselho Superior da Educação julgou necessária, num informe de 1998, uma radical reforma pedagógica destinada a separar moças e rapazes nos colégios, a qual já está sendo posta em prática.Nos Estados Unidos, já em 2002, a administração Bush derrogou a obrigatoriedade da co-educação, imposta naquele país por uma lei de 1972. Em 24 de outubro do ano passado, a secretária de Educação, Margaret Spellings, anunciou novos regulamentos que dão ainda maior flexibilidade aos estabelecimentos educacionais para oferecer aos pais opções adicionais para educar os filhos em regime de separação de sexos.
O exemplo emblemático de sucesso na educação diferenciada é a Young Women’s Leadership Academy, do bairro pobre de East Harlem, que consegue 100% de sucesso de suas alunas (nos dois últimos anos, todas as alunas egressas desse estabelecimento conseguiram entrar na universidade), face à magra média de 42% das escolas mistas de Nova York.Diferenças dos sexos: inatas, e não produto de condicionamentos Steven Rhoads, em seu livro, demonstra cientificamente que as diferenças entre os sexos começam antes do nascimento Qual a razão dessa nova tendência? –– pergunta a Dra. Calvo Charro. “Simplesmente, o reconhecimento de algo que temos tentado negar ao longo dos últimos anos, e que, sem embargo, é evidente, uma vez que o constatamos na nossa vida diária no relacionamento com o sexo oposto: porque somos diferentes”. E explica: “Décadas de investigação na neurociência, na endocrinologia genética, na psicologia do desenvolvimento, demonstram que as diferenças entre os sexos nas suas aptidões, formas de sentir, de trabalhar, de reagir, não são unicamente o resultados de uns papéis tradicionalmente atribuídos a homens e mulheres, nem de condicionamentos histórico-culturais, mas são inatas”. A professora espanhola cita o livro Taking sex differences seriously (Tomando a sério as diferenças entre os sexos), de Steven Rhoads, cujas conclusões científicas demonstram que as diferenças entre os sexos começam antes do nascimento.Mesmo uma conhecida feminista, a deputada socialista alemã Heidi Simonis, reconhece que “é preciso desfazer-se definitivamente do preconceito de que as moças precisam de aulas conjuntas com os rapazes para não ficar em desvantagem no trabalho profissional. Isso é totalmente falso, assim como a afirmação de que rapazes e moças aprendem a conhecer-se melhor estando juntos”.
A parlamentar sueca Chris Heister, presidente da Comissão para o Estudo da Educação daquele país nórdico, apresentou, em julho de 2004, um informe definitivo sobre essa questão, intitulado Todos somos diferentes. Nele se reconhece que o fracasso atual da educação provém do empenho em desprezar as diferenças entre os sexos. Diz o documento: “Tem-se demonstrado que as meninas, quando pequenas, entre os 7 e os 15 anos, assimilam com mais rapidez que os meninos. De outro lado, é preciso tomar em linha de conta que as moças atingem a maturidade muito antes que os rapazes; mesmo que tenham a mesma idade, não se pode tratá-los de igual maneira”.Conclui a Dra. Calvo Charro: “Diversos estudos sobre a co-educação, levados a cabo por pedagogos, psicólogos, psiquiatras e demais profissionais, levam-nos a reconhecer uma série de efeitos amplamente demonstrados: 1) não se consegue a pretensa igualdade de oportunidades e de sexos; pelo contrário, os estereótipos se radicalizam; 2) o rendimento escolar é mais baixo do que nos colégios diferenciados; 3) a violência de gênero é muito elevada; e 4) o conhecimento do sexo oposto, paradoxalmente, é desvirtuado, posto que as moças e os rapazes não se mostram como são, mas como o sexo oposto gostaria que fossem, ocultando muitas reações, sentimentos e idéias por temor do escárnio e da incompreensão, gerando muitas vezes reações de frustração nas moças e de violência machista nos rapazes”.
Novo “sexo débil”: fruto da co-educaçãoAs principais vítimas, curiosamente, não são as moças, mas os rapazes. De fato, os professores gostariam que eles se comportassem de maneira ordenada e tomassem apontamentos meticulosos, como fazem as moças, e tendem a “criminalizar” a conduta dos rapazes. A doença escolar atualmente mais estudada é o suposto “transtorno de déficit de atenção com hiperatividade”, que é tratado com remédios cujo elemento ativo é uma droga com efeito “calmante”, o metilfedinato (calcula-se que, em alguns distritos escolares dos Estados Unidos, entre 20 e 25% dos meninos estão sob os efeitos desse medicamento). Quando, na realidade, sua única “doença” é a de serem meninos e rapazes: ativos, enérgicos, competitivos e irrequietos, se comparados com suas disciplinadas colegas!Não é portanto de se estranhar que, por causa da prevalência da educação indiferenciada, na imensa maioria dos países desenvolvidos, sejam hoje as mulheres que obtenham os primeiros lugares nos liceus e ingressem em maior número nas universidades. O que reforça nos rapazes o preconceito de que “estudar é negócio para moças”. A revista “Business Week” publicou em maio de 2003 um preocupante artigo sobre como os rapazes estão sendo “marginalizados”, dessa forma, do sistema educativo, transformando-se no “sexo débil” dos novos tempos.O lançamento do livro As armadilhas da educação mista, no mesmo ano de 2003, provocou na França viva controvérsia na sociedade e entre os políticos. Seu autor, Michel Fize, é um conhecido especialista nos temas da adolescência, juventude e família, membro do Centro Nacional da Pesquisa Científica. Entre 1997 e 2002, foi assessor técnico da então Ministra da Juventude e Esportes, nem mais nem menos que Marie-Georges Buffet, a atual secretária-geral do Partido Comunista Francês e candidata à presidência da República!Como vencer a crise e voltar ao sistema educativo eficiente?Analisado sumariamente o fracasso rotundo da revolução pedagógica — tanto do ponto de vista estritamente pedagógico, pelo insucesso dos novos métodos de aprendizado, quanto do ponto de vista social, pelo fracasso das políticas visando combater as desigualdades sociais e sexuais — cabe perguntar: qual é a solução para restaurar um sistema educativo eficiente, que satisfaça os pais e beneficie os alunos e a sociedade em seu conjunto?Os partidos de esquerda e alguns centros acadêmicos retrógrados ainda pregam a mesma receita “politicamente correta”, que não deu certo no passado: aumento do gasto público na educação primária e secundária; manutenção de um sistema único de ensino público; imposição de programas uniformes de educação, tanto para os estabelecimentos públicos quanto para os privados; luta contra a violência e sexismo no interior dos colégios e liceus, pregação da tolerância, etc.
A verdadeira solução entretanto consiste em “adorar o que foi queimado e queimar o que foi adorado”. Ou seja, em reconhecer que os sexos são diferentes; que há classes sociais com níveis culturais diversos; que as capacidades individuais são desiguais; e que, portanto, a melhor educação é aquela que mais perfeitamente se adapte ao público-alvo. Portanto, uma educação autônoma e diferenciada.
Os poderes públicos devem reconhecer que os pais de família são os primeiros educadores de seus filhos, e que o papel do Estado não é substituí-los, mas fornecer-lhes um leque de opções, a fim de facilitar-lhes a melhor escolha dentro de suas possibilidades; e, quando necessário, ajudá-los com subsídios personalizados a superar os eventuais handicaps de que padecem seus filhos, devido à pobreza e à deficiente cultura do ambiente familiar.
É preciso ainda reconhecer que, na formação da criança, é fundamental o papel da autoridade (dos pais, dos professores, etc.), da disciplina e do esforço pessoal, renunciando ao pressuposto absurdo de que os alunos podem se auto-educar, e desenvolver espontaneamente suas virtudes morais e seus talentos intelectuais. Nesse sentido, é preciso dar novamente um lugar de destaque ao ensino da Religião e da Moral verdadeiras.É necessário, finalmente, abandonar os preconceitos ridículos que impuseram, em nome da igualdade dos sexos e da liberação da mulher, a educação mista de rapazes e moças, praticamente no mundo inteiro e até na maioria dos estabelecimentos católicos de ensino.
Finalmente é imperioso reconhecer, como afirma William Bennett, autor do Livro das Virtudes para Meninos e Jovens, que a família é o primeiro e melhor Ministério de Saúde, o primeiro e melhor Ministério da Educação e o primeiro e melhor Ministério de Bem-estar Social. É ela que pode mais adequadamente, pela mera convivência no lar, satisfazer as necessidades emocionais, morais e educativas dos mais jovens.
A restauração da educação passa, pois, pela restauração da família. E esta depende, por sua vez, da restauração religiosa e moral de nosso ambiente cultural. O que somente pode ser obtido caso os homens abram suas almas à graça divina, dispensada principalmente mediante os sacramentos, dos quais a Igreja Católica é a depositária.Sem restauração religiosa, é impensável uma restauração pedagógica. Dela depende o futuro de nossas crianças e do mundo.
Santa Ana ensina a Nossa Senhora menina “A família é o primeiro e melhor Ministério de Saúde, o primeiro e melhor Ministério da Educação e o primeiro e melhor Ministério de Bem-estar Social. É ela que pode mais adequadamente, pela mera convivência no lar, satisfazer as necessidades emocionais, morais e educativas dos mais jovens”.
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