sexta-feira, janeiro 05, 2007

POR QUE A AMÉRICA LATINA SEMPRE FRACASSA?

Mario Vargas Llosa
Quando cheguei à Espanha em 1958, havia uma frase corrente: "Nós espanhóis não estamos preparados para a democracia. Se Franco morresse, isto seria o caos, talvez a guerra civil." Mas não foi assim. Caiu a ditadura, houve uma transição admirável, exemplar, para a democracia, e a democracia na Espanha tem tido êxito. Tem havido consenso das forças políticas que deram uma estabilidade ao País que permitiu à democracia espanhola resistir a ameaças involucionistas, golpistas, e, eu diria, sem triunfalismo de qualquer espécie. Ninguém pode negar que a Espanha é a história feliz dos tempos modernos, o que se deve de certa maneira à imensa maioria dos espanhóis de diferentes convicções políticas que têm sido capazes de atuar civilizadamente, estabelecendo justamente esse denominador comum que faz com que funcionem as instituições e que um país cresça.
Por que não tem havido algo parecido na América Latina? Por que fracassam nossas tentativas de modernização? Creio que a idéia do desenvolvimento, do progresso da civilização, tem que ser simultaneamente econômica, e política e cultural, e aqui emprego uma palavra que há muitos poderá surpreender: ética ou moral. Na América Latina há uma falta de confiança total da imensa maioria dos cidadãos com relação às instituições, e esta é uma das razões do fracasso das nossas instituições. As instituições não sobrevivem se as pessoas não acreditam nelas e, ao contrário, delas desconfiam fundamentalmente e não vêem nelas uma garantia de segurança, de justiça, mas exatamente o contrário disto.
Permitam-me contar-lhes um caso pessoal: Depois de estar vivendo na Inglaterra por algum tempo, de repente percebi que acontecia comigo algo curioso, que eu não me sentia nervoso quando passava por um policial. Até então, sempre me ocorria certo nervosismo ao cruzar com um policial, como se ele, de algum modo, representasse para mim um perigo potencial. Os policiais na Inglaterra não me produziram jamais esse sentimento de receio, de secreta inquietação. Não andam armados, e parecem estar prestando um serviço público, não estando ali para, de alguma maneira, aproveitarem-se do pequeno poder que lhes dá o uniforme, o cacetete ou o revólver que levam na cintura. No Peru e na maior parte dos países da América Latina, os cidadãos têm razão de se sentirem alarmados, inquietos, quando passam por um policial, porque é muito possível que esse guarda use seu uniforme, não para defender a segurança do cidadão, mas para se aproveitarem deles. Do mesmo modo, o que ocorre com os policiais, ocorre também com as instituições. Esses exemplos criam afinal um estado de coisas que impedem o funcionamento das instituições porque elas não estão apoiadas ou mantidas por aquilo que é fundamental numa sociedade democrática, a confiança dos cidadãos, a convicção de que estas instituições estão ali para garantir a segurança, a justiça, a civilização.
Essa é uma das razões pelas quais as reformas que têm sido feitas na América Latina tenham fracassado quase sempre. Paulo Rabello de Castro, do Brasil, dizia que os milhões de indivíduos que votaram no Lula não votaram no socialismo na maioria dos casos, e sim, por algo que fosse diferente do que têm agora, e essa diferença foi encarnada pelo candidato através de carisma ou demagogia. É o mesmo que aconteceu, por exemplo, na Venezuela. Esse país potencialmente riquíssimo, que deveria ter um dos níveis de vida mais altos do mundo, se debate numa crise atroz, e tem no governo um grande demagogo, que pode realmente destruir seu país. E entretanto, não é por acaso que o comandante Chávez esteja no poder. Ele chegou ao poder com o voto de uma grande maioria de venezuelanos totalmente frustrados e enojados da democracia existente, uma democracia que o era apenas de nome, e à sombra da qual a corrupção imperou de maneira realmente vertiginosa, eliminando as possibilidades de uma imensa maioria de venezuelanos de realizar suas expectativas, seus sonhos, e permitindo que umas ínfimas minorias ligadas ao poder pudessem se enriquecer enormemente.
Nesse contexto, como podem funcionar as reformas liberais que defendemos, promovemos e sabemos que são eficazes para desenvolver um país? Uma reforma mal feita é às vezes pior que uma falta total de reformas e, nesse sentido, o caso peruano é exemplar. Durante a ditadura de Fujimori e Montesinos, entre 1990 e 2000, tivemos aparentemente reformas liberais radicais e privatizamos mais do que qualquer outro país da América Latina. Mas como foi feita a privatização? Ela se fez pela transformação de monopólios públicos em monopólios privados. Para que se privatizou? Não foi pelos critérios que deveriam comandar a privatização, isto é, para que houvesse concorrência e, assim, melhorasse a qualidade de bens e serviços e os preços abaixassem, e também para disseminar a propriedade privada entre aqueles que não a têm, como se fez nas democracias ocidentais mais avançadas nos processos de privatização, como se fez na Grã-Bretanha onde a privatização serviu para difundir a propriedade privada entre os usuários e os empregados das empresas privatizadas. Nesses países ela não foi feita para enriquecer determinados interesses particulares, empresários, empresas, ou mesmo os próprios detentores do poder.
Como podem os peruanos nos acreditarem quando lhes dizemos que a privatização é indispensável para o desenvolvimento de um país, já que a privatização para os peruanos significou o enriquecimento extraordinário dos ministros do Senhor Fujimori, que as empresas dos ministros e associados ao Senhor Fujimori foram as únicas que tiveram lucros excepcionais nesses anos de ditadura? Por isso, quando os demagogos dizem "a catástrofe do Peru, a catástrofe da América Latina são os neoliberais", essas pessoas que foram enganadas acreditam nesses demagogos e, como necessitam de um bode expiatório, passam a odiar-nos, a nós, os "neoliberais".
O governo de Toledo tentou privatizar algumas empresas na minha cidade natal de Arequipa, e o povo arequipenho saiu às ruas em massa arrancando as pedras do calçamento e enchendo as ruas de barricadas e, dessa forma, impediu a privatização. Se olhamos os dados no papel trata-se de algo insensato, algo absolutamente fora de propósito. As empresas privatizadas não serviam para nada, não realizavam de forma alguma as suas funções e eram um passivo para o País, para o Estado, isto é, para os pobres peruanos, e as empresas que ganharam a licitação pretendiam investir dinheiro novo para se instalarem em Arequipa. Prometeram, além disso, fazer uma série de investimentos complementares, beneficiando muitíssimo a cidade, mas nada disso mereceu o crédito de um povo profundamente decepcionado com esses dez anos de suposto liberalismo radical que viveu o País com Fujimori.
Bem, isto é o que tem ocorrido na maior parte dos países latino-americanos. Essas reformas, no fundo, não eram liberais, eram uma caricatura de reformas liberais, mas isso que é sabido por nós é desconhecido por alguns públicos desinformados, boa parte dos quais estão em luta feroz pela própria sobrevivência, o que a América Latina sito é muito triste dizer, empobreceu muitíssimo nas últimas décadas. No caso de alguns países, o empobrecimento foi verdadeiramente pavoroso.
No final do ano passado, estive percorrendo uma parte do Peru andino, a região de Ayacucho, uma região que foi tremendamente mal tratada na época do terrorismo e uma região tradicional muito pobre do Peru. E eu já havia passado por aí várias vezes entre 1987 e 1990, e saí espantado com o empobrecimento sofrido por esta região que já era pobre e que agora se encontrava mutíssimo pior, da mesma que empobrecera o resto do Peru, enquanto um pequeno grupo de bandidos, encarnados no poder, se enriquecia vertiginosamente. Dessa maneira, quando falamos de desenvolvimento, não podemos tratar este fenômeno como uma série de reformas econômicas que porão em marcha o sistema produtivo do País, aumentar as nossas exportações, permitindo ao Pais que, por fim, inicie um processo de modernização, não, o desenvolvimento de que necessitamos tem que ser um desenvolvimento simultâneo, que ao mesmo tempo melhore nossos índices de crescimento e produção, façam funcionar as instituições que hoje não funcionam, conquistando a credibilidade popular com relação a essas instituições bem como a solidariedade do povo, pois são essas coisas que fazem com que as instituições funcionem numa sociedade democrática. Isso não existe na América Latina e esta é uma das razões pelas quais fracassam as reformas econômicas inclusive quando bem orientadas.
Carlos Alberto Montaner dizia algo que me parece correto. Temos que dar mais decência à política. Não é possível que os países se desenvolvam quando seus governantes são Alemán, de Nicarágua, Chávez, de Venezuela, Fujimori, Peru, verdadeiros gangsters, autênticos bandidos que entram no governo como um ladrão entra numa casa para roubar, para enriquecer-se da maneira mais cínica e rápida possível. Como pode a política ser uma atividade atraente para os idealistas os jovens vêem a política naturalmente com espanto, como roubo. E a única maneira de tornar a política decente ;é levando a ela gente decente, pessoas que não roubam, pessoas que cumpram as suas promessas, que não mintam ou que mintam pouco, o inevitável.
Várias vezes me tem perguntado "a quem você admira na América Latina?" E eu cito sempre a mesma pessoa que talvez muitos de vocês não conheçam o nome, e se trata do presidente Cristián, de El Salvador. É uma pessoa que eu admito muito, não é um político, é um empresário que decidiu entrar na política num momento terrível, trágico, quando o exército e as guerrilhas se matavam nas ruas de San Salvador, deixando como resultado um número enorme de mortos desaparecidos e de torturados, nesse momento, o Sr. Cristián , um empresário, um homem fundamentalmente decente, nada carismático, nada do tipo do homem forte latino-americano, mal orador, decide ingressar na política e acaba ganhando as eleições e o governo de seu país, e governa de uma maneira discreta, nada carismática, e nos anos em que está no governo leva seu país a uma situação melhor do que antes, e isso parece muito pouco coisa, mas de fato trata-se de uma façanha quase que única. Quando Cristián assumiu o governo matavam-se nas ruas de San Salvador e os mortos eram inúmeros; quando deixou o poder, as guerrilhas e o governo haviam celebrado a paz, e os guerrilheiros se apresentavam como candidatos a postos eletivos, pediam os votos do público e assumiam suas cadeiras no Parlamento; desde então há paz em El Salvador. Trata-se agora de um país que progride, como bem observa Montaner, lentamente, mas progride, de verdade, isto é, simultaneamente em várias direções. Bem, disso é o que precisamos na América Latina, não apenas bons economistas que nos digam as reformas a realizar,. Precisamos de pessoas decentes como o Senhor Cristián, empresários profissionais, que decidam participar da política para tornar decente essa atividade fundamentalmente suja, imoral, corrompida que, lamentavelmente, é a política que temos conhecido.
Outro aspecto fundamental é o cultural. A cultura na América Latina infelizmente e com umas poucas exceções é privilégio de minorias . A América Latina tem uma grande criatividade, tem produzido músicos, artistas, poetas, escritores, pensadores, mas a verdade é que na maioria dos nossos países a cultura é monopólio de minorias insignificantes e está praticamente fora do alcance da maioria . Nessas bases, não se pode construir uma democracia genuína, instituições que funcionem e não se pode fazer reformas liberais que produzam os resultados positivos e criativos que deveriam produzir. Nesse sentido, infelizmente, há uma terrível falta de consciência na América Latina. A cultua ainda é considerada por aqueles que pensam que ela existe como um mundo, um passatempo, uma forma superior de ócio, e não como o que é, uma ferramenta fundamental para que uma mulher, ou para que um homem tome as decisões acertadas em sua vida familiar, em sua vida pessoal, em sua vida profissional e, sobretudo as decisões políticas acertadas na hora de votar.
A cultura é uma defesa contra a demagogia, contra o equívoco de escolher mal nas eleições. Nesse campo lamentavelmente quase nada se faz, e talvez deveria dizer com um sentido de autocrítica que quase nada fazemos, inclusive nós mesmos. Nesses institutos liberais tão úteis, tão idealistas, entretanto, a cultura é a menor das suas prioridades e isto é um erro, um gravíssimo erro. A cultura é fundamental porque ajuda a criar os consensos que têm ensejado o surgimento de casos às vezes exemplares como o da Espanha e Chile.
Eu gostaria de falar um pouco sobre o Chile devido a algumas coisas ditas por Hernán Büchi, meu amigo, uma pessoa inteligente que como ministro chileno fez algumas reformas admiráveis que funcionaram. O caso do Chile é singular na história da América Latina e assim é porque uma ditadura militar como era a de Pinochet teve sucesso econômico. Permitiu que um grupo de economistas liberais realizassem reformas bem concebidas que funcionaram. Alegro-me muito pelo Chile que é um pais que sempre menciono mas é um exemplo que nós devemos citar juntamente com todos os tipos de advertências, e a primeira e fundamental é a de que para um liberal uma ditadura jamais é justificável. Isto é muito importante e deve ser repetido. Tratou-se de um acidente favorável para o Chile. Que sorte para o Chile! Mas há muitos latino-americanos que pretendem transformar esse acidente num modelo e ainda nos repetem que o que nos falta para o nosso desenvolvimento é a presença de um Pinochet. A popularidade de Fujimori em boa parte se deveu ao fato de muitos peruanos identificarem Fujimori com Pinochet. Não é verdade, há acidentes na História, mas se há na história latino-americana uma constante, essa constante é a de que as ditaduras jamais representaram uma solução para os problemas latino-americanos, e todas elas, sem exceção, Chile à parte contribuíram para agravar os problemas que pretendiam solucionar: a corrupção o atraso, o debilitamento, o colapso das instituições. As ditaduras têm contribuído mais do que qualquer coisa para criar esse cinismo político que é uma das características talvez mais generalizadas na América Latina: a política é a arte de enriquecer, é a arte de roubar,; esta é a definição de política para uma imensa maioria de latino-americanos e assim pensam porque essa tem sido a verdade em boa parte da nossa história por culpa das ditaduras. As ditaduras têm feito da corrupção forma natural de governo, que têm criado com relação à política esse sentimento tão terrivelmente cínico que impera na grande maioria dos países latino-americanos.
O Chile teve êxito também por outra razão. Porque o Chile no século XIX teve uma sociedade civil que cresceu, teve uma sociedade civil na qual as instituições funcionaram. Houve lá figuras admiráveis, intelectuais, juristas, professores, um venezuelano que importaram e que cumpriu importantíssimo papel naquele país André Bello. O Chile sempre teve fama de um país legalista, que é uma tradição que felizmente ajudou muitíssimo na hora das reformas econômicas e da transição política o resto da América Latina não teve, como o Chile, esta sociedade civil forte no passado e que fez com que as instituições funcionassem.

Nenhum comentário: