Acta Scientiarum 22(1):255-260, 2000.
ISSN 1415-6814.
José Flávio Pereira
Departamento de História, Universidade Estadual de Maringá, Av. Colombo, 5790, 87020-900, Maringá-Paraná, Brazil. e-mail: rsetoguti@wnet.com.br
RESUMO. Procuramos mostrar a postura essencialmente moderna de Maquiavel, destacando e analisando três aspectos de seu pensamento: a ênfase dada à capacidade política transformadora do homem; a secularização das questões sociais e, finalmente, a idéia de um príncipe comprometido com a independência nacional, a segurança e o bem-estar de todas as classes, estamentos e corporações que representam a base da sociedade moderna.
Palavras-chave: Maquiavel, sociedade medieval, sociedade moderna, Estado.
ABSTRACT. Machiaveli: medieval or modern thinker? The aim of this article is to show Machiavelli’s essentially modern stance by highlighting and analyzing three aspects of his ideas: the emphasis given to man’s capacity for promoting political transformations, the secularization of social issues, and, finally, the idea of a prince committed to the national independence, security and welfare of all classes, conditions and associations that represent the foundation of modern society.
Key words: Machiavelli, medieval society, modern society, state.
Pelo fato de ter vivido na transição entre dois mundos, o medieval e o moderno, Maquiavel foi influenciado por elementos filosóficos, políticos e sociais pertencentes tanto à sociedade que desaparecia, como aquela que se firmava historicamente. Fazendo, entretanto, uma análise de conjunto de seu pensamento, percebemos que o que acabou nele predominando foi um distanciamento em relação às formas de pensamento e às instituições políticas medievais. Na verdade, esse pensador e estadista florentino simboliza o divisor de águas entre dois mundos, inaugurando a maneira moderna de pensar a política, o Estado, a ação e a psicologia humanas, etc. Para demonstrar, portanto, a postura, não medieval, mas moderna, de Maquiavel, chamamos a atenção para alguns aspectos importantes de seu pensamento.
Primeiramente, destacamos a existência de um realismo político-social que esvazia a noção da redenção religiosa-espiritual do homem, para colocar, em primeiro plano, a possibilidade de um aperfeiçoamento terreno desse homem, de acordo com as contingências concretas da vida.
Em seguida, assinalamos sua ênfase na capacidade e na responsabilidade política transformadora do homem, possibilitada pelo livre-arbítrio humano, em oposição à passividade e ao fatalismo humano veiculados pelo cristianismo católico-medieval.
Finalmente, destacamos, no pensamento de Maquiavel, a defesa de um novo príncipe, um monarca essencialmente moderno, comprometido não apenas com um dos estamentos ou classes feudais, mas, sim, com a independência nacional, a segurança e o bem-estar de todas as classes, estamentos e corporações que compõem a sociedade moderna em gestação. Ou seja, de um príncipe que estabeleça regras jurídicas gerais, ouça todos os segmentos sociais, respeite a propriedade e as mulheres de seus súditos. Em outras palavras, de um príncipe que se confunda com o Estado e que passe aos súditos a idéia de que representa os interesses gerais e não os interesses de apenas algumas classes ou estamentos sociais.
Um dos aspectos mais originais do pensamento de Maquiavel é a valorização da experiência histórica passada e presente da humanidade como um instrumento de educação do príncipe e dos homens em geral. Ao ler e estudar a história da humanidade, ele não se satisfaz, como fazem muitos, em observar diletantemente o desfilar dos acontecimentos sob os olhos sem procurar imitá-los. (Maquiavel, 1994:18). No seu entendimento, a principal utilidade da história dos grandes homens e das grandes nações não é proporcionar passatempos agradáveis a quem lê os livros de história, mas ensinar e transmitir experiências para os príncipes e para os homens em geral, fazendo com que eles evitem os erros e imitem os acertos dos grandes homens e dos grandes estados do passado. Neste sentido, a função dos biógrafos e dos historiadores seria destacar as virtudes dos grandes homens do passado e, a partir delas, ensinar aos príncipes como eles devem se comportar (Maquiavel, 1994).
É a partir dessa perspectiva experimental-utilitarista da história que ele se entrega ao estudo dos acontecimentos contemporâneos e passados da humanidade[1]. Aproveitando-se, como ele próprio dizia, de uma longa experiência das coisas modernas, possibilitada pela sua condição de embaixador florentino em vários reinos europeus, e de uma contínua lição das antigas, obtida através da assídua leitura das obras clássicas greco-romanas e da Bíblia Sagrada, atinge um profundo conhecimento da sociedade humana. Maquiavel filtra este conhecimento experimental numa série de regras a respeito do governo dos príncipes, as quais aparecem em todos os seus escritos, especialmente em O Príncipe e nos Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio.
É, pois, a experiência acumulada da humanidade a fonte de onde Maquiavel extrai as regras que irá oferecer aos príncipes e aos homens em geral. Esse ponto de partida experimentalista o distancia de importantes pensadores renascentistas, como Lutero, Calvino e mesmo Thomas Morus, os quais adotam um pressuposto idealista-religioso, para julgar e passar regras aos príncipes e, por extensão, aos homens em geral[2].
Como resultado, portanto, desse princípio experimentalista, sua obra será direcionada basicamente a uma secularização das questões humanas e, por conseqüência, a um aperfeiçoamento ou educação secular do homem. Assim, mesmo quando resgata personagens bíblicos, como Moisés, por exemplo, Maquiavel procura dar importância não aos aspectos espirituais-religiosos desses personagens, mas, sim, aos políticos temporais. Ou seja, ao tratar desses líderes bíblicos, considera-os como estadistas que, apesar de serem guiados por mão superior, obtiveram sucesso político porque suas virtudes políticas lhes possibilitaram aproveitar as circunstâncias históricas favoráveis que se apresentaram no momento em que viveram. Assim, para que Moisés obtivesse sucesso como estadista, foi necessário, além de suas qualidades políticas, que encontrasse os judeus escravizados e oprimidos no Egito e dispostos, por essas razões, a seguir um líder que lhes abrisse a perspectiva da conquista da liberdade (Maquiavel, 1983).
Essa separação entre as questões espirituais e as temporais, valorizando as últimas, aparece mais claramente quando Maquiavel analisa a situação dos principados eclesiásticos. Nessa análise, ele demonstra que sua preocupação principal é discorrer sobre a defesa e o governo dos súditos, tendo em vista a segurança e a felicidade temporal deles. Por isso, fica indignado com os príncipes eclesiásticos, pelo fato de eles permanecerem muito tempo a frente do Estado, em razão da reverência e da legitimidade que a religião lhes confere, mesmo sendo péssimos administradores das coisas seculares. De acordo com suas palavras, só os príncipes eclesiásticos possuem Estados e não os defendem; súditos, e não os governam. Seus Estados, completa, por serem indefesos, não lhes são tomados; os súditos, por não serem governados, não se preocupam, não pensam e nem podem separar-se deles (Maquiavel, 1983:65).
Por causa dessa incompetência ou carência de virtudes político-administrativas para bem administrar os negócios temporais, os príncipes eclesiásticos não se enquadram, obviamente, no modelo de príncipe temporal construído por esse pensador renascentista. A única exceção é César Bórgia, príncipe religioso, que teria, em função de suas virtudes políticas e por ter sido bafejado pela sorte, construído uma ordem política unificada parecida com aquela desejada por Maquiavel[3]. Uma das provas de que a maioria dos príncipes eclesiásticos não satisfazem as expectativas políticas de Maquiavel está no fato de ele reservar, em O Príncipe, apenas um pequeno capítulo para tratar dos principados administrados pelos religiosos. Em outra obra, Comentários a Primeira Década de Tito Lívio, examina mais detidamente o papel da religião, mas o faz de maneira a mostrar tão somente em que medida a Igreja de Roma e suas práticas temporais e espirituais contribuíram para a infelicidade política reinante na Itália (Maquiavel,1994).
Essa maneira singular de se referir à religião e à Igreja Católica tem um significado bastante preciso na obra de Maquiavel: uma preocupação centrada basicamente na felicidade terrena do homem, felicidade esta que passa pela construção de uma nova ordem política, baseada na existência de um Estado centralizado e de um governo único, seja ele republicano ou monárquico, como aquele existente na Espanha e na França (Maquiavel, 1994). Isto significa, no fundo, um rompimento com a forma de pensamento medieval, fortemente impregnada pela idéia religiosa de que o homem deveria se preocupar não com a felicidade e o conforto na vida terrena, que era passageira, mas, sim, com a vida após a morte, que era eterna e a única capaz de proporcionar a verdadeira felicidade.
Maquiavel expressa, nesse sentido, uma postura teórico-política bastante avançada para as condições sociais de sua época. Conforme assinalou Johan Huizinga, em seu clássico estudo O Declínio da Idade Média, no Renascimento, época de Maquiavel, a fé cristã e a idéia de renúncia às coisas desta vida continuavam ainda tão fortemente implantadas nos espíritos que pouco espaço deixavam para se pensar a perfeição social e pessoal como resultado da reforma social e do progresso político e material. Neste momento, acrescenta esse historiador holandês, a idéia de reforma contínua e do aperfeiçoamento da sociedade não existia, e só veio a fazer parte do universo social no século XVIII, com o Iluminismo (Huizinga, 1996:38). Neste contexto, portanto, Maquiavel inova profundamente as concepções sociais vigentes ao apontar para as possibilidades de se introduzir uma nova ordem política que traga segurança, bem-estar e felicidade terrenas para os italianos.
Intimamente ligada a essa valorização da felicidade terrena, o que encontramos ainda no pensamento de Maquiavel é a ênfase na responsabilidade e na capacidade do próprio homem construir essa felicidade temporal. Isto significa, também, senão um rompimento radical, pelo menos um sério abalo nas concepções medievais, visto que, à passividade, ao fatalismo e ao pessimismo[4] humanos veiculados pelo cristianismo medieval, ele contrapõe o otimismo, a iniciativa[5] e a capacidade política transformadora do ser humano, o qual, pode, usando do seu livre-arbítrio, interferir nos rumos de sua vida terrena. Num trecho de O Príncipe, isto aparece com clareza:
Não ignoro que muitos têm tido e têm a opinião de que as coisas do mundo sejam governadas pela fortuna e por Deus, de forma que os homens, com sua prudência, não podem modificar nem evitar de forma alguma; por isso poder-se-ia pensar não convir insistir muito nas coisas, mas deixar-se governar pela sorte. Esta opinião tornou-se mais aceita nos nossos tempos pela grande modificação das coisas que foi vista e que se observa todos os dias, independente de qualquer conjetura humana. Pensando nisso algumas vezes, em parte inclinei-me em favor dessa opinião. Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase (Maquiavel, 1983:139-140).
Aproveitando-se, assim, de uma brecha filosófica deixada pelo próprio cristianismo medieval, o livre-arbítrio, Maquiavel introduz um elemento político importantíssimo no pensamento renascentista, que é a figura do homem enquanto um agente social que produz, dentro de determinados limites e condições, sua própria trajetória histórica. Ao homem, estaria vedado atribuir a responsabilidade de suas misérias e infortúnios unicamente à sorte ou a Deus. Essa noção aparece, por exemplo, quando Maquiavel mostra porque muitos príncipes italianos perderam seus estados:
...estes nossos príncipes que tinham permanecido muitos anos em seus principados para depois perdê-los, não podem acusar a sorte, mas sim a sua própria ignávia, pois, não tendo nunca, nos tempos pacíficos, pensado que estes poderiam mudar (o que é defeito comum dos homens na bonança não se preocupar com a tempestade) quando chegaram os tempos adversos preocuparam-se em fugir e não em defender-se, esperando que as populações, cansadas da insolência dos vencedores, os chamassem de volta (Maquiavel, 1983:136).
Ao homem, é atribuída parte da responsabilidade pelas suas misérias e infortúnios. Ele pode, porém, mudar o rumo dos acontecimentos, fazendo uso do livre-arbítrio e agindo com prudência e previdência nos negócios da vida.
É preciso assinalar, entretanto, que essa ênfase na capacidade de ação do homem não significa, em absoluto, uma apologia do voluntarismo político descolado da realidade social. Maquiavel esclarece que não basta a vontade e a iniciativa do homem para que seus objetivos sejam atingidos[6]. Para que o homem seja feliz, é preciso, ainda, que ele acomode sua ação com a natureza dos tempos, ou seja, com as circunstâncias do momento histórico em que vive:
Creio, ainda, seja feliz aquele que acomode o seu modo de proceder com a natureza dos tempos, da mesma forma que penso seja infeliz aquele que, com o seu proceder, entre em choque com o momento que atravessa (Maquiavel, 1983:140).
Ao colocar num primeiro plano a vida temporal do homem e ao alertá-lo para o fato de que seu destino histórico depende, em parte, de sua própria ação política, Maquiavel tem um objetivo político muito claro: preparar o caminho para chamar os italianos à responsabilidade, no sentido de abraçarem o projeto de criação de uma nova ordem política. Ordem esta perfeitamente possível, de acordo com as condições históricas prevalecentes em 1513. É o que ele faz no último capítulo de O Príncipe:
Consideradas, pois, todas as coisas já expostas, pensando comigo mesmo se no momento presente, na Itália, corriam tempos capazes de honrar um príncipe novo e se havia matéria que assegurasse a alguém, prudente e valoroso, a oportunidade de nela introduzir nova organização que a ele desse honras e fizesse bem a todo o povo, quer me parecer concorrerem tantas circunstâncias favoráveis a um príncipe novo que não sei qual tempo que poderia ser mais adequado para isto (Maquiavel, 1983:143).
Quando Maquiavel fala em nova organização para a Itália, não está pensando em outra coisa senão na instituição de um Estado moderno, centralizado e de governo único, que agregue todos os italianos numa única Nação. Como já assinalamos anteriormente, quando fala desse Estado e desse governo único, ele está pensando na França e na Espanha, as quais são sociedades que já vivem sob essa forma moderna de Estado.
Ao tomar a França como exemplo, Maquiavel explicita alguns elementos importantes para esclarecer qual é o projeto político que deseja para a Itália. Primeiramente, notamos sua preocupação no sentido de alertar o príncipe para que ele tenha em alta conta os interesses do povo, o qual, dentre todos os segmentos sociais modernos, é o que pode mais em termos político-econômicos. Em seguida, observamos sua preocupação com a criação de instituições que garantam não somente a existência formal do rei, mas sim de um rei que tenha segurança e liberdade suficientes para agir como tal, ou seja, como um monarca único e respeitado tanto pelos grandes como pelos pequenos. Por último, Maquiavel mostra a importância de um poder legislativo que sirva como uma terceira força política, com função mediadora, para conter os grandes e amparar os pequenos (Maquiavel, 1983).
Percebemos, assim, que Maquiavel estabelece dois princípios para uma nova ordem política: um rei forte e amparado por instituições e leis gerais que lhe permitam cumprir suas responsabilidades para com a grande maioria da sociedade moderna, que é o povo. Ou seja, notamos que, para Maquiavel, o segredo para o bom governo e para que o príncipe seja estimado é ele gozar de um bom relacionamento político com o povo.
Num capítulo de O Príncipe, Maquiavel esclarece-nos que setores sociais compõem a categoria povo e o que o monarca deve fazer para se legitimar perante ele:
Deve, ainda, um príncipe mostrar-se amante das virtudes, dando oportunidade aos homens virtuosos e honrando os melhores numa arte. Ao mesmo tempo, deve animar os seus cidadãos a exercer pacificamente as suas atividades no comércio, na agricultura e em qualquer outra ocupação, de forma que o agricultor não tema ornar as suas propriedades por receio de que as mesmas lhe sejam tomadas, enquanto o comerciante não deixe de exercer o seu comércio por medo das taxas; deve, além disso, instituir prêmios para os que quiserem realizar tais coisas e os que pensarem em por qualquer forma engrandecer a sua cidade ou o seu Estado. Ademais, deve, nas épocas convenientes do ano, distrair o povo com festas e espetáculos. E, porque toda cidade está dividida em corporações de artes ou grupos sociais, deve cuidar dessas corporações e desses grupos, reunir-se com eles algumas vezes, dar de si prova de humanidade e munificência, mantendo sempre firme, não obstante, a majestade de sua dignidade, eis que esta não deve faltar em coisa alguma (Maquiavel, 1983:126).
Aparecem, nesse ponto, as categorias de cidadãos que fazem parte do povo e como o príncipe deve agir para com elas, visto que devem ser seus principais interlocutores políticos. Todas essas categorias são compostas daqueles homens ligados às atividades mercantis que gravitam em torno das cidades italianas: são os homens virtuosos e melhores numa arte, são os comerciantes e os agricultores livres, são os membros das corporações de artes, etc. Nota-se uma sintonia de Maquiavel com setores sociais modernos e um apelo para que o príncipe também se sintonize com esses setores, que já constituem a maioria na sociedade italiana.
Tamanha é a simpatia com que Maquiavel vê esses setores mercantis modernos que, mesmo sendo um ferrenho crítico dos grandes, muda de discurso quando se trata da nova aristocracia ou dos grandes que surgiram com o desenvolvimento urbano e com a expansão das manufaturas e do comércio, como ocorre em Veneza. Mas sua aceitação desses novos aristocratas justifica-se basicamente pelo fato de que nenhum deles é castelão ou tem súditos que o obedeçam:
...naquela república [Veneza] os “gentiluomini” o são mais de nome do que de fato; não possuem grandes rendas, produzidas por bens de raiz: suas riquezas são mercadorias e objetos. Nenhum deles é castelão ou tem súditos que o obedeçam. O título que usam vale pela dignidade e consideração, e não se fundamenta em quaisquer dos privilégios que em outros países se atribuem aos títulos de nobreza (Maquiavel, 1994:175).
Quanto àquela categoria social ligada à agricultura feudal em decadência, os aristocratas tradicionais, que vivem no ócio e possuem castelos e vassalos sob suas ordens, devem ser destruídos pelo príncipe, visto que são inimigos do governo regular ou ordem pública e das instituições civis[7] em geral (Maquiavel, 1994:174).
Tudo o que vimos até aqui leva-nos a concluir que Maquiavel tem plena consciência do acelerado grau de decomposição das instituições feudais e da possibilidade de instauração de uma nova ordem política no território italiano. Nessa nova ordem política, não há, evidentemente, lugar para o baronato feudal, que é inimigo mortal das instituições civis modernas, nem para aquele príncipe feudal inimigo ou insensível ao interesse das cidades e das classes ou estamentos sociais que nelas predominam. O novo príncipe e a nova forma de organização política vislumbrada por Maquiavel deve, pois, zelar pelos interesses de todos aqueles estamentos ou classes sociais que constituem a base política e econômica da sociedade moderna.
Dentre todas as regras políticas recomendadas por Maquiavel a esse príncipe moderno, uma ocupa lugar destacado: a de que o príncipe deve, além de ouvir o povo, ser respeitador dos bens e das mulheres dos súditos (Maquiavel, 1983:105). Percebe-se, aqui, um apelo político no sentido de o príncipe separar a coisa pública da coisa privada, evitando, assim, comportar-se como o barão e o príncipe feudais, que legislavam cada um a seu bel prazer e que faziam da arbitrariedade pessoal o critério básico para administrar a vida dos súditos. Maquiavel antecipa, assim, o enunciado de um princípio político que ocupará um lugar destacado na discussão acerca dos limites entre o público e o privado na vida da sociedade moderna.
Referências bibliográficas
Calvino, J. Sobre o governo civil. In: Lutero, M.; Calvino, J. Sobre a autoridade secular. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
Hill, C. O eleito de Deus: Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Huizinga, J. O declínio da Idade Média. Braga (Portugal): Ulisseia, 1996.
Lefort, C. As formas da história. São Paulo: Brasiliense, 1979.
Lutero, M. Sobre a autoridade secular. In: Lutero, M.; Calvino, J. Sobre a autoridade secular. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
Maquiavel, N. O príncipe. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
Maquiavel, N. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília: UnB, 1994.
Morus, T. A utopia. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Pensadores).
Smith, A. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Economistas).
Tocqueville, A. O antigo regime e a revolução. Brasília: UNB, 1982.
Received on December 07, 1999.
Accepted on February 28, 2000.
[1] Na história contemporânea temos um outro bom exemplo dessa visão utilitarista da história. É o caso de Tocqueville, que, em sua obra O Antigo Regime e a Revolução, diz, já no Prefácio, que vai estudar as origens da Revolução Francesa, para tentar extrair ensinamentos políticos que possibilitem aos franceses das décadas de 1840-1850 evitarem incorrer nos mesmos vícios e erros políticos que seus antepassados incorreram e que provocaram o violento movimento revolucionário de 1789. Dentre os vícios e erros políticos apontados por Tocqueville em sua época, está o Estado despótico de Napoleão III, que se aproxima muito do Estado de Luiz XVI, a ausência de liberdade para os franceses, a ausência de iniciativa das classes sociais, o desaparecimento das virtudes coletivas, o enfraquecimento da solidariedade social, o fortalecimento excessivo do individualismo, etc. (Tocqueville, 1982).
[2] Lutero (1995) e Calvino (1995) adotam, evidentemente, os dogmas da Doutrina Judaico-Cristã como ponto de partida teórico-filosófico de suas análises sobre a origem, a necessidade e as funções do Estado. Por isso, seus textos são recheados de citações bíblicas e de escritos dos doutores da Igreja. Mais ou menos a mesma coisa acontece com Tomas Morus (1973), que, além da Bíblia, recorre à Filosofia platônica para discorrer sobre as funções do Estado. Devido a isso, os três apresentam análises essencialmente idealistas e dogmáticas sobre as questões humanas. Processo distinto acontece com Maquiavel, que toma como critério exclusivo para analisar a questão do Estado apenas a experiência histórica passada e presente da humanidade, o que confere um caráter essencialmente realista e experimentalista à sua obra.
[3] César Bórgia (1478-1507), conhecido também como Duque Valentino, era filho do Papa Alexandre VI, de quem herdou grandes domínios territoriais na Itália, os quais foram aumentados com a ajuda de suas próprias virtudes militares e políticas. Consolidou o domínio de toda a Romanha e destruiu o poder político de muitos barões e príncipes que se opunham a uma ordem política unificada sob sua direção. Ele teria sido uma espécie de precursor do príncipe virtuoso concebido por Maquiavel, razão pela qual era proposto como modelo de líder político a ser seguido por Lourenço de Médici. Maquiavel se refere a ele nos seguintes termos: Havia no duque tanta bravura indômita e tanta virtude, conhecia tão bem como se conquistam ou se perdem os homens [que] eu não saberia repreendê-lo; antes penso que, como o fiz, deva ser proposto à imitação... (Maquiavel, 1983: 44).
[4] A obra de Huizinga, já referida, mostra-nos, em seu capítulo segundo, que, nos fins da Idade Média pesavam na alma do povo uma tenebrosa melancolia e um profundo pessimismo em decorrência da crise das instituições, da violência, da cobiça e dos ódios políticos. Um otimismo vigoroso deitará raízes no universo social somente depois do Renascimento (Huizinga, 1996). Maquiavel, pelo que podemos perceber, é um dos poucos autores que conseguem se libertar desse pessimismo predominante em sua época e abrir uma perspectiva política mais otimista para os italianos.
[5] Uma outra versão moderna desse rompimento com a passividade e a inação política veiculada pelo cristianismo medieval podemos encontrar dentro do próprio cristianismo reformado, no puritanismo do Século XVII. Segundo Christopher Hill, a doutrina da Predestinação puritana despertava o homem da passividade e o convocava para a ação, quando estabelecia que, mesmo o indivíduo predestinado ou previamente tocado pela graça divina, deveria, por todos os dias de sua existência nesta vida, praticar boas obras para se manter na condição de santo (Hill, 1990:195-210).
[6] Segundo Claude Lefort, o que aproxima Maquiavel e Marx, em termos teórico-metodológicos, é o fato de ambos conceberem as transformações históricas não a partir de um ato de vontade dos indivíduos que se rebelam contra a realidade empírica ou o real tal como ele é, mas como o engajamento desses indivíduos numa tarefa prática de transformação social que se funda e se impõe a eles no curso de desenvolvimento de uma história empírica (Lefort, 1979).
[7] O posicionamento de Maquiavel a respeito dessa questão é muito semelhante ao de Adam Smith. O livro terceiro da Riqueza das Nações, onde Smith analisa o surgimento de instituições modernas, como a propriedade burguesa da terra, o trabalho livre, a manufatura, o Estado centralizado, etc., mostra a importância do desaparecimento do poder local dos barões feudais, que assentavam seu poder numa grande quantidade de vassalos e em castelos, para o surgimento do que ele chama de ordem e bom governo na Europa. Por ordem e bom governo, Adam Smith entende, evidentemente, um governo central forte o suficiente para criar leis e tribunais gerais, um exército e uma polícia sob comando único do rei, sistema de pesos e medidas únicos, código fiscal único, etc. Como os barões feudais significavam a impossibilidade de tudo isto, Adam Smith vê sua destruição como altamente positiva para o desenvolvimento da sociedade moderna, já que, através dela, desapareceriam a insegurança política, as arbitrariedades fiscais, a insegurança da pessoa e da propriedade, fatores estes que impediam que o agricultor, o manufator e o comerciante pudessem exercer livremente suas atividades (Smith, 1983).
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