Carlos Alberto Sardenberg
Assuntos dominantes no cenário político e econômico:
- Partido da base governista apresenta no Congresso projeto que muda o conceito de empresa privada, impondo restrições à sua atuação e ampliando suas obrigações trabalhistas;
- Governo quer mudar regras para concessão de estradas (e outros serviços públicos) ao setor privado;
- Dirigentes da base governista pedem aumento de impostos para financiar mais gastos sociais;
- Empresários reclamam da demora e do uso político na concessão de licenças ambientais; governo promete destravá-las;
- Entra em vigor legislação que dificulta e encarece a contratação de trabalhadores temporários e terceirizados;
- O governo propõe uma reforma da Previdência, restringindo o setor privado e ampliando o estatal;
- Debate-se por que o país, embora tendo estabilidade econômica e inflação baixa, não consegue crescer mais fortemente;
- Há reclamações contra a lentidão do governo e sua dificuldade de tomar decisões.
Pensou no Brasil? Errou. Trata-se do Chile – um resumo de temas que têm aparecido na imprensa nos últimos dias. Eliminados os detalhes, as particularidades e uma distância no tempo, o debate é igualzinho ao brasileiro. E pelo jeitão da coisa, pelo rumo que vem sendo tomado pelo governo e seus partidos, o Chile vai se afastando do modelo de economia de livre mercado, a marca que o distinguia na América Latina, e se aproximando de algo mais parecido com o modelo brasileiro.
A base governista é a Concertação, uma frente dominada pelos dois maiores partidos, o Socialista (PS) e o da Democracia Cristã (DC), que administra o país desde o fim da era Pinochet, em 1990. Os dois primeiros presidentes da era democrática foram da DC, que fica entre o centro e a centro esquerda, e os dois últimos, incluindo a atual, Michelle Bachelet, do PS, que vai da centro-esquerda à esquerda. A principal característica da volta chilena à democracia foi atitude da Concertação de manter o que seus dirigentes chamaram então de um “ativo” deixado pelos militares, um regime econômico de livre mercado, com baixa carga tributária, reduzida presença do estado na economia, privatização e abertura ao exterior (são as mais baixas tarifas de importação da AL).
De uns tempos para cá, entretanto, e como se observa facilmente – basta uma semana em Santiago acompanhando a imprensa local – vem ganhando corpo a onda de esquerda. No momento, os socialistas prevalecem na aliança de governo e são eles que forçam o caminho nessa direção. Deputados do PS têm patrocinado os projetos de lei que restringem a atividade das empresas privadas e impõem cada vez mais obrigações sociais e trabalhistas. Também são eles que tentam mudar o projeto de reforma da Previdência, de modo a introduzir uma previdência pública e estatal. Igualmente insistem nos programas sociais de distribuição de renda e de inclusão social, com dinheiro público. Mas também a Democracia Cristã abriga políticos e dirigentes que recusam o carimbo, como dizem, “de livre-mercadistas”.
Foi justamente um ex-presidente democrata-cristão, Patrício Aylwin, quem propôs o aumento de impostos para financiar gastos sociais. O dilema atravessa toda a Concertação: preservar e aprofundar o regime de livre mercado ou desmontar isso que a esquerda chama de neo-liberalismo? Não há um debate formal, mas é o que está por trás dos projetos de lei e políticas de governo. É verdade que, para um brasileiro, parece brincadeira. A carga tributária é de 16,5%, contra os 38% do Brasil. Mesmo o mais liberal dos brasileiros diria que não faria mal algum aumentar a carga para 20% e gastar tudo em Bolsa Família. Aqui, o presidente Lula se orgulha de ter enterrado a negociação em torno da Área Livre Comércio das Américas e de ter renegado a “submissão” aos Estados Unidos. Lá, ninguém está propondo liquidar o Tratado de Livre Comércio com os EUA, mesmo agora quando o governo americano colocou o Chile na lista negra da pirataria.
Aqui, a Previdência é quase toda pública, o déficit bate recordes todos os anos e o presidente diz que não há reformas a fazer. Lá, a Previdência é privada (herança do regime militar) e a reforma proposta apenas introduz um ramo público e estatal. De novo, comparado com o que temos aqui, parece nada demais. Aqui, o governo suspende a concessão de estradas às empresas privadas. Lá, quase todas as estradas já são privadas (e são sensacionais), com o governo querendo apenas impor mais obrigações às concessionárias e reduzir os pedágios. Daqui se diria, tudo bem, pessoal.
Aqui, o país não consegue crescer mais que 3% ao ano. Lá, o crescimento tem sido de 5%, número que o presidente Lula comemoraria como o “maior resultado de todos os tempos”. Mas, no essencial, o debate lá é igualzinho. De um lado, os que dizem que o país não cresce porque há muitas restrições ao investimento privado, inseguranças regulatórias (como as propostas para mudança das lei de concessão), custos e regras trabalhistas que desestimulam o emprego e incertezas legais. De outro, o pessoal que sustenta que o país não cresce porque o modelo é concentrador de renda e excludente. E que já está mais do que na hora de o estado forçar uma distribuição de renda e a inclusão social. Não há um desempate claro, mas também não há dúvidas de que a onda de esquerda avança com firmeza. As principais mudanças tem sido na direção de impor limites à atividade privada, ampliar as regras trabalhistas e aumentar os gastos públicos. Ainda não conseguiram aumentar impostos porque o tema é impopular mesmo na esquerda, mas as propostas estão na mesa.
Tudo considerado, parece que o Chile também não consegue escapar da onda do populismo distributivista que sempre aparece na América Latina, ora pela direita, ora pela esquerda. Toda vez que se dizia que certas idéias (não se pode distribuir quando não há geração de renda; não há almoço grátis; e só capitalismo gera riqueza) não pegavam na América Latina, o pessoal dizia: pois olhem para o Chile. Pois se olharem bem hoje, já vislumbrarão os velhos contornos latino-americanos. E os brasileiros de hoje.
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