XICO GRAZIANO
Manter o trabalho e a renda dos pequenos agricultores, garantindo-lhes qualidade de vida: esse é o maior desafio da política rural no Brasil. A reforma agrária distributivista está superada, encerrando seu ciclo histórico. Durante 50 anos, dominou a problemática dos "sem-terra". Agora, o centro da questão agrária está nos "com-terra".
Milhões de pequenos agricultores, em todo o mundo, sofrem o drama da sobrevivência. Os mercados globalizados e a tecnologia ditam regras impeditivas à organização tradicional no campo. Na França ou nos Estados Unidos, embora com modelos diferentes de agricultura, a situação é semelhante: verifica-se, nos últimos 20 anos, forte redução na quantidade de agricultores e o subseqüente aumento na escala de produção.
Esse fenômeno, felizmente, não se manifesta cabalmente por aqui. As estatísticas mostram que a pequena produção persiste no campo, convivendo ao lado das grandes empresas rurais. O mecanismo da herança familiar contrapõe-se à força da concentração fundiária e o pequeno agricultor, talvez até pela falta de melhor alternativa, continua a saga de sua existência. Até quando?
Segundo estudo da FAO/Incra, existem 4.140.000 agricultores familiares no País. Esse enorme contingente de trabalhadores "com-terra" detém 30,5% da área e gera 38% do valor da produção rural. Ocupa 77% da mão-de-obra no campo, somando 13,8 milhões de pessoas, metade delas no Nordeste. Este é o perfil geral da agricultura familiar no País. Fora os 600 mil novos agricultores assentados da reforma agrária e beneficiários do Banco da Terra.
Aqui reside o desafio do futuro: garantir a permanência desses produtores.
Para evitar o êxodo rural, entretanto, será necessário urbanizar o campo, levando cidadania aos agricultores, vida digna, educação, saúde. Como chegar lá?
Primeiro, enfrentando o jogo da Política. Enquanto a sociedade e a mídia continuarem polarizadas pelas invasões de "sem-terra", estará perdendo precioso tempo na luta a favor dos "com-terra". A luta ideológica conduzida pelo MST distrai o foco da verdadeira batalha. A aspiração dos agricultores familiares, suas necessidades reais, submerge no maniqueísmo ridículo que contaminou o debate sobre a questão da terra.
A reforma agrária ou se transforma num processo planejado, ou continuará destinada ao fracasso, mesmo travestida de ação social. Não se fazem agricultores assentando invasores de terras: o mundo rural exige qualificação adequada, aptidão. Se alguém duvida, que pergunte aos milhões de agricultores tradicionais, que estão na lide há séculos. Chega de vender ilusão.
Segundo, para fortalecer os pequenos produtores rurais, carece decidida política de Estado. O Pronaf, implantado pelo governo FHC, deve ser radicalizado, ultrapassando seu viés financeiro e adentrando na luta pelo conhecimento, que leva à verdadeira emancipação. O crédito rural, mal utilizado, pode aumentar a dependência dos agricultores, endividando-os, mantendo uma espécie de clientelismo nas agências do capital. A motivação dos pequenos produtores, através da tecnologia e da organização rural, oferece o conteúdo de uma nova assistência técnica. Isso formata uma política de desenvolvimento rural, acoplada à política econômica.
Essa tarefa, a da organização, depende dos próprios agricultores. Somente a consciência crítica sobre sua realidade, nos marcos concretos da economia globalizada, pode induzir os produtores a buscarem formas solidárias de atuação, principalmente na comercialização de seus produtos. A tecnologia e os mercados, aparentemente próprios dos grandes capitais, podem muito bem servir aos pequenos. Pequenos, agrupados, viram grandes!
Terceiro, qualquer política de desenvolvimento rural precisa considerar que, hoje, o rural é maior que o agrícola ou o pecuário. As imensas oportunidades de negócio oferecidas pelo turismo rural e ecológico, o lazer no campo, surgem como valiosas alternativas de renda e emprego. Mais que agricultura, o mundo rural envolve crescentemente atividades de natureza variada nos pequenos municípios, chamados de urbanos pelo IBGE, porém eminentemente dependentes da dinâmica do campo. São essas "cidades-rurais", milhares delas, com seus distritos e povoados, que multiplicam a renda e agregam as comunidades do interior do País.
Por último, um quesito fundamental. Uma política para a agricultura familiar precisa estar diferenciada conforme o público-alvo. Não há maior pecado na economia rural que desprezar a complexidade do mundo agrário, com seus múltiplos agroecossistemas, suas enormes disparidades regionais.
Dos agricultores familiares, 46% são muito pobres, produzindo para autoconsumo com baixíssima produtividade. Representam, segundo a FAO/Incra, 1,9 milhão de pequenos produtores. Distante do mercado, tal segmento nada se assemelha ao grupo de elite, formado por 400 mil agricultores eficientes, inseridos na economia. Na parcela intermediária encontram-se os agricultores em transição, subindo ou descendo a ladeira do progresso.
Será um equívoco imaginar uma única política de desenvolvimento rural. Os "pobres rurais" exigem políticas sociais compensatórias, como a renda rural mínima. Aos outros, capitalizados, basta que se organizem melhor. Aqueles próximos a mercados precisam de apoio na venda de seus produtos.
Enfim, a tecnologia não é panacéia. Os preços, não sendo remuneradores, refreiam o avanço tecnológico. Mais ainda: a equação dos pequenos agricultores não se resolve apenas na economia. Claro que almejam o progresso. Mais que riqueza, porém, querem eles respeito. Esta é sua maior necessidade: salvar seu modo de vida.
Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996/98). E-mail: xicograziano@terra.com.br